José Ribamar Bessa Freire
23/06/2013 - Diário do Amazonas
Sinto-me no dever de comentar aqui as
manifestações de rua que estão pipocando nas principais cidades brasileiras,
acuando a classe política que não está entendendo bulhufas e, perplexa, morre
de inveja porque nem todos os partidos políticos juntos são capazes de
mobilizar tanta gente. Confesso que aquela passividade até então dominante me
incomodava: será que essa geração é castrada? Não, não é. Silvinho, um
sobrinho-neto de 15 anos, me escreve de Manaus contando, eufórico, como foi seu
primeiro banho de rua. Ele quer ser antropólogo. Começa bem.
O Brasil, ao aprender
o caminho das ruas, acordou com um vigor novo e forte. Essa é a notícia, a
novidade. No entanto, não será esse o tema de nossa conversa dominical, pois
interesses jornalísticos nem sempre coincidem com a nossa memória afetiva. É
que não posso deixar o Miguel Borges ir embora sem lhe dar um adeus. Convivemos quase diariamente,
em 1968, quando ele era chefe de reportagem do jornal O PAIZ, no
Rio, e eu um 'foca' ainda não amestrado.
Digo quase diariamente,
porque de vez em quando, eu não comparecia ao trabalho. Borges ia à loucura. Na
primeira vez, perguntou:
- O que foi que
aconteceu?
- Meu pai morreu -
respondi, compungido e cabisbaixo, o que era absolutamente verdade. Apenas
omiti a data: três anos antes do episódio aqui narrado. Miguel me deu os
pêsames, a pauta do dia e um conselho: em casos como esse, eu devia avisá-lo
por telefone.
Ele sabia que podia
contar comigo. Quase sempre - olha o 'quase' outra vez - eu o
acompanhava madrugada adentro, pau pra toda obra, ajudando-o a fechar o jornal.
Isso porque o trabalho de repórter sempre me deixava eletrizado. Na cozinha da
redação, eu entrava em transe, ficava cego, não via mais nada: só jornal.
Respirava jornal, meu café da manhã era jornal, almoçava jornal, merendava
jornal, jantava jornal, dormia sonhando com jornal. Enquanto fui repórter, o
jornal era minha cachaça, uma droga na qual era viciado. Criava dependência e
fazia mal, é verdade, mas 'dava barato'.
Era tudo na base do
entusiasmo, do prazer de fazer jornal. Por isso, sempre fui explorado. As horas
extras nunca foram remuneradas, o que me levava, de vez em quando, a tirar por
conta própria um dia de descanso, que ninguém é de ferro.
O velório da titia
Na segunda falta,
matei minha avó Maria Elisa. Ela estava enterrada havia mais de dez anos e,
para atualizar o cadáver, entrei na redação com um chumaço preto no bolso da
camisa, de luto, como era costume na época. Contei histórias dela lá do
Maranhão, onde Borges havia vivido sua infância. Falei que meu nome era uma
promessa da vovó a São José de Ribamar, que eu era o xodó da vovó, não podia
deixar de ir ao velório, você entende?
- Porra - gritou o
Borges - com todo respeito à tua avó, por que você não telefonou dizendo que
não podia vir?
Acontece que se eu
telefonasse, Miguel Borges, experiente jornalista, sabia como me convencer a ir
trabalhar. Bastava acenar com um fato novo que despertasse minha curiosidade.
Nascido em Picos, Piauí, em 1937 - dez anos antes de mim - ele veio em 1955
para o Rio, onde atuou em vários jornais: Tribuna da Imprensa, Jornal
do Commércio, Última Hora, O Dia. Cineasta, dirigiu o episódio Zé
da Cachorra no filme Cinco vezes favela produzido
pelo Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE, em 1962. Na época, já havia
dirigido Maria Bonita - Rainha do Cangaço, Canalha em crise e Perpétuo
contra o Esquadrão da Morte. Depois, fez mais outros.
Um belo dia, numa das
tantas faltas, quando apareci diante de Miguel Borges, já havia esgotado todo
meu estoque de parentes mortos. Decidi abater, com um câncer fulminante, minha
tia Conceição, que era freira, e continuava vivinha da silva. Descrevi velório,
cortejo fúnebre, coroas de flores, lágrimas, sobrinhos inconsoláveis, missa de
corpo presente cantada pelas freiras Adoradoras do Preciosíssimo Sangue, com
tanta riqueza de detalhes, com tanto realismo, que eu mesmo já estava quase
acreditando que titia havia subido o Boulevard Amazonas em direção ao São João
Batista.
- Ela tinha um peito
menor que o outro e não tinha filhos, eu era como se fosse seu filho, você me
entende? - disse, ensaiando um esgar, uma careta tristonha. Não
lembro, mas acho até que deixei cair uma lágrima furtiva.
