José Ribamar Bessa Freire
16/12/2012 - Diário do Amazonas
O
bodó Cascudinho sempre chegava atrasado na Escola do Igapó, frequentada pelos
peixes da Amazônia. Foi lá que ele ganhou a fama de mentiroso, porque inventava
histórias mirabolantes para justificar o seu atraso. Na segunda-feira, no
primeiro dia de aula, eis o que aconteceu.
Ás 7h00 da manhã, a sineta tocou. Tia
Piraíba, a robusta e roliça professora da Escola do Igapó, balançou as duas
nadadeiras dorsais e fez a chamada:
- Zezé
Tucunaré?
- Presente, professora.
- Manu Pirarucu?
- Presente, tia Piraíba! - respondeu o
pirarucu-de-casaca, enquanto lixava as enormes escamas com sua língua de osso.
- Pacu Tribufu?
- Presente, fessora! - disse o
pacu-curupeté, de cor cinza arroxeada, balançando seu ventre amarelo com
manchas alaranjadas.
- Cascudinho Bodó?
- ????
- Cascudinho Bodó?
- Faltou - responderam os colegas.
Cascudinho Bodó não estava. Só chegou
muito mais tarde, na hora da merenda.
- Discente Cascudinho, por que você se
atrasou?
Todos fizeram uma roda para ouvir a
resposta. A hora do recreio já era conhecida no igapó e adjacências como a
novela das nove.
- Tia Piraíba, desculpa. Saí cedinho de
casa, lá no lago Espelho da Lua. Era ainda de madrugada. O lago, todo prateado,
banhado pelo luar, refletia dentro dele a lua que parecia uma tapioca de beiju.
As margens estavam protegidas por buritizeiros, açaizeiros e outras palmeiras
que, enfileiradas, se perfilavam como sentinelas avançadas. Soprava uma brisa
suave com cheiro de pitanga e de ervas aromáticas que se espalhavam pelas
margens do lago de água cristalina. Eu vinha nadando velozmente, alegremente,
ouvindo o canto dos pássaros, contemplando o balé das borboletas coloridas e o
voo rasante das garças que, em bandos, desenhavam piruetas graciosas no céu.
Foi quando o sol da liberdade em raios fúlgidos brilhou no céu da pátria. Nesse
instante, eu estava saindo do lago e ia entrar no rio, mas fui obrigado a frear
bruscamente. Quase capotei.
- Por que freou? Freou por quê? -
perguntou, com a respiração suspensa, a Piaba Vagaba de cor carmesim, pele
manchada e barbatanas flácidas, interpretando a curiosidade de
todos.
- Tive de frear, porque naquele caminho
hídrico congestionado não havia espaço sequer para um peixe-agulha. A água
estava tomada por milhares e milhares de peixes de mais de 2.000 espécies
diferentes. Os cardumes nadavam contra a correnteza, uns colados nos outros, e
subiam o rio para desovar em suas cabeceiras, procurando os berçários que lá
existiam. Essa piracema gigantesca deu um nó no trânsito e engarrafou rios,
lagos, igarapés, furos, paranás, enseadas, mangues, cacimbas e todo o mosaico
de veredas aquáticas. Eu tive de esperar aquela multidão passar. Por isso, me
atrasei - completou Cascudinho, ofegante. Podem confirmar com os meus vizinhos.
Moro no lago Espelho da Lua, Buraco n° 2433, Nhamundá, Amazonas,
Brasil, CEP 69.140-000, email cascudinho@amazonet.com
- Mentiroso! - exclamou com as costelas
à mostra o gordo e untuoso Bibi Tambaqui, enquanto devorava 50 tucumãs, oito
cupuaçus, 82 castanhas e dois cachos de açaí.
- Ele está inventando - reforçou
Cunhatã Matrinchã cor de prata, cheia de espinhas. Ela movimentava as
nadadeiras alaranjadas e, com suas três fileiras de dentes, mastigava um
besouro e 43 moscas.
Cascudinho disse que queria ver sua mãe
Madame Bodó mortinha num aquário ou numa rede de pescar se tudo aquilo não
fosse verdade. Jurou:
- "Cruz de aço / cruz de ferro /
se estou mentindo / vou pro inferno!"
- Ah, eu gostei dessa história. Vou
contar pra vovó Elisa - falou Zezé Tucunaré, requebrando seu corpo com três
pintas pretas, enquanto merendava farofa de aranha caranguejeira.
Vovó Elisa, a Traíra de Costa-Lisa, com
os olhos verdes arregalados, enfeitou ainda mais a história da piracema,
repassando-a para seu vizinho Tracajá Cheio-do-Chá, que a contou para Surubim
Coisa-Ruim, que narrou para Piramutaba, que encaminhou num email para Big Fish,
lá nos Estados Unidos, que traduziu para o inglês, fez um filme e espalhou pra
Deus e o mundo as peripécias do Bodó, que ficou conhecido no Alabama como Ed
Bloom.
As histórias de Cascudinho começaram
subir os rios, até suas cabeceiras. Na terça-feira, às 7h00 da manhã, começou
tudo de novo na Escola do Igapó, lá na floresta alagada. Ele, então, contou
outras histórias. Inventou ainda novas histórias na quarta-feira e na quinta-feira,
mas na sexta-feira, quando decidiu contar a verdade, ninguém mais acreditou.
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