José
Ribamar Bessa Freire
25/08/2013
- Diário do Amazonas
Paca, tatu,
cotia sim. Esses e outros bichos desconhecidos na Europa foram encontrados no
litoral brasileiro e na Amazônia pelos portugueses, que tomaram emprestado das
línguas indígenas os nomes de animais, peixes, plantas, práticas culinárias,
tecnologias tradicionais e formas de fazer as coisas.
Mas, por
outro lado, os portugas trouxeram um mundo de coisas novas que não existiam
aqui: enxada, machado de ferro, papel, catecismo, bíblia, pecado, cupidez,
padre, soldado, pólvora, canhão e até animais como vaca, cavalo, cachorro,
galinha. Com as coisas, trouxeram os nomes das coisas.
A língua
portuguesa e as línguas indígenas, através de seus falantes, ficaram se
esfregando e se roçando uma nas outras, num intenso troca-troca. Esse atrito,
que a sociolinguística chama de línguas em contato, configurou o português
regional e marcou os idiomas indígenas, um dos quais serviu de base para o
Nheengatu, a língua que durante séculos organizou a comunicação entre todos.
Essas
questões foram discutidas segunda-feira passada na Universidade Federal do
Amazonas numa palestra sobre a História das Línguas na Amazônia organizada pelo
Programa de Pós-Graduação em História e ministrada por este locutor que vos
fala.
Trata-se da
história do casamento do pirarucu com o bacalhau. Um, de cabeça chata e
ossificada, mora nas águas quentes dos rios da Amazônia. O outro vive na
Europa, nas águas frias do Oceano Atlântico, mas ninguém viu sua cabeça, apenas
um velho de Gafanha da Nazaré, no Aveiro, que é mudo e não pode descrevê-la. Não
foi um casamento fácil porque o casal, que morava na casa de Noca, manteve
relações assimétricas, conflitivas, tensas, de dominação e exploração.
É como no
fado tropical de Chico Buarque: avencas na várzea, alecrins no igapó, pupunha
no Alentejo, tucumã no vale do Mondego, o rio Amazonas que corre trás-os-montes
e numa pororoca deságua no Tejo. Nós somos os filhos dessa união. embora haja
quem queira negar tal filiação, fruto de empréstimos de lá pra cá e daqui pra
lá.
Os empréstimos
O Nheengatu,
“uma das línguas de maior importância histórica no Brasil”, foi a língua
majoritária da Amazônia durante todo o período colonial, estendendo sua
hegemonia até a primeira metade do século XIX. Manteve contato permanente,
através de seus falantes, com outras línguas indígenas e com o português, o que
deixou marcas e influências mútuas bastante significativas. Numa amostra
registrada por Aryon Rodrigues, 46% dos nomes populares de peixes e 35% dos
nomes de aves na língua portuguesa falada no Brasil são oriundos do Tupinambá.
O Nheengatu,
que também não ficou congelado, fez vários tipos de empréstimos. Um deles foi
substituir palavras próprias por seu correspondente em português, como no caso
de ipéca que cedeu lugar a pato. Outro foi fazer adaptações fonéticas de termos
que designavam conceitos, funções e utensílios novos: cavalo em português deu
cauaru em nheengatu; cruz virou curusu; soldado, surára; calça ou ceroula,
cerura; porco, purucu; livro libru ou ribru; papel, papéra, e amigo ou camarada
deu camarára.
Mas não parou
aí. O Nheengatu ampliou ainda o valor semântico de palavras do seu léxico para
dar conta da nova realidade colonial, nomeando com nomes tupis certos elementos
desconhecidos dos índios, mas com os quais é possível estabelecer analogias:
assim boi e vaca foram denominados de tapir (anta); cachorro passou a ser
iauára (onça); vinho foi chamado de cauín e tesoura de piranha. Mas se boi e
vaca são denominados de tapir, como chamar, então, a anta? Ela virou tapireté
assim como a onça ficou iauareté, acrescentando a partícula eté, que significa
verdadeiro, legítimo, genuíno.
Durante dois
séculos e meio, índios, mestiços, portugueses e escravos africanos trocaram
experiências e bens nessa língua que se firmou como língua supraétnica,
difundida amplamente pelos missionários por meio da catequese. Denominada de
Língua Geral Amazônica pelos linguistas para diferenciá-la da Língua Geral
Paulista, ela é hoje bastante usada no Rio Negro. Graças a um projeto do
vereador indígena Kamico Baniwa, foi declarada,em 2002, língua cooficial em São
Gabriel da Cachoeira (AM), um município com área maior que Portugal, onde são
faladas 22 línguas.
