Por: Georg Fülberth |
Franz Mehring consagra-se sobretudo à história geral e à história da literatura, ao mesmo tempo em que faz jornalismo político. Importava-se menos em desenvolver a teoria marxista do que em aplicar a teoria e o método de Marx e Engels aos fatos históricos e aos acontecimentos contemporâneos. Franz Mehring (1846-1919) abriu ao marxismo novos domínios de pesquisa, nos quais utiliza, por si mesma e magistralmente, a concepção materialista da história: a história alemã e, particularmente, a história prussiana; a história do movimento operário alemão; e a história da literatura alemã dos séculos XVIII e XIX. É sobre esses sujeitos que escreveu suas obras mais importantes e mais elaboradas ― a História da social democracia alemã, a biografia de Marx, os escritos sobre a história prussiana e alemã, as biografias de Schiller e Heine, do mesmo modo que os inumeráveis ensaios sobre a história da literatura1. Todos esses trabalhos não são somente o resultado da atividade de um pesquisador infatigável e expressão de um domínio brilhante da teoria e do métodos marxistas, são também obras-primas pela forma e pela linguagem. Ou seja, após a morte de Engels, Franz Mehring foi o jornalista político mais importante do movimento operário alemão.
É só depois de se tornar um jornalista realizado, no campo burguês dos democratas radicais, que Mehring passa ao marxismo e, em 1891 ― com a idade de quarenta e cinco anos ―, se junta à social democracia alemã. Mas aí já fazia muito tempo que se interessava e estudava o movimento operário; aproximara-se do marxismo, em particular na época das leis de exceção de Bismarck contra a social democracia alemã (1878-1890). Se, originalmente, como reformista social burguês e especialista em questões do movimento operário, tivesse por objetivo convencer a burguesia da necessidade de dar uma solução à "questão social", logo reconhece cada vez mais a inutilidade de tais esforços. E, nos últimos anos de sua atividade, se bem que como jornalista burguês de esquerda ― era redator-em-chefe da Berliner Volkszeitung ― já estivesse muito próximo do movimento operário, seu jornal lutava corajosamente contra as leis anti-socialistas de Bismarck e seus trabalhos jornalísticos, sobretudo históricos, revelavam um estudo aprofundado do marxismo e, em certa medida, a utilização consciente do método do materialismo histórico. Para a social democracia alemã, o fato de que Mehring, jornalista alemão ― o mais importante da época ― da burguesia de esquerda, se tenha juntado a ela constitutia um extraordinário sucesso e mostrava a atração que ela exercia. Em 1º de junho de 1891, Mehring torna-se colaborador da revista científica da social democracia, Die Neue Zeit, que era publicada em Stuttgart sob a direção de Karl Kaustsky. É assim que inicia sua ação de escritor marxista, que se estenderia por quase trinta anos, e o coloca na primeira fileira dos discípulos alemães de Marx e Engels. Redige inicialmente, todas as semanas, aBerliner Brief (Carta de Berlim), editorial político do jornal, mas bem cedo ― a partir de janeiro de 1892 ― começa seu primeiro trabalho de história geral e literária, que o transformou de imediato num dos escritores marxistas mais importantes: a Lessing-Legende (A Lenda de Lessing).
Mehring é um dos raros discípulos de Marx e Engels sobre cujas obras possuímos ainda o julgamento de um dos grandes clássicos, o de Friedrich Engels. Em 16 de março de 1892, Engels escrevia, numa carta endereçada a August Bebel: "Acabei de ler a Lenda de Lessing na Neue Zeit e isso me deu grande prazer. O trabalho é verdadeiramente excelente. Eu acrescentaria nuanças de detalhe, mas no conjunto tem uma visão justa. E é uma verdadeira felicidade ver que a concepção materialista da história começa enfim a ser utilizada pelo que ela é: um fio condutor no estudo da história, enquanto que de uma maneira geral ela fora reduzida a absurdos em vinte anos de trabalhos dos jovens do partido. A esse respeito, Kautsky e Ede2 também fizeram coisas muito boas, mas Mehring estudou seu objeto específico, a parte prussiana da história alemã, com muito mais precisão, e sobretudo de uma maneira muito mais livre, com um modo de expressão mais sólido, mais determinado."3
No ano seguinte, Engels escrevia numa carta destinada ao próprio Mehring ― ela se tornou célebre por causa das precisões que faz sobre a concepção materialista da história: "A respeito do livro, em geral, só posso repetir o que eu disse várias vezes dos artigos, quando eles eram publicados na Neue Zeit: é de longe a melhor exposição da gênese do Estado prussiano, eu diria mesmo que é o único bom, pois na maior parte dos casos revela exatamente as correlações até nos detalhes"4.
No curso dos anos 1893-1898, Mehring trabalha em sua grande História da social democracia alemã, que tem quatro edições antes da Primeira Guerra mundial. Nos anos seguintes, Mehring realiza um projeto esboçado por Engels: dirige a edição em três volumes dos escritos de juventude, reencontrados, de Marx e Engels, edição que ele completa com um quarto volume contendo as cartas de Lassalle a Marx e Engels (Aus dem Literarischen Nachlass von Marx, Engels und Ferdinand Lassalle, Stuttgart, 1902). Essa célebre edição das "obras póstumas" oferece pela primeira vez ao movimento operário alemão a tese de doutorado de Marx, seus artigos como redator-em-chefe da Gazeta renana, os ensaios de Marx e Engels publicados nos Anais franco-alemães, os artigos do Vorwärts parisiense, o estudo polêmico contra os irmãos Bauer e os jovens hegelianos redigido em comum por Marx e Engels, A Sagrada Família, artigos de Marx e Engels publicados em revistas alemães e a Deutsche Brusseler Zeitung dos anos 1845-1847; enfim, um conjunto de trabalhos particularmente importantes aparecidos na Nova Gazeta renana (publicada durante a Revolução de 1848) e na Nova Gazeta renana – Revista econômica e política (publicada após a revolução).
