|
José Ribamar Bessa Freire |
Demétrio Magnoli, doutor em Geografia,
nunca pisou o chão da aldeia Tenharimem Humaitá, sul do Amazonas,
invadida neste natal por madeireiros e outros bichos ferozes. Nunca cheirou
carne moqueada de anta cozida no leite de castanha, nem saboreou essa iguaria
refinada da culinária Kagwahiva. Jamais ouviu narrativas, poesia ou o som
melodioso da flauta Yrerua tocada na Casa Ritual - a Ôga
Tymãnu Torywa Ropira. Nem assistiu a festa tradicional - o Mboatava. Para
falar a verdade, ele nunca viu um índio Tenharimem toda sua vida,
nem nu, nem de tanga ou em traje a rigor. Nunca.
Não sabe o que perdeu. Não importa. O
papa também nunca esteve no inferno, nem viu o diabo chupando manga, mas
discorre sobre o tema. Desta forma, Magnoli se sentiu à vontade para escrever,
na quinta feira, A Guerra do Gentio, no Globo (02/01),
no qual comenta o recente conflito, numa área que desconhece e dá palpites
sobre a identidade de índios, que nunca viu. Quando a gente carece de
experiência e de vivência pessoal, procura as fontes ou quem estudou o assunto.
O papa, por exemplo, lê a Bíblia e os teólogos. O que leu Magnoli sobre os
Tenharim?
Nada de consistente. Muita gente boa
escreveu sobre eles, com uma reconhecida produção etnográfica. Nimuendaju
descreveu os Parintintin, com quem conviveu nos anos 1920, no rio Madeira. O
gringo Waud Kracke redigiu a tese na Universidade de Chicago, nos anos 1970,
depois de gravar os cantos e narrativas na língua Kagwahiva, que
aprendeu a falar. Miguel Angel Menéndez viajou pelo Tapajós para a tese de
doutorado na USP, no final dos anos 1980. Edmundo Peggion fez uma etnografia
dos Tenharim e defendeu sua tese sobre a organização Kagwahiva, na USP,
publicada em 2011.
Cacique motoqueiro
O geógrafo Magnoli, formado também pela
USP, nem seu souza. Ignora-os, assim como desconhece a documentação dos
arquivos. Menciona os jesuítas e o ciclo da borracha, sem apoio de qualquer
fonte histórica. Não consultou na Biblioteca de Évora o manuscrito de Manoel
Ferreyra, que percorreu a região em meados do séc. XVIII. Para isso, nem
precisa viajar a Portugal. Basta ir ao Museu do Índio, no Rio, onde estão
também microfilmes de relatórios do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) dos
anos 1920-30 redigidos pelo inspetor Bento Lemos, que fornece dados históricos
sobre os Tenharim e outros povos Kagwahiva, conhecidos até 1920
pelo nome genérico de Parintintin.
Ou seja, o cara não pesquisou nos
arquivos, não leu os antropólogos, nunca ouviu um Tenharim, mas usa a página
nobre de um jornal de circulação nacional para cagar regras - essa é a
expressão - sobre os Kagwahiva. Pontifica sobre eles num texto que pretende ser
infalível como uma encíclica. Insinua que a morte de Ivan Tenharim, na estrada,
foi acidente de trânsito como quer a polícia, e não assassinado em uma
emboscada como afirmam os índios. Aliás, segundo ele, o "cacique
motoqueiro" nem índio é. Rouba-lhe a identidade depois de morto, falando urbi
et orbe como o papa:
"O cacique motoqueiro dos
Tenharim, as aldeias indígenas que vivem de rendas de pedágios clandestinos, os
índios terena e guarani que cultivam melancias em “terras sagradas”para
vendê-las no mercado não são “povos da floresta”, mas brasileiros pobres de
origem indígena".
Demétrio dixit. Qual o
critério que ele usa para do alto das suas tamancas trombetear quem é índio e
quem não é? O mercado. Eis aí: o mercado opera o milagre da transfiguração de
índios em 'brasileiros pobres'. Vendeu uma melancia? Então deixou de ser índio
- afirma o contundente Magnoli. Sem o respaldo das ciências sociais, seu
discurso deriva para o senso comum. E o senso comum, no caso, se chama Kátia
Abreu, senadora, pecuarista e articulista do caderno Mercado da Folha
de São Paulo, porta-voz do agronegócio.