Identidade
Dados sobre
a história das línguas na Amazônia estão dispersos em arquivos nacionais e
europeus. No Arquivo Histórico do Exército, no Rio de Janeiro, no fundo
intitulado Guerra do Paraguai, existe troca de correspondência com o presidente
da Província do Amazonas, em 1865, sobre o envio de recrutas para a Corte, além
de relatórios de interrogatórios feitos a prisioneiros paraguaios e mapas do
54º Batalhão de Voluntários da Pátria que possuía uma Companhia de Índios.
A
documentação da Guerra do Paraguai registra notícias de 'voluntários' do
Amazonas, monolíngues em Nheengatu, cujo recrutamento criou uma situação no
mínimo insólita, com consequências sobre as marcas identitárias étnicas e
nacionais: muitos soldados amazonenses, pertencentes ao 5º Batalhão de
Infantaria, que sequer podiam entender as ordens em português do seu
comandante, morreram nos campos de batalha do Paraguai, como 'voluntários da
Pátria', falando uma língua, compreendida pelo inimigo, mas desconhecida em sua
própria trincheira.
Do outro
lado, havia situação similar com soldados paraguaios, monolíngues em guarani
criollo, alguns dos quais foram feitos prisioneiros de guerra, e só puderam ser
submetidos a interrogatório com ajuda de soldados amazonenses, bilíngues em
Língua Geral-Português, que funcionaram como intérpretes e tradutores devido à
proximidade das duas línguas.
A partir da
Guerra do Paraguai, o Nheengatu começa a perder falantes, cessa a sua hegemonia
no Amazonas, fica limitado ao Rio Negro e a bolsões no Alto Solimões. Outras
línguas indígenas desapareceram sem deixar qualquer vestígio e quando uma
língua que não foi documentada deixa de ser falada, é como se nunca tivesse
existido. As cidades da Amazônia, entre elas Manaus e Belém, foram cemitérios
de línguas indígenas, lá estão sepultados os últimos falantes de várias línguas
extintas.
Todos nós
devemos nos preocupar com as línguas que estão morrendo, da mesma forma que nos
afligimos quando desaparece uma espécie animal ou vegetal, porque “isso reduz a
diversidade do nosso planeta”. A diversidade cultural, intelectual e
linguística é tão vital para a sobrevivência da espécie humana quanto à
diversidade biológica - escreve o linguista irlandês David Crystal no seu livro
"A revolução da linguagem”, onde apresenta algumas estratégias para
revitalizar línguas em perigo de extinção.
Uma delas é
justamente discutir o assunto nas escolas e na mídia, traduzindo a produção da
academia para uma linguagem acessível ao grande público, com o objetivo de
criar uma consciência planetária sobre a importância de preservar a
glotodiversidade.
- A história
da América - escreve Bartomeu Meliá - é também a história de suas línguas, que
temos de lamentar quando já mortas, que temos de visitar e cuidar quando
doentes, que podemos celebrar com alegres cantos de vida quando faladas.
O processo
de deslocamento linguístico na Amazônia mexeu com a nossa identidade e memória.
Esquecemos que esquecemos o Nheengatu, mas o conhecimento dessa trajetória é
essencial, porque como nos ensina Braudel, "a condição de ser é ter
sido". É isso: nós somos as línguas que fomos.
P.S. 1 - A trajetória do Nheengatu
é descrita no livro de minha autoria Rio Babel - a história das línguas na
Amazônia (2011, 2a. edição) e no artigo Da Fala Boa ao Português na Amazônia
Brasileira, publicado na revista Ameríndia da Universidade de Paris VII (1983)
e, posteriormente, na revista Amazônia em Cadernos (2000)do Museu Amazônico.
Agora, o artigo foi traduzido ao Nheengatu e publicado nesta língua pela
Editora da Universidade do Amazonas, no livro monolíngue organizado por Gilvan
Muller e Mauricio Adu Schwade intitulado Yẽgatu Resewa (2012).
P.S. 2 - Em Manaus, participei da
banca examinadora da dissertação "Soldados da Borracha: das vivências do
passado às lutas contemporâneas" do mestrando Frederico Alexandre de
Oliveira Lima, ao lado de Luiz Balkar Sá Peixoto Pinheiro (orientador) e
Patrícia Rodrigues da Silva.
Foto de Sérgio Freire de Souza
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