De 1902 a 1907, Mehring consagra quase todas suas forças aos trabalhos jornalísticos. Redator-em-chefe do diário Leipzig Volkszeitung (a Gazeta Popular de Leipzig), fez dele o modelo de um jornal operário revolucionário, que encontra inclusive uma ampla audiência internacional e jogará um papel importante, sobretudo nos debates relativos ao revisionismo teórico e prático, no interior da social democracia alemã. Duas outras obras importantes datam também dessa época: a biografia de Schiller, que aparece em 1905 por ocasião do centenário da morte de Friedrich Schiller, e o trabalho sobre o colapso da Prússia em 1806 publicado igualmente como obra comemorativa: Iena e Tilsitt – Um Capítulo da História dos Junkers ao Leste do Elbe(1906). Quando em 15 de novembro de 1906 se funda a escola do partido social-democrata alemão, Mehhring se encarrega do ensino da história. O fruto dessa atividade será a breve História da Alemanha desde o fim da Idade Média, que aparece em 1910 e tem uma difusão muito ampla no movimento operário alemão. Além do seu trabalho jornalístico, que adquire uma importância crescente, Mehring edita, na coleçãoNovos Estudos Socialistas, obras de Friedrich Engels, Wilhelm Weitling, Wilhelm Wolff, F. A. Lange e F. Lassalle, acrescentando a elas introduções históricas muito bem cuidadas. Em 1911, publica sua biografia de Heine. Em 1912 e 1913, dois novos estudos importantes sobre a história da Prússia: De Tilsitt a Tauraggen e De Kalisch a Karlsbad. Durante os anos que precederam à Primeira Guerra mundial, a atividade jornalística de Mehring ― do mesmo modo que a de Rosa Luxemburg e J. Karski (Marchlewski) ―, na Gazeta Popular de Leipzig e na Neue Zeit, foi interrompida pela polêmica interna do partido. Assim, em abril de 1912, após trabalhar durante vinte anos na Neue Zeit como editorialista, Mehring teve que abandonar a sua crônica; um ano mais tarde, em razão das intrigas políticas de Kautsky, é a vez do folhetim que ele dirige ― também para essa revista ― ser interrompido. Tudo isso se desenrola em uma época em que, para os social-democratas alemães de esquerda mais clarividentes, o colapso do 4 de agosto de 1914 tornara-se previsível, mesmo que eles não supusessem a sua amplitude. Após a saída de Mehring, Luxemburg e Marchlewski daGazeta Popular de Leipzig, Mehring escrevia, numa carta de 16 de dezembro de 1913: "A questão está posta: nós três... pensamos que o partido atravessa uma crise interna muito mais grave do que a do início do revisionismo. O termo pode parecer duro, mas eu estou persuadido de que, se isso continua, o partido arrisca cair no marasmo. Num tal momento, só há uma solução para um partido revolucionário: a autocrítica mais implacável, a mais dura que se possa imaginar."5
Em 4 de agosto de 1914, dia em que a fração social-democrata do Reichstag votou os créditos de guerra, Mehring participa do encontro histórico que reunia diversos revolucionários alemães no apartamento de Rosa Luxemburg; decidiram notadamente lutar contra a guerra imperialista e contra a traição da direção social-democrata ― entre eles, Merchlewski (Karski), Hermann Duncker, Ernst Meyer, Wilhelm Pieck e Hugo Eberlein; Karl Liebknecht e Clara Zetkin se associaram a eles pouco depois. Da primavera de 1913 ao verão de 1916, Megring trabalha em sua grande biografia de Marx, que só deveria aparecer na primavera de 1918, por causa da censura de guerra. Durante esses anos de guerra, Mehring, envelhecido, participa como militante político e jornalista no trabalho do grupo Internacional (mais tarde grupo Espártaco e União Espartaco) e faz parte, no fim 1918, início de 1919, do grupo dos fundadores do Partido Comunista alemão, junto com Karl Liebknecht e Rosa Luxemburg. Ele morre em 29 de janeiro de 1919; a dor consecutiva à morte de Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht não esteve alheia à sua morte.
2. Concepção do marxismo e método marxista
Já se mencionou que a interpretação feita por Mehring da teoria e do método marxistas está ligada à aplicação que ele faz deles na história em geral e na história contemporânea mais particularmente. Mehring é em primeiro lugar um historiador, um historiador da literatura e um jornalista político. Encontram-se apenas uns poucos trabalhos consagrados a problemas teóricos no sentido estrito. Entretanto, poder-se-ia citar aqui sua obra, surgida em 1893 em anexo a sua Lenda de Lessing: Sobre o Materialismo Histórico6, e as Impressões Estéticas, publicadas em 1898 na Neue Zeit, na qual ele procurava reunir os primeiros elementos de uma estética marxista7. Mas são exceções. No essencial, a interpretação de Mehring se encontra no conjunto de sua obra histórica, em sua análise e em sua apresentação da história ou em seus artigos sobre a política contemporânea. Além disso, é preciso sublinhar que Mehring, que conhecia muito bem a teoria econômica de Marx, e principalmente o primeiro volume doCapital, nunca tentou trabalhar no domínio específico da teoria econômica. Foi assim que em sua biografia de Marx, ele deixa a cargo de Rosa Luxemburg, sua companheira de luta, a atribuição de dar conta dos livros II e III do Capital. E, em suas cartas, ele insiste repetidaemnte que não lhe interessa fazer a teoria em si. É por isso que, na análise teórica do desenvolvimento econômico e também parcialmente na análise das tendências políticas e da tática, ele se apóia, inicialmente, em Kautsky (por todo o tempo em que este permanece nas posições marxistas); em seguida, quando a posição oportunista de Kautsky aparece claramente (a partir da pretendida tática de temporização das eleições de 1912), ele se apóia nas análises de Rosa Luxemburg.8
Além do ensaio sobre o Materialismo histórico, os trabalhos de Mehring que abordam sujeitos filosóficos nos dão também informações interessantes sobre a sua maneira de compreender o marxismo. No curso das polêmicas filosóficas que, pouco após a morte de Engels, se desenrolam no seio da social democracia alemã, Mehring aplicou-se sobretudo em defender o materialismo histórico, notadamente contra os ataques de Bernstein e contra os do neokantismo que penetravam então na social democracia. De todos os marxistas alemães, pode-se dizer que foi Mehring que, de forma mais profunda, se consagrou à filosofia. Em seus estudos centrados na defesa dos fundamentos filosóficos do marxismo, ele toma à parte os que ensaiam uma síntese de Marx e Kant ― tanto os que pretendem completar o materialismo histórico com a teoria kantiana do conhecimento, quanto os que querem justificar o socialismo científico com a ética kantiana9. A tentativa dos neokantianos (Cohen, Staudinger, os que são chamados de austro-marxistas e sobretudo Max Adler) de "completar" o marxismo com o kantismo parecia a Mehring uma ação que tendia "objetivamente" a "minar o materialismo histórico"10. Por sinal, ele analisa de uma maneira notável para a época a filosofia de Nietzsche, mostrando que seu conteúdo social reproduzia a feroz mentalidade de mestre dos grandes capitalistas. Mehring foi o primeiro marxista a sublinhar as relações que existiam entre a filosofia de Nietzsche e o imperialismo, o "reino dos cartéis e dos trustes"; foi o primeiro a sublinhar o conteúdo extremamente antidemocrático e anti-socialista dessa teorias filosófica11.
