José Ribamar Bessa Freire
08/12/2013 - Diário do Amazonas
Nenhum pombo pousou sobre o seu caixão. A mídia não fotografou "a
presença do Espírito Santo" no seu velório. O governador Sérgio Cabral
não decretou luto oficial. O prefeito Eduardo Paes não deu um pio. Os
parlamentares do Rio, nem te ligo. As autoridades de Brasília, nem seu souza.
Os jornais, apenas notinhas discretas aqui e ali. Dom Waldyr Calheiros
(1923-2013), bispo de Volta Redonda (RJ), enterrado nesta segunda, 2 de
dezembro, morreu como viveu: longe do poder. Deo gratias!
A cobertura contrasta com a espetacularização do funeral televisionado
do cardeal dom Eugenio Sales (1920-2012), há um ano e meio, num show
exacerbadamente sensacionalista. Ambos, o bispo e o cardeal, tiveram intensa
atuação pastoral e política no cenário nacional. No entanto, no processo de
rememoração que ocorre nessas despedidas, cada um recebeu tratamento oposto. Para
Eugênio, tudo, até a voz trêmula e o tom compungido de William Bonner no Jornal
Nacional. Para Waldyr, nada. Por que?
A comparação pode ser útil para colocar a mídia na berlinda. A chave
para entender isto está no poema preferido de uma freira da Congregação do
Preciosíssimo Sangue, filha do Rodolfinho, o sacristão. Irmã Paula foi minha
professora em Manaus, em 1956, quando me escalou para recitar "Minha
Terra", de Casimiro de Abreu na comemoração do 7 de Setembro, no
Colégio Aparecida. Decorei. Subi ao palco, gaguejei e parei logo no
início, no verso "a terra de amores, alcatifada de flores".
Esqueci o resto. Um fracasso. Minhas irmãs choraram de vergonha. As primeiras
estrofes, porém, ficaram gravadas na minha memória:
- Todos cantam sua terra / Também vou cantar a minha / Nas
débeis cordas da lira / hei de fazê-la rainha.
Cada um no seu canto
Eis o que eu queria dizer. O poder canta os seus: dom Eugenio, nascido
numa fazenda em Acari (RN), na hora do batismo devia ter renunciado ao demo, "a
suas pompas e a suas obras", mas privou da intimidade dos ditadores a
quem abençoou e incensou com rapapés. Como hoje
tais "qualidades" estão em baixa, a mídia o alcatifou de
flores, atribuindo a ele tudo aquilo que dom Waldyr fez. É que não
dava para celebrar dom Eugênio com aquele currículo tenebroso. Era preciso
inventar outro. Então, inventemos.
O Globo, especialmente, mas também outros jornais de circulação nacional,
apresentaram o cardeal como combatente contra a ditadura, solidário com os
perseguidos políticos, embora até agora não tenha aparecido um só dos 5 mil que
ele teria ajudado, ao contrário surgiram alguns com nome e sobrenome a quem ele
se recusou a proteger e com quem foi ríspido, duro e nada cristão.
Depois de mortos, numa metamorfose midiática milagrosa, os dois prelados
deixaram de ser o que foram. Eugenio se converteu em Waldyr e este último
simplesmente sumiu do mapa. Os jornais rasgaram os manuais de redação,
bombardearam a opinião pública com fotos da pomba no caixão do cardeal e
juraram que ele havia sido "um campeão dos direitos humanos". Nos
dois casos, até quando se omitiram, os jornais fingiram que seu objetivo era a
informação, quando na verdade desinformaram e confundiram.
Com raras exceções representadas pela imprensa alternativa como Carta
Capital e por jornais locais - Folha do Aço de Volta
Redonda ou Notícias de Barra Mansa - a grande imprensa de
circulação nacional, para quem dom Waldyr não é notícia, não nos disse quem foi
ele. A Folha de São Paulo, na coluna Obituário, pelo
menos fez um registro correto, mínimo, sem qualquer destaque, escondidinho,
quase com vergonha. Mas fez. O resto é silêncio?
Não. Já que todos cantam sua terra, deixa-nos, leitor (a), que cantemos
a nossa. O silêncio dos jornais foi preenchido por vozes que se manifestaram
nas redes sociais, nos blogs, no face book, onde fervilharam mensagens rendendo
homenagens ao bispo de Volta Redonda que fez uma opção pelos pobres, não uma
opção preferencial, mas exclusiva.
As cordas da lira
E é aqui que eu entro, com as débeis cordas de minha lira. Cobri a
Conferência Nacional dos Bispos (CNBB) e pude entrevistar algumas vezes dom
Waldyr, a primeira em 1967 para o jornalO SOL, quando os militares
invadiram a sede da diocese e prenderam, por estarem panfletando, quatro
agentes de pastoral que trabalhavam com ele. Não recordo mais o que perguntei,
nem o que ele falou, só lembro de sua postura, de sua coragem e de seu
compromisso com os metalúrgicos de Volta Redonda, com os trabalhadores e com a
igreja da libertação.
Sem acesso à coleção do SOL encontrei no blog do
jornalista Roldão Arruda uma matéria intitulada "Morre dom Waldyr, o bispo
socialista", com a declaração dele naquela ocasião:
- Cercaram minha casa com metralhadoras, como se eu fosse um ladrão
ou criminoso.
O bispo foi perseguido - esse sim era um cabra macho - por defender
a liberdade sindical e a liberdade de expressão, por combater a tortura, a
censura e a repressão. Na prisão dos quatro agentes de pastoral que eram
militantes da Juventude Operária Católica, o bispo foi até o quartel de Barra
Mansa e disse ao general: "Me considere preso em solidariedade a eles. Se
estão presos por minha causa, eu sou o maior criminoso".
Como um bom pastor, tirou algumas ovelhas das garras do lobo mau e
escondeu muitos perseguidos políticos, ajudando-os, quando necessário, a fugir,
como foi o caso de Jesse Jane, militante da ALN, que afirma que ele "abriu
as dependências da diocese para discutir os direitos das mulheres, entre eles o
do aborto". Foi decisivo seu apoio à greve dos trabalhadores da CSN, no
governo Sarney, em 1988, quando três operários foram mortos pelo Exército.
Todos cantam sua terra? A memória é espaço de luta política. A gente
também canta a nossa. Com paus, com pedras, com palavras, com o que estiver ao
alcance das mãos. Jornalistas, antropólogos, juristas, teólogos,
estudantes, sindicalistas, trabalhadores, entre outros Italo Nogueira, Jorge
Vieira, Eduardo Graça, Marcelo Thimotéo, Miguel Baldez ocuparam as redes
sociais para homenagear Waldyr Calheiros Novaes, nascido em Murici (AL), filho
do seu Modesto e de dona Maria, um dos nossos. Aqui, no Diário do
Amazonas registramos nosso adeus. Ele está no nosso coração e na nossa
memória. Nós não o esqueceremos. O cardeal é deles, mas o bispo é nosso.
P.S. Ver tambem UM CARDEAL SEM PASSADO
Fonte: http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=989
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