José Ribamar Bessa Freire
Em: 03 de junho de 2018
Fonte: TAQUIPRATI
Em: 03 de junho de 2018
Fonte: TAQUIPRATI
Para Vanessa Dutkus Saurusaitis, missionária da música |
Eu vivo em tempos
sombrios [...] Que tempos são esses em que falar de flores é
quase um crime, pois
significa silenciar sobre tanta injustiça?
(Bertold Brecht).
Peço licença para
cometer um quase-crime textual ao ignorar, na coluna de hoje, a quadrilha no
poder e os habeas-corpus concedidos por Gilmar Mendes a tucanos corruptos em
flagrante obstrução de justiça. Nesses tempos temerosos de “fezes, maus poemas
e alucinações”, não vou mencionar Carlos Marun (PMDB, vixe, vixe) com seu porte
e sua retórica de estadista de igarapé. Opto aqui por falar de flores e canções
cantadas antigamente nas escolas, que nem o Google registra.
Começo com a primeira
que aprendi no Jardim-de-Infância, em 1953, no Colégio Aparecida em Manaus, com
uma freira, a Irmã Cecília:
Coelhinho, meu amigo /
venha conversar comigo.
Ra-ra-rá, ro-ro-rô /
venha conversar comigo.
A segunda canção que
cantarolei em minha atribulada existência foi o Bem-te-vi, acompanhada de
linguagem gestual, movendo as asinhas:
Eu conheço um
passarinho / que pipila no seu ninho ...
Bem-te-vi, bem-te-vi,
cantarola ao romper da aurora
repipiupiu, repipiupiu,
/ passarinho lá no céu se ouviu.
Muitas outras
registradas na memória musical emergem da infância distante. Mas na época, tive
dificuldade de aprender uma delas, o que, agravado pelo mau comportamento, me
valeu uma reprovação. Até hoje uma de minhas irmãs, que sempre tirou boas
notas, morre de vergonha quando se toca no assunto nas reuniões de família:
- O único brasileiro
que conheço reprovado no jardim-de-infância! Uma façanha! – diz ela com ironia.
De qualquer forma, ao
repetir o ano, fixei, finalmente, a canção das vogais. Querem ouvir?
A, A, A, grasna o pato
quá quá quá
É, É, É, berra a ovelha
mé, mé, mé
I, I, I, canta o grilo
cri-cri cri-cri
O O O, canta o galo
cocori-cocó
U, U, U, muge a vaca
mu, mu, mu.
Villa-Lobos
Ouviram bem? Era assim
que as escolas cantavam, graças ao maestro Heitor Villa-Lobos,
nomeado em 1931
Superintendente de Educação Musical do Distrito Federal pelo então secretário
de Educação do Rio de Janeiro, Anísio Teixeira. Inspirado nele, Vargas assinou
dois decretos que disseminaram o ensino de Música, Canto Orfeônico ou
simplesmente Canto por todas as escolas do Brasil, enriquecendo os currículos
do jardim, primário e ginasial e ainda dos cursos de formação de professores,
cujas diretrizes foram formuladas pelo Conservatório Nacional do Canto
Orfeônico.
Faziam parte do
repertório canções populares regionais e tradicionais, selecionadas de acordo
com a faixa etária dos alunos. Na minha escolaridade, cantei Alecrim Dourado,
Escravo de Jó, O Cravo brigou com a Rosa, Uma pequena Aranha, O Sapo não lava o
pé e até mesmo nas aulas de canto e solfejo, no ginásio, Frère Jacques e a
enluarada Au Clair de la lune. A visão nacionalisteira incluía ai Hino
Nacional, Hino à Bandeira, Hino da Independência – “o japonês tem quatro
filhos” – no qual ou a Pátria ficava livre, ou a gente morria pelo Brasil. No
curso pedagógico, no Instituto de Educação do Amazonas, com o maestro Nivaldo
Santiago e Cleomar Feitosa, nossos professores, cantávamos Villa-Lobos: Oh
Tupã, Deus do Brasil e Trenzinho Caipira.
O canto orfeônico é o canto
das multidões, como mostrou Villa-Lobos, em 1942, ao reger 44 mil estudantes no
Estádio do Vasco da Gama no Rio de Janeiro. Isso foi possível porque as escolas
cantavam diariamente na sala de aula. até 1971, quando o general Garrastazu
Médici sancionou a lei que praticamente baniu a música dos currículos,
afogando-a no que a LDB da ditadura chamou de Educação Artística.
A partir daí, a música
perdeu seu espaço próprio e deixou de ser curtida no cotidiano escolar como
linguagem artística e prazerosa na busca do conhecimento. A ditadura, que é
feia, tortura e nos submete à barbárie, censurou a música, que é bela e nos
redime e alegra, restringindo-a a um lugar secundário, às festinhas,
comemorações e formaturas. Qualquer pessoa, afinada ou não, pode cantar.