Mehring compreendia o materialismo dialético e histórico não como uma concepção global da natureza e da sociedade, nem como uma concepção do mundo, mas como um método científico que permite analisar a sociedade. Ele se referia à introdução de Engels ao Anti-During e a seu artigo sobre Ludwig Feuerbach; mas, ao fazê-lo, cometia um contra-senso a propósito de Engels, que ele interpretava como o anúncio ― por Marx e Engels ― do fim da filosofia, ao passo que Engels sublinhara com insistência que, da filosfia, deveria subsistir a teoria das leis do pensamento e da dialética. Ele não viu que Marx e Engels não proclamavam em nada o fim da filosofia, mas anunciavam uma filosofia nova, por sua natureza e por seu objeto, uma filosofia não mais de caráter especulativo mas científico12; isso conduz Mehring, quando defende as posições de Marx e Engels, a cometer numerosos erros e sobretudo a subestimar os problemas da teoria do conhecimento, que ele tenta fazer passar, por mais de uma vez, como "sonhos filosóficos". É preciso acrescentar ainda que Mehring via em Marx e Engels apenas os fundadores do materialismo histórico: com respeito ao da natureza, pretendia ele, se ativeram a um materialismo mecanicista; dito de outra modo, ele não via, apesar das longas digressões de Engels a esse respeito, a diferença fundamental que separava a concepção dialética da natureza, em Marx e Engels, do antigo materialismo.
Se, no domínio da história, era um excelente dialético, a dialética propriamente dita, enquanto disciplina lógica relevante da teoria do conhecimento, não desempenha nenhum papel em seus trabalhos. Assim, na "inversão" da dialética hegeliana por Marx, ele só via um ato único e genial do pensamento, não o processo teórico, prático e político que conduzia à "descoberta" da dialética objetiva nos fatos empíricos e que resultava em um novo método científico13. São provavelmente os ensaios polêmicos contra Bernstein, publicados na Neue Zeit sob o título Post-Scriptum11, após a ruptura entre Bernstein e Kautsky, que contêm as melhores observações de Mehring sobre a dialética. Nesses textos, ele ataca o "pensamento centrista de Bernstein" e o reprova por tentar destruir o que fizera de Marx e Engels os precursores: o método científico deles. O maior mérito de Mehring no plano filosófico foi, finalmente, defender a concepção materialista da história contra seus adversários e sobretudo de tê-la aplicado de maneira consequente e magistral em seus trabalhos históricos. Estes são profundamente impregnados das ideias fundamentais do materialismo histórico: a estreita dependêncai da consciência social, como das formas e instituições ideológico-políticas, das relações econômicas materiais; a ação em retorno da superestrutura sobre a base econômica; as leis históricas e econômicas do capitalismo, tal qual se realizam na ação e pela ação das classes e dos grupos sociais; a luta de classes, sob suas formas econômica, política e espiritual, e na dialética viva de seu desenvolvimento; as relações e os efeitos recíprocos das condições objetivas da luta das classes com os fatores subjetivos, em particular da maturidade da consciência social na organização da classe operária, que se exprimem no desenvolvimento do partido operário revolucionário e são em si mesmas condicionadas por ele. A profundida de seus conhecimentos e a solidez de seus princípios sobre as questões fundamentais da concepção materialista da história farão que se coloque imediatamente Mehring na categoria dos teóricos "marxistas ortodoxos", por ocasião das polêmicas que tiveram lugar contra a social democracia alemã na contra-ofensiva antimarxista levada a cabo por Bernstein em 1897; é por essa mesma razão que se tornou mais tarde um dos líderes da ala esquerda dessa social democracia e um dos fundadores do partido comunista.
Mas, sobretudo, Mehring consegue evitar um erro importante: o que consiste em querer derivar mecanicamente da base econômica as manifestações da superestrutura; sobre esse ponto, por sinal, Engels havia chamado a sua atenção, em uma carta pessoal de julho de 1893, a propósito da Lenda de Lessing. Engels escrevera: "Fora isto, falta somente um ponto que, para dizer a verdade, não foi colocado com o destaque suficiente nos escritos de Marx e nos meus, o que faz com que fiquemos com toda a responsabilidade. A saber, nós nos dedicamos inicialmente a deduzir as representações ideológicas ― políticas, jurídicas e outras ― assim como as ações por elas condicionadas, dos fatos econômicos que estão em sua base, e tínhamos razão para isso. Mas, considerando o conteúdo, negligenciamos a forma: a maneira como se constituem essas representações, etc. (...) Esse aspecto da coisa, que aqui só posso aflorar, todos nós o negligenciamos, creio, mais do que ele o merecia. É uma velha história: ao começar se negligencia sempre a forma em favor do fundo (...)."15
3. O teórico e historiador da literatura
Os trabalhos de Mehring sobre história e teoria da literatura também contribuiram muito para a maneira de compreender e interpretar o método e a teoria marxistas. Com seus escritos sobre a história da literatura alemã, Mehring penetrava num domínio até então abandonado pela pesquisa marxista. Ele não poderia se apoiar senão sobre comentários de Marx e Engels que, embora da maior importância, permaneciam essencialmente ocasionais e parciais. Mehring oferece então à ciência marxista uma nova disciplina: a história literária. Pode-se considerar seus escritos e artigos nesse domínio como um trabalho precursor, e deve-se sublinhar o fato de que o ensaio de Lukàcs, publicado em 1933, e reeditado nos anos 50, o condenava sem apelação; mas a literatura marxista desaprova os julgamentos peremptórios, parciais, tendendiosos e superficiais ― contidos nesse ensaio16 ― que este último lança sobre Mehring.
