José
Ribamar Bessa Freire
23/12/2012
- Diário do Amazonas
A
velhice nos dá coragem. Por isso, depois de tanto tempo, ouso confessar,
publicamente, sem qualquer pudor e até com certo orgulho, que o cineasta Silvio
Tendler e eu, na juventude, dormimos na mesma cama. Sei que dessa forma
escandalizo algumas mentes pudibundas, como a do general-de-exército Renato
César Tibau da Costa. Mas fazer o quê? Não posso continuar ocultando o fato
ocorrido há mais de 40 anos, porque tem testemunha: a doutora Giane Lessa.
Portanto, às favas com os escrúpulos, como disse o coronel Jarbas
Passarinho ao aprovar o AI-5.
Quem
é, afinal, o general Renato César? Em 1964, era apenas um aspirante-a-oficial
da arma de Cavalaria, recém saído da Academia das Agulhas Negras (AMAN).
Paraquedista, comandou depois a 1a. Brigada de Infantaria de Selva, em Boa
Vista (RR). Agora, presidente do Clube Militar, ele organizou, em março, uma
festa de arromba para comemorar o aniversário do golpe de 1964. Ou seja, quase
meio século depois, o general queria celebrar a deposição do presidente eleito
por voto popular, assim como a prisão, tortura, morte ou exílio daqueles que se
opuseram ao golpe.
A
velhice deu coragem também a ele. Diz o ditado popular que quem não tem Rubicão
caça com Guaxindiba. O César de igarapé, numa gesta épica, cruzou, pois,
valentemente, o rio Guaxindiba, em São Gonçalo, atravessou, incólume, o
conturbado trânsito da avenida Rio Branco, entrou sem nenhum ferimento no Clube
Militar e, destemido, sem vergonha na cara, festejou com frase heroica para a
posteridade:
- Alea jacta est.
Os
dados lançados eram pura provocação do general. Essa foi, talvez, sua última
grande batalha, se é que existiram outras. O "inimigo" decidiu zonear
a festa do general, considerando-a como uma afronta à sociedade brasileira e à
democracia. Manifestantes protestaram. Houve tumulto generalizado e
enfrentamento com a polícia. Desacostumado com o exercício da discordância, o
general ficou chateado porque cortaram o seu barato. Foi até a 5a. Delegacia de
Polícia, no Centro do Rio, e exigiu abertura de queixa-crime contra Silvio
Tendler por "constrangimento ilegal qualificado".
Batalha do Clube
O
cineasta, efetivamente, em mensagem no you tube, havia apoiado o
protesto, como qualquer cidadão sadio e sensível pode fazê-lo num regime
democrático. Mas acontece que no dia da Batalha do Clube Militar, 29 de março
de 2012, ele se recuperava de uma cirurgia de descompressão da medula.
-
Eu estava em casa, tetraplégico, e eles me acusaram de ter usado paus e
pedras na manifestação - disse Tendler que, nesta última quinta-feira, depois
de meses do ocorrido e ainda com sequelas da operação, foi depor atendendo
intimação do delegado.
A
cadeira de rodas que o levou até a delegacia carregava nela 62 anos de vida bem
vivida, 40 filmes que dirigiu e toda sua história: os cursos de cinema que fez
na França, os prêmios de público e da crítica que ganhou em festivais, os
troféus nacionais e internacionais, os milhões de espectadores que viram seus
filmes entre os quais O Mundo Mágico dos Trapalhões, Jango e
Os Anos JK e até mesmo a medalha Tiradentes, condecoração que recebeu
da Assembleia Legislativa do Rio pelos relevantes serviços prestados à cultura.
Ex-presidente
da Associação Brasileira de Cineastas, Tendler atuou em diversas frentes
culturais: dirigiu a Fundação Rio Arte e o Centro Cultural Oduvaldo Viana
Filho, foi diretor da TV Brasília, secretário de Cultura e Esporte do governo
Cristovão Buarque no Distrito Federal e Coordenador de Audiovisual para o
Brasil e o Mercosul da Unesco. Professor de Comunicação Social da PUC-RJ, ele
não entrou sozinho na delegacia. Lá estavam, solidários, algumas dezenas de
manifestantes com cartazes e fotos de desaparecidos políticos.