Ditadores, porém, não cantam, nem deixam cantar, eliminam a educação musical,
que é um direito de todos. fundamental ao desenvolvimento pleno do aluno. A
exceção foi Vargas por influência de Villa-Lobos.
As freiras e o canto
Tive a sorte de cursar
o primário e o ginásio antes do golpe de 1964. Por isso, convivo até hoje com
as vozes de minhas professoras ao longo do curso primário: a fanhosa Irmã
Xavier, a desafinada e risonha Irmã Dolores e as Irmãs Paula e Isabel, mais
melodiosas. No ginásio, Irmã Loreta, a noviça rebelde. Com elas, a gente
cantava sempre, afinando a audição e desenvolvendo o lado lúdico, a
sociabilidade, a criatividade, a memória, o raciocínio. Cantigas e exercícios
de canto contribuíam para a aprendizagem e o letramento.
Essas freiras eram da
Congregação do Preciosíssimo Sangue transplantada ao Amazonas, em 1947, por
quatro religiosas norte-americanas - Julitta, Marciana, Georgiana e Francisca -
que vieram do Kansas convidadas pelos padres redentoristas para criar escolas
paroquiais mistas.
A Congregação logo
incorporou jovens amazonenses, como Noeme Cinque (1913-1988), nascida em
Urucurituba e moradora do nosso bairro, lá na Estação de Bonde do Plano
Inclinado. Com o nome de Irmã Serafina, ela foi professora no Colégio de
Aparecida antes de ser deslocada para Altamira, no Pará, em 1971, quando
testemunhou a tragédia da abertura da Transamazônica. Suas “virtudes heroicas”
foram proclamadas pelo Papa Francisco, que lhe conferiu o título de
“venerável”.
Duvido que os bairros
de São Raimundo e Matinha tenham personalidades projetadas internacionalmente
como Terezinha Morango, quase miss universo e a venerável Serafina, quase
santa. Aliás, se ela for canonizada,
serei o primeiro brasileiro a ter recebido um cascudo e um puxão de orelha de
uma santa. Foi assim: não me deixaram ir ao banheiro, como eu estava
"apertado", subi no parapeito da janela da sala que dava para o
quartel dos bombeiros e dei uma sonora mijada na cabeça de um “soldado do
fogo”. O comandante Ventura fez uma reclamação formal. Fui repreendido. Se isso
prejudicar a canonização, tudo bem, mudo meu depoimento. Mas aconteceu mesmo.
Aliás, entre suas "virtudes heroicas" pode estar a capacidade que
teve de aturar, por breve período, meninos endiabrados como eu.
O episódio mostra que a
gente cantava, é verdade, mas o pau também cantava. Villa-Lobos achava que
qualquer um podia cantar sem necessidade de conhecer teoria musical, mas a Irmã
Loreta, que regia com uma régua grande de madeira no lugar da batuta, pensava e
agia diferentemente. Dois anos depois da
morte de Villa-Lobo, ela me deu muita reguada na bunda em suas aulas de Canto
Orfeônico, em 1961. Exigia de seus alunos o domínio de noções de música
ancorado num metadiscurso. Tinha um inefável gozo musical quando pronunciava
várias vezes, na mesma pergunta, o nome completo de cada um de nós:
- José Ribamar Bessa
Freire (doravante JRBF para simplificar, mas ela falava por extenso), me diga
JRBF, o que é uma clave de sol, JRBF? Não sabe JRBF, não sabe o que é uma clave de sol, JRBF?
(reguada na bunda, passava ao seguinte)
– Me diga Júlio Celso
de Lima Seixas, o que é um clave de sol, JCLS? JCLS não sabe o que é uma clave
de sol JCLS? (reguada na bunda)
- Franklin Delane
Roosevelt Cordeiro, me diga FRDC, o que é uma clave sol, FDRC? (mais reguada)
Etc etc etc Percorria a
sala toda, nomeando um por um repetidas vezes. Afinal, o que é uma clave de
sol?
Ninguém sabia. Aliás,
pra falar a verdade, até hoje eu não sei. Cantar, tudo bem, gosto muito. Mas
clave de sol é dose. Sou incapaz de ler partitura.
A propósito, Leitor (a)
Do Taquiprati (LDT) me diga, LDT, o que é uma clave de sol, LDT? Não sabe, LDT?
P.S. – “E no entanto é
preciso cantar / mais do que nunca é preciso cantar/ É preciso cantar e alegrar
a cidade”, declama Vinicius de Moraes. Parece que a música está voltando às
escolas graças a “missionárias” abnegadas. Uma delas, Vanessa Dutkus Saurusaitis,
foi minha aluna na UNIRIO e é professora de artes em Niterói. Na Orquestra
Interculturalidade do Programa Aprendiz Música nas Escolas, que ela organizou,
acaba de fazer um arranjo de música guarani, executada por seus alunos, que
leem partitura e tocam diferentes instrumentos. Essas lembranças foram ativadas
em conversa recente com ela.
Nenhum comentário:
Postar um comentário