O principal mérito de Mehring reside em sua aplicação, à literatura alemã e a seu desenvolvimento nos séculos XVIII e XIX, da concepão materialista da história. Ele analise de um ponto-de-vista sócio-histórico as correntes literárias assim como os escritores, e os interpreta e os explica a partir das condições sócio-econômicas, do desenvolvimento político e das lutas de classes próprias à sua época. Ele se interesse então essencialmente pelo conteúdo da obra, e muito menos pelo lado formal e estético no sentido estrito do termo. De alguma maneira, ensaia em suas Impressões estéticas (1898)17 ― como ele mesmo o dizia ― "limpar" o terreno de modo a preparar o lugar para uma estética científica apoiada no materialismo histórico. Mas pode-se duvidar de que o tenha conseguido, pois ele paga, nessa obra, um pesado tributo a suas tendências kantianas adquiridas com anterioridade a seu período marxista. Isso não impede que Lukàcs se tenha enganado quando, no ensaio já mencionado, quer atribuir-lhe uma teoria estética absolutamente contrária ao marxismo, recusando a noção de reflexo em arte e se opondo ao realismo. A teoria de Mehring deve ser buscada não em suas Impressões, mas no conjunto de seus trabalhos sobre a história da literatura e de crítica literária. Chega-se então a um resultado bastante diferente17: Mehring era partidário de uma arte histórica e politicamente verdadeira, negava a possibilidade da arte pela arte e dizia que os escritores que desdenhavam qualquer tendência política ou social incorriam numa "tendência política ou social em sua forma mais estúpida, mais caduca e mais vazia"19. Por tendência artística, Mehring entendia a verdade histórica apreendida com profundidade e modelada com arte, a representação das lutas importantes e das tendências do desenvolvimento social, a posição adotada pelas forças progressistas da época tratada. Mas, quando essa tendência permanecia ligada à matéria de maneira bruta e não orgânica, sem ser colocada em forma, e sobretudo quando faltava nela a verdade histórica, e era por isso reacionária, então deixava de ser uma obra artística. A crítica que ele dirige ao movimento naturalista alemão, no fim do século, é ainda hoje muito instrutiva: ela mira no fato de que as coisas não são tomados ao vivo suficientemente, nos clichês que reproduzem servilmente a realidade mais fortuita, na "inespressiva imitação da natureza".
Seu principal critério estético era o de um realismo fundado na compreensão profunda da história. Dizia que, se o naturalismo quisesse ser verdadeiramente uma arte moderna ou uma grande arte, não poderia passar ao largo do movimento operário revolucionário: uma tal arte deveria "descrever não apenas o velho mundo que se desmorona, mas também o novo mundo em gestação", deveria "descobrir os proletários no trabalho ou na luta, após os haver encontrado tantas vezes no bordel ou no botequim"20. Isto porque Mehring pensava que não apenas a maneira de escrever, mas também a maneira de pensar exerciam uma influência importante sobre o trabalho artístico dos escritores modernos, e os convida a se familiarizar com o materialismo histórico. No seu ensaio em memória de Emile Zola, sublinhava que a obra literária de Zola teria sido infinitamente menos pesada "se a chave de sua análise dos fenômenos sociais tivesse sido a teoria da luta de classes e não o fatalismo vulgar de um Lombroso, que foi o suficiente para induzi-lo ao erro"21.
Mais do que qualquer outro marxista de seu tempo, Mehring desenvolve numerosos esforços para tornar viva a tradição da grande literatura clássica nas fileiras do movimento operário alemão, a fim de que ela pudesse fecundar sua luta. Sempre afirmando que o movimento operário não poderia aceitar essa herança sem crítica, mostava que Lessing, Goethe, Schiller e Heine estavam entre "os ancestrais da luta do proletariado por sua emancipação".
Sua profunda crítica ao naturalismo continha ao mesmo tempo o programa de base por uma nova literatura socialista. Mas, como as pesquisas contemporâneas para edificar uma literatura de língua alemã lhe parecessem pouco satisfatórias, mesmo que como crítico ele as favorecese e as defendesse, ele acaba por adiar o período de espansão de uma arte proletária para a época que viria a seguir da revolução socialista. E, se ele pensava que a burguesia declinante não poderia realizar mais nada de grandioso, estimava também que a classe operária ascendente ainda não estava em situação de realizá-lo: "Tanto quanto seja impossível que uma nova época da arte se desenvolva a partir da luta do proletariado, tanto mais é certo que a vitória do proletariado assegurará um novo impulso da arte"22.
4. Trabalhos de Franz Mehring sobre a história do movimento operário e sobre a Alemanha prussiana
Nas grandes obras históricas de Mehring ― a História da social democracia, a biografia de Marx, os trabalhos sobre a história da Prússia e da Alemanha ― trata-se menos, como dissemos precedentemente, de interpretar o marxismo do que de utilizar sua teoria e seu método científico; sobre esse ponto, os resultados notáveis obtidos, tanto do ponto de vista científico como artístico, falam por si mesmos. Em seus importantes escritos consagrados ao movimento operário, Mehring se dedica também a descrições detalhadas de obras teóricas, econômicas, filosóficas e histórico-políticas de Marx e Engels, mas só o faz à guisa de referência. O que corresponde bem ao caráter histórico e biográfico de trabalhos nos quais os fatos "acontecíveis" constituem o pano de fundo. Em seu tempo, os trabalhos históricos de Mehring eram de uma grande atualidade para a luta contra os Junkers e a burguesia: eles uniam, ao objetivo imediatamente científico, a destruição das lendas (Lenda de Lessing, Lenda de Frederico) e o questionamento de inumeráveis fatos deformados e falsificados. Ele dizia que a mentira histórica era "um instrumento de opressão social" e que não se poderia destruí-la completamente "enquanto a opressão social existir"23.
Era conscientemente que Mehring escrevia a história do ponto-de-vista da classe operária. Ele tinha desprezo em relação aos críticos que lhe propunham como modelo de escritura histórica obras de um classicismo ponderado, essas obras que deixavam a palavra aos fatos e ao espírito geral de evolução, e ele julgava que a "objetividade" de tais obras de historiadores burgueses haviam, até o presente, se agachado diante dos reis e caluniado os povos. Segundo Mehring, só se podia escrever a história da sociedade moderna do ponto-de-vista da classe dos proprietários ou do ponto-de-vista das classes trabalhadoras. Aquele que pretendesse ultrapassar essa oposição se definindo como historiador "ponderado" era um tolo ou um serviçal. Se se quer conservar a dignidade da escritura histórica, isso não pode ser feito por não se sabe quais divagações "ponderadas" sobre a "objetividade", mas apenas declarando abertamente, de cara, qual é o ponto-de-vista que se adota24.