No
final, esse inquérito fajuto não vai dar em nada, mas não pode passar em branco
o topete do presidente do Clube Militar, que não tomou conhecimento do fim da
ditadura. Não sabemos se o general paraquedista Renato César participou das
gloriosas batalhas que aconteceram no governo militar. Numa delas, narrada por
Cony, um general com sua tropa cercou a Faculdade Nacional de Direito e, num
arroubo de bravura, ocupou o território inimigo: a cantina do Centro Acadêmico
Candido de Oliveira (CACO), depois de prender vários "combatentes do
exército adversário": estudantes imberbes armados de pau e pedra.
Essa
foi uma façanha heroica digna do outro César depois da campanha do Egito.
César, não o Renato, mas o Júlio, comemorou a vitória arrasadora com a
conhecida frase "Veni, vidi, vici" (Vim, vi e venci). Qual a frase do
César de igarapé, o general Renato, depois da Batalha do Clube Militar, quando
foi peitado pelo protesto dos manifestantes? Podia muito bem ser, num latim de
missa capenga:
-
Veni, vidi et no credo quod vidi (Vim, vi e não acredito no que vi).
Festim diabólico
A
César o que é de Renato e a Silvio, o que é de Tendler. No domingo passado,
Silvio Tendler publicou carta endereçada ao delegado responsável pelo
inquérito, onde afirmou com todas as letras que era contra a comemoração do
"aniversário da tenebrosa ditadura, que torturou, matou, roubou e
desapareceu com opositores do regime". Protestou contra sua
criminalização: quem deve ser incriminado é quem estava comemorando,
contrariando a determinação da presidenta da República - diz a carta.
O
cineasta sugere ao delegado que "procure apurar se o canalha que prendeu,
torturou e humilhou minha mãe nas dependências do Doi-Codi participou do
'festim diabólico'. Isso sim é constrangimento ilegal. E já que se trata de
assunto de polícia, aproveite para pedir ao 'constrangedor ilegal' que ficou
com o relógio da minha mãe - ela entrou com o relógio no Doi-Codi e saiu sem
ele - que o devolva. É fácil encontrar o meliante. Comece pelo comandante do
quartel da Barão de Mesquita em janeiro de 1971. Já que eles reabriram o
assunto, o senhor pode desenterrar o processo".
A
velhice também deu coragem ao cineasta, que não é lá tão velho assim. A ele
expresso, aqui no Diário do Amazonas, minha solidariedade. Afinal, ninguém
esquece uma cama compartilhada.
Foi
assim. Faz alguns anos, uma doutoranda que eu desorientava, Giane Lessa, me
convidou para almoçar num restaurante com Silvio Tendler, a quem eu não
conhecia. Durante o almoço, descobrimos, surpresos, que nossos caminhos por
pouco não se cruzaram: ambos fomos exilados no Chile e na França, mas ele
chegou dias depois de minha saída desses países.
Tendler
perguntou onde eu havia morado em Santiago. Falei que passei um período na casa
do Thiago de Mello e depois fui para uma pensão. Já quase na sobremesa, ele
quis saber o endereço da pousada:
-
Calle Michimalongo - eu disse.
Era
muita coincidência, ele havia se hospedado no mesmo endereço em Santiago, numa
casa onde havia três quartos com um total de 12 camas. Dona Adriana, a
proprietária, e Juanita, a empregada, foram lembradas durante o nosso almoço.
Finalmente, depois do cafezinho e na hora de pagar a conta, quase se despedindo,
ele perguntou:
-
Por pura curiosidade, qual era teu quarto?
-
Aquele que ficava em frente da sala de jantar.
Foi
o mesmo quarto que o abrigou.
-
Qual das quatro camas?
-
A que estava encostada na janela.
Foi
aí que descobrimos: no nosso exílio, havíamos dormido na mesma cama. Depois que
eu sai, ele ocupou minha vaga. O general Renato César que me desculpe, mas eu
não podia deixar passar em branco essa agressão ao meu colega de cama e de
exílio. Afinal, como cantou Paulo Leminski:
En
la lucha de classes / todas las armas son buenas: / piedras, / noches,/ poemas.
P.S.
- Aos leitores, fiéis e infiéis, que me acompanharam em algumas dessas viagens
textuais durante o ano, um Feliz Natal.
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