José
Ribamar Bessa Freire
10/03/2013
- Diário do Amazonas
-
Pinto porque a vida dói - disse um dia Iberê Camargo. Lembrei do artista
plástico gaúcho agora, no momento em que completo mil textos publicados na
mídia impressa. Este aqui é o milésimo. Por que escrever tanto? Talvez porque a
vida dói e uma forma de tornar a dor suportável é manifestar tal sentimento,
seja com pincel e tinta, seja com letra e palavras. Ou através da voz, do som,
da música, do corpo.
Diante
de pergunta similar feita em entrevista no canal de televisão France
Culture, em 1990, o sociólogo Pierre Bourdieu respondeu:
-
Escrevo, em primeiro lugar, porque isso me dá, psicologicamente, muito prazer.
Além disso, porque fui um jovem rebelde e espero continuar sendo um velho
rebelde. Essa foi a forma que encontrei de ser fiel à imagem que tenho de mim
mesmo. Pode parecer narcisismo, mas é assim. O mundo social seria insuportável
para mim, se eu não fosse capaz de me indignar.
Ele
morreu rebelde, depois de sugerir que a gasolina que move a escrita, pelo menos
a sua escrita, é o descontentamento, a necessidade de combater as injustiças do
mundo. Quem escreve com essa perspectiva, cavalga as palavras da mesma forma
que Dom Quixote encilhava o Rocinante, embora Carlos Drummond nos ensine que as
palavras "são muitas, eu pouco" e que, por isso, sendo elas
indomáveis, "lutar com palavras é luta mais vã". O poeta, porém,
relativiza o pessimismo, acrescentando: "entanto lutamos mal rompe a manhã".
Outro
tipo de motivação foi apresentada por Júlio Cortazar, eu acho, mas estou com
preguiça de verificar no Google. Li em alguma parte que o escritor argentino ou
outro profissional da palavra teria dito alguma coisa assim: "Escrevo para
descobrir o que penso", destacando que o ato de escrever o ajudava a
organizar seu pensamento.
Existem
outras motivações prosaicas, mas igualmente legítimas. Há quem escreva pensando
com isso conquistar namoradas (os) ou ganhar uns trocados, outros ainda
escrevem como quem dá aulas, com o furor pedagógico de compartilhar o que sabe,
todos com a esperança de encontrar leitores com quem compartilhar as dores, as
dúvidas ou as certezas.
Digno de nota
O
primeiro texto que publiquei num jornal nasceu de uma dor, de uma raiva. Ficou
fora da lista dos mil, porque não consegui localizá-lo. Foi em 1964 ou 1965,
quando eu estudava o curso pedagógico, no Instituto de Educação do Amazonas. No
IEA velho de guerra, fui aluno de excelentes professores como Orígenes Martins,
Carlos Eduardo Gonçalves, Mercedes Ponce de León, Isis Falcone, José Braga,
Garcitylzo do Lago, Dilma Montezuma e mais alguns poucos que nos transmitiram o
prazer de dar aulas.
A
diretora do IEA, em plena ditadura militar, era dona Neusa Ferreira,
arbitrária, autoritária, vingativa, perseguidora. Acontece que o curso era
noturno e houve um apagão geral na cidade. Dona Neusa, moralista, temia que as
alunas fossem bulinadas. Por isso, ordenou a retirada dos alunos e fechou-se lá
dentro com as alunas. Lá fora, uma multidão de marmanjos ficou à espera de
namoradas, irmãs, vizinhas.A diretora gritava, ordenando que fôssemos embora.
Aproveitamos a escuridão para vaiá-la e xingá-la. Ela chamou a polícia. O
pau comeu na casa de Neusa.
Depois
de muito sopapo e até de estudante preso, como a luz não voltava e a noite
avançava, ela liberou o mulherio já quase de madrugada e eu, enfim, pude
acompanhar minha irmã Dile de volta à casa, onde havia uma velha máquina de
escrever. À luz de vela, escrevi um texto horroroso, que começava assim, com um
chavão: "Fato digno de nota ocorreu na noite de hoje...". De qualquer
forma, consegui relatar o fato com relativa fidelidade, ridicularizando dona
Neusa, o que mitigou a dor e a raiva.
Assinei
embaixo do que escrevi e levei para o Diário da Tarde, da
Empresa Archer Pinto. Lá fui recebido pelo jornalista Ulisses Paes de Azevedo,
um sujeito pai d'égua, que não me conhecia. No dia seguinte, ele publicou
"o fato digno de nota" sem mudar uma vírgula. Apenas omitiu meu nome,
dizendo que preservava o anonimato "para proteger o autor da sanha
ditatorial da diretora". Todo mundo achou que o autor havia sido o Lauro
Henrique Pinheiro, presidente do Gremio Estudantil Marciano Armond. Fiquei na
minha, não reivindiquei a autoria.
Mil gols
Depois
disso, já residindo no Rio, cursei jornalismo na UFRJ. No segundo ano, ainda
estudante, fui contratado com salário inicial de repórter, pela ASAPRESS, uma
agência de notícias arrendada pela Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB), o que me permitiu publicar matérias em jornais de vários estados do
nordeste e do sul, sempre movido à indignação. Algumas estão na lista (www.taquiprati.com.br).
Depois
vieram outros jornais no Rio de Janeiro, todos de oposição, onde assinei também
algumas matérias: O SOL, PODER JOVEM, O PAIZ (assim com
"z"), CORREIO DA MANHÃe mais tarde fui correspondente em
Paris do Opinião e, já em Manaus, fundador e redator chefe do Porantim -
um jornal valente vinculado às lutas indígenas.
A
maioria dos textos foram publicados mesmo em Manaus: na Crítica, onde
nasceu o Taquiprati, no Jornal do Norte,de
propriedade do Paulo Girardi, um jornal bonito e bem feito. Mas metade das
crônicas foi publicada aqui, nesteDiário do Amazonas, que é uma espécie
de segunda casa, onde estou desde 2003 e onde sempre gozei de total liberdade
para compartilhar com os leitores a indignação.
Um
texto jornalístico, como regra geral, não tem a qualidade de um texto
literário. Escrever para jornal é isso: um dia você é lido, no outro está
embrulhando peixe. De qualquer forma, se Pelé, com tanta notoriedade,
dedicou às criancinhas seu milésimo gol, por que um obscuro amazonense
não pode dedicar sua milésima crônica aos raros leitores que embrulham seu
peixe com o taquiprati? Afinal, quem lê, também lê porque a vida dói.
A
teoria da recepção, surgida na Alemanha nos anos 1960, depois de pesquisar como
é que um texto, seja ele literário ou jornalístico, é recebido por quem o lê,
proclamou a soberania do leitor na recepção crítica de qualquer obra. Dessa
forma, rompe com aquela noção do texto como algo fixo, imutável, engessado,
unívoco, considerando a leitura como um processo de reconstrução do texto por
parte do leitor. Quem escreve, constrói significados; quem lê, também constrói
os seus. Neste caso, os mil textos apresentados no taquiprati podem
ser considerados mil meu com mil teu, leitor (a). Confere?
De
qualquer forma, já não iremos muito longe, não porque a vida tenha deixado de
doer, mas porque chega uma hora em que o cansaço nos obriga a pendurar as
chuteiras. Nas palavras de Drummond, "cerradas as portas, a luta prossegue
nas ruas do sono".
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