Acusa-se Mehring de não ter assimilado completamente o marxismo: é o que sustenta por exemplo Lukàcs, no longo ensaio biográfico e crítico já mencionado, dando como prova disso apreciações feitas por Mehring sobre Lassalle e seu papel histórico, nas quais ela parecia não ter conseguido libertar-se do marco do pensamento lassalliano. Os editores da obra de Mehring e os tabalhos marxistas mais recentes combateram essa concepção, parece-me que com razão. Por suas posições teóricas, Mehring não tinha nada de lassalliano. O julgamento dele sobre a história da social democracia alemã não está fundado em motivos ideológicos. Nem é expressão do desconhecimento da filosofia idealista de Lassalle e de suas concepções sobre a história ou o Estado, ela está fundada apenas numa superestimação do papel histórico desempenhado por Lassalle durante os anos 1863-1864, período em que assume a direção da agitação operária. Será em vão que se buscará em Mehring os aspectos marcantes da ideologia lassalliana: concepção idealista da história herdada de Hegel, culto do Estado, socialismo de Estado pequeno-burguês e concepções reformistas. Tudo isso é suficiente para demonstrar como são injustificadas as reprovações que lhe foram dirigidas por Lukàcs e já anteriormente por Kautsky. Para Mehring, como historiador, importava sobretudo fazer compreender e apreciar em seu justo valor Lassalle e a Associação Geral dos Operários alemães, fundada por este, os recolocando na história do movimento operário alemão. Mehring formulou claramente o sentido desse esforço em sua História da social democracia alemã: "É só no seu contexto histórico que uma figura histórica adquire uma dimensão histórica". Se compara-se Lassalle a Marx e a Engels, que viveram em condições históricas totalmente diferentes, ele será, em certa medida, eclipsado por eles; mas se, ao contrário, se o compara com seus contemporâneos que viveram o essencial de suas vidas nas mesmas circunstâncias que ele ou em circunstâncias ligeiramente melhores ― quer dizer, os jovens hegelianos em filosofia, Rodbertus em economia e Jacoby em política ― então a figura de Lassalle adquire muito maior importância e envergadura25.
Trata-se, então, inícialmente, de explicar a posição de Lassalle, suas ideias e sua prática a partir das condições históricas da Alemanha durante o período de reação que segue a 1848; depois, esse ensaio se transforma insidiosamente em uma apologia do papel histórico de Lassalle. Assim Mehring é levado a fornecer justificativas para Lassalle e a assegurar que ele chegara ao coração do comunismo científico, ainda que sua compreensão da luta proletária se exprimisse de um modo burguês e que ele tivesse levado "ao domínio filosófico e jurídico o que em Marx era uma concepção econômica"26. Mehring vai mesmo mais longe: ele tenta defender a tática política de Lassalle e sua maneira de flertar com Bismarck após a burguesia liberal tê-lo atacado violentamente.
O próprio Mehring ficara muito decepcionado com a democracia burguesa e fora após longas e difíceis lutas interiores que ele se junatara ao movimento operário. Ele vivera essas mudanças como os acontecimentos mais importantes de sua vida, eis porque ele superestimava o que Lassalle realizara dando aos trabalhadores formas de organização próprias, independentes da burguesia liberal. Ele esqueceu de fazer um julgamento crítico sobre as posições ideológicas e as práticas políticas da organização operária criada por Lassalle. O eixo do julgamento que ele faz sobre as posições de Lassalle no movimento operário alemão é o seguinte: dado o grau de maturidade dos trabalhadores alemães da época, uma agitação diferente da de Lassalle teria ficado sem nenhum efeito. Lassalle fora, portanto, "precisamente o precursor" que "a classe operária alemã necessitava nas condições históricas da época". O lassallianismo, especifica, indica exatamente a "medida dos conhecimentos acessíveis à classe operária alemã nesse estágio de sua evolução"27.
Mehring estimava que, no fundo, Lassalle não fizera nada diferente do que Marx e Engels recomendavam constantemente: ater-se ao nível do movimento existente para estimular esse movimento para diante. A fim de demonstrar essa análise, ele se refere aos conselhos que, em 1886-1887, Engels dera aos socialistas que militavam na América do Norte, em suas cartas a F.-A. Sorge e a Madame Kelley-Wischnewetzky.
Demonstra-se de maneira convincente que nada disso justificaria a posição de Mehring quando ele se recusa a criticar o papel de Lassalle e chega mesmo a embelezá-lo28. Ele não via a diferença que Marx e Engels faziam sempre e sobre a qual repousa toda sua atividade na primeira Internacional: uma coisa é propagar ideias não científicas que induzem os trabalhadores ao erro (e a agitação de Lassalle estava repleta de ideias desse gênero), outra coisa é conduzir lentamente os trabalhadores a se aproximarem das ideias verdadeiramente socialistas, começando pelas exigências cotidianas e práticas necessárias à ação. O primeiro desses métodos deve ser rejeitado, ao passo que o segundo é historicamente necessário. Mehring não vislumbrou tampouco que a tática de aliança com Bismarck contra a burguesia liberal, através da qual Lassalle acreditava anestesiar Bismark, conduzia de fato ao isolamento do movimento operário nascente em relação ao movimento democrático revolucionário de então e, em particular, da pequena burguesia, a qual seria colocada numa falsa posição, quer dizer, na linha de frente. Mas tudo isso não é suficiente a que que se reprove Mehring por ceder ao lassallianismo em suas concepções teóricas e mesmo em sua prática política.
5. O jornalismo político
O modo como Mehring compreendia e interpretava o marxismo se exprime, é certo, de maneira particularmente neta em sua atividade de jornalista político ou na ação política que ele desenvolve como dirigente da ala esquerda da social democracia, depois como fundador do grupo Espártaco e do partido comunista. Para Mehring, a antiga social democracia permanece um partido revolucionário por todo o tempo em que se mantém nos princípios marxistas e admite que os longos anos de uma evolução histórica relativamente calma preparou a classe operária alemã para as lutas a vir, levando em conta seu grau de consciência e organização. A esse respeito, é instrutivo notar que mesmo Lênin, em 1920, quando reconheceu a bancarrota da II Internacional e da social democracia alemã, dizia desta última, a velha social democracia, que ela era "o mais próximo ao Partido necessário para o proletariado chegar à vitória"29.
Desde o debate sobre o revisionismo, desencadeado por Eduard Bernstein em 1897, Mehring foi um dos jornalistas marxistas que se opuseram mais violentamente ao revisionismo, sobretudo no domínio filosófico e no da tática política. Todavia, ele julgava a social democracia tão bem instalada na imagem revolucionária que ela se fazia de si mesma, que ele subestima em muito o perigo oportunista ― como o fizeram, por sinal, outros teóricos da esquerda. Na segunda edição, revista e corrigida, de sua História da social democracia alemã, aparecida em 1903, ele chega à conclusão de que o revisionismo na Alemanha nunca foi nada além de uma impressão (stimmung) e que, como dizia Hegel, vinda do nada, em direção ao nada e percorrendo o nada. Mesmo que essas impressões, que não nasciam instantaneamente, nem desapareciam no instante, como o revisionismo desde o Congresso de Dresde em 1903, apenas sobrevivessem ― antes de desaparecer lentamente30. E, ao contrário de Rosa Luxemburg, que desde outubro de 1896, numa carta a Bebel, reclamou a exclusão de Berstein e de seus companheiros, pronunciando-se por uma delimitação precisa e rigorosa das frentes ideológicas, pensava que se o Congresso de 1901 não havia resolvido o problema Berstein, havia pelo menos retirado "o dardo que decopunha e desmoralizava o Partido"31.
