José
Ribamar Bessa Freire
Na
próxima semana, no Rio, o papa rezará o pai-nosso traduzido em 26 idiomas. É
uma forma de a Igreja Católica prestigiar cada um deles. Na lista não consta,
porém, nenhuma das mais de 180 línguas indígenas faladas hoje no Brasil.
Acontece que a Jornada Mundial da Juventude (JMJ) adotou como oficiais somente
línguas indo-europeias - inglês, francês, alemão, espanhol, português, italiano
e polonês, que serão usados na catequese juntamente com outros 19 idiomas
"paroquiais", entre os quais o coreano, o russo, o croata, o letão, o
árabe e até o turco. Das línguas daqui nem sequer o guarani, que é falado em
três municípios do Rio de Janeiro, fará parte do evento.
Se
o papa não reza em guarani não é por falta de ave-maria. Basta que ele desça ao
Arquivo Secreto do Vaticano - um bunker de concreto no subsolo perto da Capela
Sistina com milhões de documentos em 43 quilômetros de prateleiras. Lá ele
encontrará versões do pai-nosso em diversas línguas ameríndias, incluindo a
Língua Geral de base tupi, que já foi a língua da catequese, além de
catecismos, sermões, hinos e orações em guarani, idioma falado hoje em dez
estados do Brasil, no Paraguai, na Argentina, na Bolívia e até mesmo no
Uruguai, onde o Estado finge que não existe.
Por
sua importância, por ser um ponto de união entre os países da América do Sul, o
guarani foi declarado, em novembro de 2006, idioma oficial do Mercosul, "em
igualdade de condições com o português e o espanhol". Tal decisão,
aprovada na XXIII Reunião do Mercosul Cultural, obriga a tradução dos
documentos para o Guarani, que dois anos antes já havia sido declarado idioma
oficial alternativo da Província Argentina de Corrientes, sendo adotado depois,
em 2010, como segunda língua oficial nos municípios de Tacuru e Paranhos, ambos
em Mato Grosso do Sul.
Oré
Ubá
Mesmo
assim, os milhares de peregrinos vindos de todos os continentes, que serão
distribuídos pelas paróquias do Rio, sairão do Brasil sem saber que visitaram
um país diverso e multilíngue, porque a operação logística montada pela
organização da JMJ, que contempla tradutores e aplicativos de tradução sonora
com ajuda de smartphones para comunicação em línguas estrangeiras, deixou de
fora as línguas nacionais. É nessa hora que a gente sente saudades do Policarpo
Quaresma.
A
tradução de orações para línguas indígenas tem uma história complicada. Por
isso, se o papa Francisco, que é da Argentina onde se fala guarani, fosse rezar
nessa língua, teria que evitar as primeiras versões do pai-nosso feitas por
alguns de seus confrades que cometeram erros quase "folclóricos". Pai-nosso,
por exemplo, foi traduzido como oré ubá, o que obrigou os índios a
excluir do seu convívio a figura de um Deus Pai, cuja paternidade era
questionável, e de um Deus Filho para sempre incompreendido. Tanto o oré como
o ubá são inadequados - dizem os especialistas.
Oré,
efetivamente, é nosso. Mas ali onde a língua portuguesa tem
apenas uma forma para o possessivo, o tupi antigo possui duas: quando o 'nosso' inclui
a pessoa com quem estou falando, tenho que usar iandé ou nhandé.
Já quando excluo o interlocutor, uso oré. O tupi parece mais
adequado a um discurso de transparência. No caso, por exemplo, das emendas
orçamentárias, na hora de pedir verba seus autores usariam o inclusivo nhandé: a
verba pública é nossa (minha e tua). Mas na hora de aplicá-la e embolsá-la,
seriam obrigados a usar o exclusivo oré, pois o nosso aqui
é o do Mateus: primeiro o meu, depois os teus.
