No enfrentamento ao tráfico de pessoas, tecer outra rede[1]
William César de Andrade[2]
O tráfico de pessoas é semelhante a uma
teia/rede, composta por uma infinidade de fios que se cruzam e se entrelaçam.
Em cada um deles está uma pessoa, que tem uma história, um lugar de onde partiu
e que agora vive marcada por uma trama muito maior do que tudo o que tenha
sonhado ou desejado.
No tênue fio de um menino nascido no interior
do Norte do Brasil há uma infância marcada por tantas dificuldades que é
difícil dizer por qual razão o sonho de mudar a realidade foi crescendo, até se
tornar um desejo de sair daquele lugar, de arriscar tudo por algo melhor. Uma
de suas poucas alegrias era o futebol, onde o giro da bola, o drible e a magia do
gol, faziam sorrir e pensar que viver valia a pena.
Noutro fio, tão tênue quanto o primeiro está
uma jovem mulher, bonita e pobre ou como algumas vezes gostam de dizer, “com
poucos recursos”. À sua volta a realidade é de privação, senão da comida ou do
conforto, mas ainda assim, ausência de um futuro em que ela se veja feliz. Ela
teima em querer e buscar o que deveria ter por direito ou por muito desejar.
O fio de um homem adulto que vê a seu redor
uma situação que lhe causa dor e sofrimento. Forte para trabalhar, mas sem
emprego ou sem a possibilidade de viver dignamente com aquilo que lhe oferecem.
O pouco estudo não o intimida e está disposto a arriscar o que for necessário
para melhorar de vida.
Outro fio, tecido num corpo que foi sendo
modificado e agora já é difícil afirmar se é ele ou ela, também habitam sonhos
e desejos de uma vida melhor, ainda que isso signifique uma quantidade a mais
de sacrifício pessoal e distanciamento de sua terra.
Em cada um desses fios e nos tantos outros que
fazem a teia/rede dos que buscam, querem ou são levados a acreditar que fora de
sua terra, seja em outra região do país, seja em outro lugar do mundo estão as
respostas que procuram, Eles não percebem, mas para olhos cobiçosos, eles são
mercadoria humana, de um dos negócios mais lucrativos que existe e que
curiosamente poucas vezes dá errado, e resulta em criminalização e efetiva
punição.
Na ponta desse negócio estão o aliciador e o
aliciado. O primeiro sabe que suas promessas e o mundo de oportunidades que
apresenta não são reais, pior ainda, sabe que a vida daquele que ele ou ela
tenta convencer nunca mais será a mesma se a ‘transação’ se concretizar. De
fato o destino daquela criança, homem, mulher ou travesti quase nada
significam, pois se trata apenas de um comércio regido pelas inflexíveis regras
da oferta e da procura. Pouco lhe importa que isso seja tráfico de pessoas!
Para o ou a aliciada a realidade é totalmente
outra, pois é a perspectiva de finalmente ter uma oportunidade que ocupa seus
pensamentos. Ele ou ela não se ilude facilmente, pois nada na vida lhe chegou
de modo fácil ou sem esforço. Mas o que leva um e outra a seguir em frente é
uma profunda esperança, em alguns casos bem próxima ao desespero, de sair definitivamente
de tudo o que o/a oprime ou reduz. Seu horizonte é, portanto, muito maior do
que a realidade imediata oferece.
Os fios dessa teia/rede estão interligados
entre si e também com realidades que englobam a sociedade e até mesmo o
conjunto dos países. O tráfico humano não acontece apenas porque foram feitas
escolhas erradas por algumas pessoas, fossem quais fossem suas motivações; O
tráfico também não é fruto apenas da ganância de alguns em busca do lucro
rápido e de uma ética em que os fins justificam os meios. Há mais envolvidos
nesse processo e, no mínimo, isso significa a presença ou a ausência da
sociedade e do estado.
A sociedade, isso é, os grupos humanos e
instituições nos quais estavam inseridos cada um dos fios/pessoas traficadas
tem a imensa responsabilidade de cuidar dos seus, de ser uma presença
integradora e ao mesmo tempo estruturante das condições de vida. Quanto mais
precária e distante dos direitos fundamentais da pessoa humana, mais a
realidade irá propiciar a existência do tráfico e de pessoas que venham a ser
traficadas. É evidente que na sociedade brasileira predominam conflitos de
interesse entre os grupos e instituições (tal como ocorre de modo geral nas
sociedades complexas), mas isso não nos isenta de responsabilidades e do
desafio de viabilizar uma vida social em que todos tenham seus direitos
assegurados e perspectivas de felicidade.
O estado brasileiro é fruto da cidadania de
seu povo e deve refletir em sua legislação e atuação dos órgãos públicos o
pleno respeito à ordem democrática e, portanto, aos direitos inalienáveis da
pessoa humana e suas instituições representativas. Suas políticas públicas devem
assegurar o atendimento das necessidades básicas de todos os que habitam no
Brasil - e de seus filhos e filhas que estão no exterior - e promover a
superação de desigualdades, bem como disponibilizar oportunidades, para todos,
de caminhos adequados à realização de suas potencialidades humanas. Combater o
tráfico de pessoas e todas as outras formas de violência contra os direitos
humanos e ilicitudes é tarefa do Estado e precisa ser implementada a partir de
políticas claramente definidas em conformidade com a realidade atual.
Celebrar o Dia Internacional do Enfrentamento
ao Tráfico de Pessoas (23/09) é sem dúvida afirmar a urgência de mudanças
estruturais no que tange ao desenvolvimento e à distribuição da riqueza. É superar
exclusões e assegurar uma vida com dignidade e possibilidade de sua plena
realização. Nesta direção estão algumas iniciativas e alguns desafios:
a) Promulgar e implementar o II Plano Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas;
)b) Estruturar em cada unidade da Federação
Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas;
c) Dar continuidade a instalação de Comitês de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, criando inclusive um Comitê Nacional, reforçando
a presença da sociedade civil organizada;
d) Construir um arcabouço normativo/legal que
possibilite a efetiva criminalização dos agentes e demais pessoas envolvidas no
Tráfico de Pessoas;
e) Ampliar e/ou viabilizar iniciativas advindas
da sociedade civil no campo da prevenção e da assistência às vítimas do tráfico
de pessoas;
f) Viabilizar processos de plena integração
social às vítimas do tráfico de pessoas, evitando todo e qualquer processo de
revitimização.
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[2]
Membro do Grupo de apoio ao Setor Mobilidade Humana da CNBB e consultor do
Instituo Migrações e Direitos Humanos (IMDH).
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