A polêmica levada a cabo por Mehring contra a corrente oportunista toma inicialmente como alvo essa ilusão, pela qual se pretendia ser possível a utilização do parlamento burguês nas condições históricas concretas do direito alemão wilhelminiano. "É desconhecer radicalmente o desenvolvimento histórico da Alemanha, escrevia ele, acreditar que a sociedade capitalista permitirá ser substituída pelo socialismo com o sufrágio universal, por assim dizer, sossegadamente. Um tal desenvolvimento era pensável e possível em países que gozassem de uma cultura burguesa já antiga; não era possível nem pensável num país onde o Estado e o direito eram historicamente tão retrógrados como na Alemanha"32. Eis a razão essecial pela qual Mehring intervinha contra qualquer superestimação do parlamentarismo nas fileiras da social democracia e, na questão da tática que o partido deveria adotar, apresenta a pressão extra-parlamentar como a arma mais eficaz33. Já quando da primeira aparição do revisionismo, Mehring colocara o problema de saber "se a social democracia não havia consagrado à via parlamentar uma parte muito grande de sua atividade ― que ela poderia haver utilizado com melhor proveito em outros domínios"34.
Mehring via um sintoma típico da invasão oportunista na subestimação da teoria revolucionátia e no desenvolvimento do estreito praticismo. Ele escevia, em 1902, num texto polêmico: "Da confusão teórica que parece ser olhada pelos praticistas como a ideia do Partido, nós concluímos que é necessário dar um lugar ainda maior à teoria e de se preocupar com ela ao máximo... A luta pela emancipação do proletariado moderno não pode ser levada à maneira de uma guerrilha, no dia-a-dia e de lugar em lugar, sem um estado-maior. A classe operária nunca prevalecerá se não souber se mostrar, no plano espiritual igualmente, à altura da antiga cultura, que se manteve tão poderosa malgrado a decadência do capitalismo. Ela deve dominar essa antiga cultura para criar uma nova que lhe seja superior"35.
Mehring defendia também essas posições marxistas, dirigidas contra qualquer enfraquecimento oportunista, nos seus esforços apaixonados pela existência de uma imprensa operária firme nos princípios ― da qual ele próprio deu um brilhante exemplo quando foi redator-em-chefe da Leipziger Voltkszeitung (Gazeta popular de Leipzig) entre 1902 e 1907.
Mehring não tratou de formular claramente uma análise econômica da evolução em direção ao imperialismo, que era entretanto muito sensível nos últimos anos do século XIX. Ele se apoiava nesse domínio nos trabalhos econômicos de Kautsky e de Rosa Luxemburg, redigidos nas polêmicas contra Bernstein. Interessava-se sobretudo pelas consequências políticas e militares do imperialismo e pelas circunstãncias concretas nas quais se desenvolve. É por isso que ele ataca desde o início os primeiros projetos de social-imperialismo, tal como foram formulados na social democracia por Schuppel em 1898: este explicava que a social democracia deveria negociar "os direitos dos povos contra os canhões", quer dizer, sustentar os planos armamentistas dos imperialistas para em troca poder "adquirir" direitos democráticos. "A burguesia, responde-lhe Mehring, pode pactuar com o militarismo, mas o proletariado nunca o poderá... Se um dia essa ideia estranha de negociar os direitos dos povos contra os canhões se impuser no Partido, isso será de longe a pior das faltas que ele haverá de inscrever em sua história, seria a humilhação mais severa que o partido haja infligido a si mesmo"36.
Na virada do século, numa série de artigos do Vorwärts (Bancarota mundial e mercado mundial, esboço de política internacional), Mehring analisa as implicações do imperialismo. Através de uma vasta fresta histórica, estuda a política mundial que se caracteriza pelo reino absoluto da burguesia se apoiando no capitalismo comercial e industrial. Ele via no imperialismo moderno a política mundial de um capitalismo em pleno colapso, a política de um capital ávido de conquistas, porque em seu declínio: o capitalismo porta em si o perigo de uma guerra mundial. Mehring previne a classe operária dos perigos inerentes à política mundial dos imperialistas, sem reconhecer todavia os traços específicos do imperialismio moderno37. No capítulo, redigido em 1903, de conclusão da segunda edição de sua história do partido, destaca os traços específicos do imperialismo moderno, que ele define como a forma de poder particular do sistema em seu final e sublinha que a evolução imperialista reforça as tendências revolucionárias da classe operária38.
Nas polêmicas táticas e políticas que opuseram os sociais-democratas entre si, antes e sobretudo durante a Primeira Guerra mundial, Mehring ocupa no seio da ala esquerda a posição de um marxista consequente. A ruptura mais profunda produziu-se com a primeira revolução russa (1905) e as greves maciças que ela desencadeia no movimento operário alemão. Diferentemente de Kautsky e de Rosa Luxemburg, que se apoiavam num conhecimento direto dos acontecimentos, Mehring não tentou proceder à análise do caráter próprio à primeira revolução russa e das forças que nela operavam. Ele se contenta em retomar as concepções de Rosa Luxemburg e de defendê-las; mas ele percebe as tendências históricas que estavam na base dessa revolução com tanta clareza que Lênin, em abril de 1907, se serviu de um de seus artigos de fundo, aparecido na Neue Zeit, para sustentar a tese bolchevique contra os mencheviques39.
No fim de 1905 e início de 1906, um violento debate se abre na social democracia a propósito das lutas contra o sistema eleitoral por classes que existia na época nos Länder alemães. Colocava-se a questão de saber se as formas de luta empregadas até então eram suficientes ou bem se não seria necessário mais que tudo de recorrer à greve política de massa, arma que passou na prova durante a Revolução russa. Durante esses anos, o oportunismo e a tática burocrática haviam servido cada vez mais de política oficial às instâncias dirigentes do Partido alemão. Mas, por ocasião das polêmicas políticas, uma corrente de esquerda se afirma lentamente, sem todavia assumir a forma de uma corrente organizada, tendo como principais porta-vozes: Rosa Luzenburg, Karl Liebknecht, Franz Mehring, Clara Zetkin. Quando, em 1906, em Saxe, Hamburgo, Braunschweig, Hesse e Prússia se desencadearam vigorosos movimentos de massa a favor de uma reorganização democrática do voto ― a direção do partido não se decidiu a recorrer à greve de massa e fez até mesmo um acordo secreto com a direção reformista dos sindicatos para impedir a sua propagação. A situação permitiria o recurso a essa forma de luta? A questão estava posta. E Clara Zetkin e Mehring admitem então que não se poderia utilizar a greve de massa a não ser em situações imediatamente revolucionárias40.