Cartilha de Kátia
Magnoli reza pela cartilha de Katia
Abreu, a quem segue como um cachorrinho a seu amo. Copia dela ipsis
litteris, sem aspas, até a negação da identidade indígena. Só
troca 'silvícola' por 'gentio', mas a 'matriz epistemológica' é a mesma: o
interesse do agronegócio nas terras indígenas. Se a venda de uma melancia
transforma o 'gentio' em 'brasileiro pobre', então a terra onde a plantou deixa
de ser indígena e fica assim liberada para os donos da soja, da cana e do gado.
Magnoli não questiona a terra concentrada em mãos de um único fazendeiro, mas o
faz quando se trata de comunidades indígenas, manifestando maliciosamente
fingida dúvida:
“Muita terra para pouco índio”,
diz uma sabedoria popular cada vez mais difundida, mesmo se equivocada" - escreve Magnoli. Que 'sabedoria' é essa? Que 'popular' é
esse? Quem difunde? Se é equivocada, porque ele e outros formadores de opinião
espalham tal equívoco? Magnoli repete a mesma lenga-lenga da Katia Abreu - a
terra é secundária, o que os índios, "necessitam é, sobretudo, de
postos de saúde e escolas públicas". Critica o termo oficial
"desintrusão" para descrever a remoção de todos os não índios das
terras indígenas, porque não aceita chamá-los de "intrusos".
Uma vez mais reproduz o discurso de
Kátia Abreu que igualmente não conhece os índios nem de vivência, nem de
leitura ou pesquisa, mas também caga regras, que Magnoli copia e o leitor lê,
comprando gato por lebre. Copia até o método - a "abreugrafia" - que
consiste em dispensar o trabalho de campo e o contato direto com os índios, que
nunca são ouvidos contrariando uma regra básica do jornalismo. Reforça
preconceitos boçais e chega a ofender os índios quando reproduz acriticamente o
discurso do "senso comum":
"Edvan Fritz, almoxarife, deu um
passo conceitual adiante: “Eles [os índios] vêm à
cidade, enchem a cara, fazem baderna e fica por isso. Índio é protegido pelo
governo que nem bicho, então tem de ficar no mato, não tem que viver em dois
mundos, no nosso e no deles” - escreve Magnoli.
O outro lado
É isso que Magnoli transcreve. No
entanto, o bom jornalismo manda ouvir o outro lado. Por que quando no
"outro lado" estão os índios, quase nunca eles são ouvidos, mesmo
quando são bilíngues e falam português? Duas excelentes jornalistas - Elaíze
Farias e Kátia Brasil - publicaram no portal Amazônia Real, a entrevista do
índio Ivanildo Tenharim, refugiado no quartel do Exército em Humaitá, depois da
invasão à aldeia, onde ele dá a sua versão sobre os recentes ataques:
“Existem muitos madeireiros que têm
raiva da gente porque eles não podem invadir a reserva para tirar madeira.
Tempos atrás, com as operações da Funai e de outros órgãos, eles tiveram carros
e tratores apreendidos e ficaram com mais raiva. O que eles fizeram foi
aproveitar o momento para se unirem contra nós, se articulando com a população.
Foram eles que bancaram o protesto de sexta-feira, quando invadiram as
aldeias”.
A Polícia confirma as informações do
índio: "Identificamos fazendeiros, madeireiros e funcionários tentando
invadir a Terra Indígena Tenharim - declarou o tenente coronel Everton
Cruz. A expedição punitiva que saiu de Apuí no dia 26 de dezembro contou com 29
caminhonetes "para fazer buscas aos três homens desaparecidos"
- informou o delegado Robson Janes, que apontou também a presença de
madeireiros e fazendeiros. Para a líder indígena Margarida Tenharim as
acusações de que os três homens foram mortos por índios não tem provas: "É
um absurdo. Não fazemos isso".
Mas a voz dos índios não encontra eco
no espaço do jornal gerenciado por Demétrio Magnoli, que aproveita para atacar
Lula e o que ele chama de lulismo, responsáveis - segundo ele - pelos
conflitos. Desrespeita, além disso, Dilma Rousseff, a quem denomina
depreciativamente de "presidente de direito", em oposição a Lula que
seria o "presidente de facto". Seu ataque é tão rasteiro e
primário que, lendo-o, dá vontade de votar na Dilma, mesmo sabendo de que Kátia
Abreu faz parte de sua base aliada. Desconfio que se trata de propaganda
subliminar.
Demétrio Magnoli, militante de esquerda
do grupo trotskista Liberdade e Luta (LIBELU) nos anos 1980, não ouve o outro
lado porque trocou de lado. Agora quem dá as cartas para ele é o agronegócio.
Madalena arrependida, Demétrio Magnoli podia ser a Kátia Abreu de paletó e
gravata, mas é a Kátia de cueca, que ficaria limpa se lavada no igarapé Preto
da aldeia Tenharim.