Usar
o oré no pai-nosso não permite que quem reza junto compartilhe
o mesmo pai. Se o papa rezar em guarani dessa forma, estará dizendo aos índios
"pai nosso que não é de vocês", o que pensando bem talvez seja o mais
correto, afinal o tradutor pode ter escrito certo por linhas tortas. A
voracidade com a qual o agronegócio abocanha as terras indígenas com a
cumplicidade do poder político permite que os índios duvidem se compartilham o
mesmo pai com a senadora Kátia Abreu, católica fervorosa.
Anga
e Ceiuci
Além
disso, quando na Oração do Senhor o papa chamar pai de ubá,
a confusão vai aumentar, porque a estrutura de parentesco tupi obedece a
princípios diferentes dos nossos, como esclarece o padre Lemos Barbosa em seu
Curso de Tupi Antigo, oferecido na PUC/RJ nos anos 1950. Ele diz que ubánão
tem correspondente preciso em português, porque denomina tanto o paicomo
o irmão do pai, da mesma forma que filho não tem
equivalente em tupi, pois ayra ou rayra significa
tambémfilho do irmão, ou seja sobrinho paterno.
Quando
se trata do filho de Deus, então, a questão se complica ainda
mais, por envolver valores morais, tabus e preconceitos. Posto que a palavra rayra ou ayra significa
também sêmen, ela foi omitida na tradução de ‘imagem do filho de Deus’, substituída
por "Tupã tay raangaba",segundo avaliação de Teodoro
Sampaio (1885-1937), um engenheiro baiano, filho de uma escrava, que estudou a
toponímia tupi na geografia nacional.
Por
não conseguirem transferir toda a carga de significados de uma cultura a outra,
reduziram e deformaram a diversidade cultural e ambiental. O papa Francisco
teria dificuldades com a tradução de palavras como alma (anga), céu
(ybaka), yasy (lua), ara (dia ou tempo), mano (morrer), etc, como observa o
padre Lemos:
"Os
dicionários podem dizer que anga significa alma.
Mas o conceito de alma é diferente do de anga,
tanto em compreensão como em extensão. Nós atribuímos à alma características
(por exemplo, a imaterialidade) que não cabem no conceito indígena de anga.
Por outro lado, um índio animista falará na anga do vento".
Como
guardar o sentido da palavra deputado numa língua indígena?
Couto de Magalhães usou "homens de governo da nossa pátria" ao
traduzir para o Nheengatu a certidão de batismo do neto de Dom Pedro II. Mas
discordou do termo "fada indígena", usado para designar a
figura lendária de Ceiuci - uma velha gulosa que vivia perseguida por eterna
fome - na narrativa coletada no Tocantins, em 1865, com um tuxaua Anambé. Para
ele, também a versão do pai-nosso que circulava na Amazônia era uma fada tupi,
isto é, um monte de palavras desconexas que não expressavam o seu significado
original.
O
papa perderá uma boa oportunidade de fazer um gesto simbólico e de celebrar o
guarani, reconhecido e valorizado quando usado em outros espaços sociais.
Afinal, como diz um jesuíta amigo dos índios, Bartomeu Meliá, “también
la historia de América es la historia de sus lenguas, que tenemos que lamentar
cuando ya muertas, que tenemos que visitar y cuidar cuando enfermas, que
podemos celebrar con alegres cantos de vida cuando son habladas”.
Mas
diante de tantas dificuldades, talvez seja melhor mesmo, pelo menos para os
índios, que o Papa não reze em guarani. Bem ali, ao lado da aldeia Maracanã
onde funcionou o antigo Museu do Índio, na paróquia do Divino Espírito Santo,
peregrinos chineses rezarão em mandarim e cantonês. Longe dali, distante da
Jornada Mundial da Juventude,os jovens guarani, abençoados por Nhanderu,
cantarão seus cânticos sagrados tradicionais dentro da Opy, em suas
aldeias.
P.S.
A ilustração do nosso parceirinho Fernando Assaz Atroz
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