Em 1910, quando as lutas sobre a questão do direito de voto atingem um novo auge, as divergências sobre a tática política adquirem uma amplitude ainda maior. Veio então a polêmica decisiva e fundamental entre Rosa Luxemburg e Kautsky. Ela se desenrola nas colunas da Neue Zeit; pela primeira vez Kautsky definia face à esquerda sua posição de "centro marxista" e esposava sua tese sobre a estratégia de temporização. Mehring ainda não se havia juntado a Rosa Luxemburg nessa polêmica, na qual ela demandava que se adotasse a palavra de ordem de "República". Somente no ano seguinte, ele compreenderia que o "centro" ao qual se referia Kautsky não era outra coisa senão uma maneira de justificar teoricamente o oportunismo que se revelava por ocasião de cada fato político importante: em 1911, a propósito do conflito marroquino; em 1912, com o que se chamou a "tática de asfixia" ― no momento das eleições ―; em 1913, quando do voto dos créditos de guerra e pela declaração do estado de urgência. Megring ficou então totalmente de acordo com Rosa Luxemburg sobre sua crítica de princípio; e as críticas que ele dirige à direção do partido lhe valeriam, em abril de 1912, de ser obrigado a cessar sua atividade de editorialista político na Neue Zeit, após vinte anos de colaboração.
Nessa época já se anunciava a catástrofe de 4 de agosto de 1914. Após o congresso da social democracia em Iéna, Mehring resume a posição da esquerda nessas poucas frases notáveis: "O período imperialista e as relações tensas dos últimos anos nos colocam atualmente em novas situações e nos impõem novos deveres. A necessidade de dar ao patido inteiro os meios de ser mais ágil, mais ativo, mais ofensivo, a necessidade de mobilizar as massas e de se apoiar nelas como meio de pressão direta, tudo isso exige um pouco mais de esforço do que a simples crispação nas formas exteriores da 'boa velha tática'. Isso exige que se compreenda que a nova tática revolucionária torna doravante necessárias novas formas de ação de massa e que ela também se deve aplicar nas situações novas ― como por exemplo a introdução na Alemanha de um imposto sobre imóveis destinado a financiar o militarismo"41.
A esquerda, e em suas fileiras Mehring, havia compreendido bem o processo de decomposição da social democracia alemã, mas não podia advinhar as formas assustadoras que ela tomaria após o 4 de agosto de 1914. Em janeiro de 1915, Mehring escrevia a um amigo: "Certo, nenhum de nós previra o terrível colapso dos últimos meses; será preciso conhecê-lo em seus mínimos detalhes para mensurar a que ponto de atrocidade se chegou"42. A posição teórica e prática de Mehring enquanto marxista revolucionário, suas experiências e seu admirável senso da história o conduziram logicamente a lutar contra a guerra imperialista e contra a social democracia que a apoiava oficialmente; desde as primeiras declarações contra a guerra de 14 o nome de Mehring está ao lado dos de Rosa Luxemburg, Karl Liebknecht e Clara Zetkin. Para divulgar sua própria teoria e reunir em um movimento organizado todos os que se opunham à guerra, Rosa Luxemburg e Franz Mehring publicaram uma revista na primavera de 1915: A Internacional. Em seguida, a revista dá o seu nome para o grupo. Devido à censura militar, só aparece o primeiro número e, por causa dele, Rosa Luxemburg e Mehring são processados.
Nesse número de A Internacional, Megring publica seu célebre ensaio Nossos velhos mestres e a política de nossos dirigentes. Nele, ele refuta as operações demagógicas de certos dirigentes oportunistas que tentavam se apoiar em citações de Marx e Engels para justificar sua atitude em face da guerra. Engels, dizia ele, não podia saber nada, em 1891, sobre a época imperialista, se bem que suas considerações de então sobre uma eventual guerra europeia "não têm nenhum valor no que concerne à guerra mundial imperialista". As decisões dos congressos internacionais de Stuttgart, Copenhaguem e Bale haviam dado uma linha de conduta clara aos partidos operários de cada país e Marx, Engels ou Lassalle nunca a teriam ultrapassado.
"Dito de outro modo, a política dos nossos dirigentes constitue a ruptura mais completa com a herança de nossos velhos mestres, como também com a história e todos os princípios da social democracia tal qual valiam até agora. A consequência lógica será um partido operário social-nacionalista reconciliado com o militarismo e a monarquia, aceitando as débeis reformas que se pode conceder ao proletariado numa sociedade capitalista. Esses representantes da política da direção que tiram tais conclusões escondem mal seu jogo e no fundo são muito pouco perigosos. Mas, em contrapartida, o movimento operário corre o risco de um verdadeiro envenenamento se, a longo termo, o fosso escancarado que separa o presente do passado pudesse ser compensado por slogans retumbantes e se as massas trabalhadoras fossem levadas por ilusões que lhe retirariam toda a energia."43
Com seus companheiros de luta do grupo Internacional, que mais tarde torna-se o grupo Espártaco, Mehring trava um combate resoluto contra a guerra, pelo renascimento do movimento operário alemão e da Internacional em bases revolucionárias. Foi precisamente durante esses anos que deu provas de sua profunda compreensão do marxismo. Sua visão segura da história lhe permitiu assim, em 1917, captar o sentido que tomava a Revolução russa de fevereiro e sobretudo a de outubro para a história do mundo. Mehring foi, em solo alemão, o primeiro marxista que tentou explicar aos operários alemães, na imprensa legal da social democracia independente, o sentido e a grandeza dessse acontecimento e de despertar a simpatia para a tática revolucionária dos bolcheviques.
Diferentemente de Rosa Luxemburg, que aliás estava na prisão nessa época e não dispunha informação validada, Mehring pode fazer um julgamento bastante preciso sobre a revolução. Certamente, no seu ensaio da primavera de 1918, ele opinava, como Rosa Luxemburg, que os bolcheviquesn haviam cometido um erro com o tratado de Brest-Litovsk; mas foi revisando pouco a pouco seu julgamento e, enquanto Rosa Luxemburg pensava que esse tratado e suas consequências conduziriam a revolução russa ao fracasso, Mehring, que via com maior clareza a proximidade do colapso do imperialismo alemão, afirma que a revolução russa não sofria perigo por causa de seu tratado de paz.