Miguel Borges
entendia. Escutou tudo calado, como se estivesse em Picos, na caatinga brava,
no carrascal, ouvindo histórias de onça. Ele gostava de contar uma história,
registrada em sua biografia escrita por Antônio Leão da Silva Neto - Miguel
Borges: um lobisomem sai da sombra (2008), na qual o personagem, um
caboco cujo braço foi comido por uma onça, ganhou o apelido de "Chiclete
de Onça" ou "Resto de Onça".
Maria Bonita
Quando Miguelzinho
tinha um ano, Maria Bonita, a mulher de Lampião, tascou-lhe um beijo. Mais de
70 anos depois, ele contou a seu biógrafo:
- Eu estava no colo
da Paula, minha babá, uma mulher bonita, gostosa, coxuda e perturbadora.
Maria Bonita me viu nos braços de Paula, e disse 'que neném bonitinho' e me deu
um cheiro e um beijo. Posso me gabar de que Maria Bonita me pegou no colo e me
deu uma cafungada.
Contador profissional
de causos, Borges sabia identificar um narrador chinfrim, primário. Suspeitou
que minha tia, a irmã Conceição, ou não existia ou continuava viva.
- "Você é ator
de segunda. Está mentindo" - disse, com a autoridade de cineasta, narrador
e ator, de quem havia interpretado um personagem no filme Boca de Ouro,
de Nelson Pereira dos Santos. Usando a voz de chefe, seca e séria, fez elogios
à qualidade do meu trabalho - bom repórter, bom texto - à minha
dedicação, às horas extras e pererê-pão-duro, mas deixou claro:
- "Na próxima
vez, peço teu desligamento do jornal. Tou avisando".
Duvidei: um membro do
Partidão não demitiria ninguém. Eu havia visto o Zé da Cachorra,
episódio que ele dirigiu em Cinco Vezes Favela, filme que
marcou a estética do Cinema Novo e abriu os caminhos trilhados por outros
cineastas. Lá tinha tudo: grilagem, especulação imobiliária, favela,
organização popular, passividade e resistência, luta de classes, corrupção,
orgia, mulheres, elites podres.
Com essa avaliação,
paguei para ver: ousei faltar uma vez mais. Quando entrei na redação, Miguel
Borges estava possesso, me chamou, na frente de todo mundo, de irresponsável,
de enganador, de profissional inconsciente.
- Quem morreu agora?
- perguntava aos berros.- Fala: quem morreu?
Com medo de dar azar,
não tive coragem de matar minha mãe ou uma das minhas nove irmãs, todas vivas.
Ainda me passou pela cabeça fuzilar uma delas, a Pretinha, batizada Maria
Aparecida, que sofria de asma. Mas ele não ia acreditar. Seria uma morte inútil.
Resolvi falar a verdade:
- Ninguém morreu. Foi
uma namorada. Faltei essa e outras vezes pra sair com ela. Pode me demitir.
Zé da Cachorra
Já me sentia no olho
da rua. No entanto, surpreendentemente, Miguel Borges mudou o tom de voz, me
deu um abraço carinhoso e, com um largo sorriso, disse conciliador, deixando a
redação inteira estupefata:
- Namorada? Porra,
Riba, por que você não avisou logo desde o início? Pra mim, esse é o único
motivo válido para faltar ao trabalho: UMA MULHER. Tá justificado. A próxima
vez, avisa antes. Agora, vai trabalhar.
Lembrei que no Zé
da Cachorra, enquanto o grileiro cooptava o político corrupto, depois de
uma orgia, a câmara, ou seja os olhos do Miguel Borges escaneavam o corpo de
uma mulher, percorrendo-o de ponta à ponta.
Esse foi o Miguel
Henrique Borges, 76 anos, o menino beijado, cheirado e cafungado por tantas
marias bonitas e que nos deixou nesta semana, vítima de uma parada cardíaca.
Morreu em São Lourenço (MG), onde vivia desde 1997. Antes dele, se foram Felix
Athayde, Newton Rodrigues, Joel Silveira. Ele é o último dos grandes editores
de O PAÍZ - um diário vespertino que durou de agosto a
dezembro de 1968, uma existência tão fugaz que sequer consta na biografia de
Miguel Borges, mas que marcou quem com ele conviveu.
- Meu gordinho não
tinha idade para morrer. E ele estava muito feliz - declarou ao Globo sua
mulher, Maria Elisa Garcia, que o conheceu em 1984, na Banda de Ipanema.
No avião que me leva
a um evento acadêmico em Uberlândia, no Museu do Índio da Universidade Federal
(UFU), enquanto tiro um cochilo, ouço Borges me cobrar:
- Essa é a notícia.
Por que você não cobriu as manifestações de rua? Por que faltou? Quem
morreu agora?
- O nosso gordinho
morreu - respondo. - Meu texto está de luto.
P.S. - Ilustraçao do nosso
parceirinho Fernando Assaz Atroz.
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