Alguns meses mais tarde, em seus artigos programáticos, Os bolcheviques e nós, aparecidos entre maio e junho de 1918 na Leipziger Volkszeitung, Mehring interpreta o tratado de Brest-Litovsk a partir de suas circunstâncias históricas reais: para reprovar, diz ele, os bolcheviques de se terem submetido à paz de Brest-Litovsk em vez de continuar a guerra, seria preciso demonstrar que a continuação da guerra teria realmente desencadeado uma revolução na Europa inteira.
"Aquele que pense poder dar essa prova pode jogar a primeira pedra nos bolcheviques. Mas até agora ninguém ainda tentou provar, e certamente ninguém provou um único pressuposto que fosse desse sucesso... a continuação da guerra teria sangrado a revolução russa ― em benefício do imperialismo da Entente, que os bolcheviques execravam tanto quanto o imperialismo das potências centrais."44
Mas o historiador marxista, como contemporâneo do acontecimento, não forneceu apenas uma análise da situação internacional em que se desenrolava a revolução russa; ele foi também o primeiro marxista alemão a fornecer aos leitores alemães uma característica do novo tipo de Estado, o poder soviético, criado pela revolução. No terceiro artigo da série Os bolcheviques e nós, que trazia o título Marx e a Comuna de Paris, Mehring compara o poder dos sovietes com a Comuna de Paris e resume assim sua conquista: "os sovietes são a ditadura do proletariado; esse regime é suficientemente flexível para deixar a todas as camadas das classes trabalhadoras um certo campo de ação; mas ele encontra tão poucos obstáculos em sua atividade que, pela sua maneira direta de tomar decisões e de executar suas medidas revolucionárias, ultrapassa todos os governos revolucionários que o precederam"45.
Esses ensaios são de alguma maneira o testamento de Franz Mehring: eram os últimos trabalhos importantes saídos de sua pluma; viveu ainda a revolução alemã de novembro, mas já estava muito doente para tomar posição através de comentários históricos e políticos.
Notas:
1 A edição mais completa das obras de Franz Mehring foi publicada de 1960 a 1966 por Thomas Höhle, Hans Koch e Josef Schleifstein na RDA (15 tomos); encontram-se também as obras maiores de Mehring: o conjunto de seus trabalhos de história da literatura, a história da guerra, a história do movimento operário e uma seleção representativa de seus artigos de jornalismo político. Franz Mehring, Gesammelte Schriften, tomos 1-15, Dietz Verlag Berlin. (A seguir, citaremos essas obras pela siglas: G. Schr.)
2 Trata-se de Eduard Bernstein (1850-1932).
3 Marx-Engels, Werke, Berlin 1956-1971, vol. 38; p.308 (MEW).
4 MEW, vol. 39, p. 98.
5 Citado em Josef Schleifstein, Franz Mehring, Sein marxistisches Schaften, Berlin, 1959, p. 63.
6 G. Schr., vol.13, pp. 299-356.
7 G. Schr., vol.11, pp. 141-226.
8 Cf. J. Schleifstein, Franz Megring, cit. , p.329.
9 Cf., em particular G. Schr., vol.13, pp. 56-65; 187-227.
10 G. Schr., vol.13, p. 64.
11 G. Schr., pp. 159-183.
12 Cf. J. Schleifstein, Franz Megring, cit. , pp.100 seg..
13 Cf. J. Schleifstein, Franz Megring, cit. , p.109.
14 G. Schr., vol.13, pp. 357-389.
15 MEW, vol.39, pp.96, 98.
16 G. Lukàcs, Franz Mehring (1846-1919), in Beiträge zur Geschichte der Asthetik, Berlin, 1954, pp. 318-403; para a crítica de Lukàcs. Cf. H. Koch, Franz Mehring Beitrag zur Marxistiscgen Literaturtheorie, Berlin, 1959, e J. Schleifstein, Franz Mehring, cit., pp. 91-95, 112, 114, 159, 250-251.
17 G. Schr., vol.11, pp. 141-226.
18 Cf., trabalhos já citados na nota 16, Koch (pp.174-295) e Schleifstein (pp. 124-133).
19 G. Schr., vol.10, p. 362.
20 G. Schr., vol.11, p. 310.
21 G. Schr., vol.12, p. 38.
22 Cf. , H.Koch, cit., pp. 133 seg.
23 Franz Mehring, Asthtische Streifzüge, em G. Schr., vol. 11, p. 226.
24 Franz Mehring, Die Lessing-Legende, in G. Schr., vol9, p. 246.
25 G. Schr., vol.1, pp. 579-580.
26 G. Schr., vol.1, pp. 579-580.
27 G. Schr., vol.2, p. 56.
28 J. Schleifstein, Franz Mehring, cit., pp. 225-256.
29 Lenin, O "esquerdismo", doença infantil do comunismo, in Oeuvres, vol.31, p. 18.
30 G. Schr., vol.2, pp. 701-702.
31 G. Schr., vol.14, p. 442.
32 Die Neue Zeit, a. XVII (1898-1899) , vol. 1, p. 338. (Citado em J. Schleifstein, Franz Mehring, cit., p. 271.)
33 Cf. por exemplo G. Schr., vol. 14, pp. 509 seg.
34 Die Neue Zeit, a. XVII (1899-1899), vol. 1, p. 388.
35 G. Schr., vol.14, p. 503.
36 G. Schr., vol.14, p. 239.
37 G. Schr., vol. 7, pp. 428 seg..
38 G. Schr., vol.2, pp. 687, 689-690.
39 G. Schr., vol. 15 p. 236; Lenin, Franz Mehring e a II Duma, Oeuvres, tomo 12, pp. 382 seg.
40 Cf. Clara Zetkin, carta a Franz Mehring, 15 de julho de 1906, citado in Schleifstein,Franz Mehring, cit., p. 300.
41 Rosa Luxemburg, Nach dem Jender Parteitag. Ausgewählte politische Schriften, 3volumes, Frankfurt/M, 1971, vol.2, p. 210.
42 Carta de Franz Mehring a H. Schlüter, citada in Sschleifstein, Franz Mehring, cit., p. 300.
43 G. Schr., vol.15, pp. 666-667.
44 G. Schr., p. 766.
45 G. Schr., pp. 769-770.
Tradução francesa por Martine Moreaus
Fonte: Histoire du marxisme contemporain; tomo 2. Textos recolhidos e apresentados por Dominique Grisoni. Milão: Giangiacomo Feltrinelli editore; Paris: Union Générale d'éditions, 1976, p. 48-81.
Tradução para o português: Sergio Granja
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