José
Ribamar Bessa Freire
06/01/2013
- Diário do Amazonas
Quem
lê suas declarações, sem saber quem é o autor, pode até pensar que ele é um
pistoleiro sanguinário, um ruralista insensível e truculento, talvez um coronel
de barranco ou um ignorantão desinformado, bronco e obtuso. Ledo engano! Ele é
refinado, viajado, escolado, doutor em Ciência Política, ex-professor da USP e
da UFRJ, ocupou o cargo de secretário-geral do PT e foi até ministro da Cultura
do governo FHC. Já escreveu vários livros. Acaba de publicar o último - "Espada,
Cobiça e Fé - As Origens do Brasil", que tem a pretensão de
desenhar um retrato do nosso país.
Por
isso, com um currículo como esse, por se tratar de um autodeclarado explicador
do Brasil, são ainda mais chocantes as declarações de Francisco Weffort à Folha
de São Paulo, numa entrevista ao jornalista Cassiano Elek Machado, publicada no
último dia 24 de dezembro. Indagado sobre o papel dos bandeirantes na história
do Brasil, Weffort respondeu com a "objetividade" e a
"neutralidade" do cientista:
- Comecei
a fazer o livro preocupado com este tema. Sei que os bandeirantes foram brutais
e violentos, mas conquistaram esta terra. Todos temos uma dívida com eles.
Então é preciso entendê-los.
Ou
seja, Weffort não é ignorante, ele confessa que sabe muito bem que as bandeiras eram
expedições armadas que invadiam aldeias e queimavam malocas para aprisionar
índios e vendê-los como escravos. Sabe que os bandeirantes formavam
uma espécie de Esquadrão da Morte Rural. Conhece o testemunho de um dos
integrantes da expedição chefiada por Raposo Tavares, em meados do séc. XVII,
ao rio Madeira, onde viviam cerca de 150.000 índios. O bandeirante revelou ao
padre Antônio Vieira seu modus operandi:
“Nós damos uma descarga cerrada de tiros: muitos
caem mortos, outros fogem. Invadimos, então, a aldeia. Agarramos tudo o que
necessitamos e levamos para as nossas canoas. Se as canoas deles forem melhores
que as nossas, nós nos apropriamos delas, para continuar a viagem”.
Francisco
Weffort sabe tudo isso porque depois que deixou o cargo de ministro da Cultura
mergulhou nos arquivos e pesquisou a documentação do período colonial para
esboçar um perfil do Brasil, pretensiosamente "na mesma linha de
pensadores como Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) e Gilberto Freyre
(1900-1987)", segundo a Folha, que informa na abertura da
entrevista: "Francisco Weffort passou os últimos anos vivendo no século
16".
Portanto,
nesse tempo todo em que morou no período colonial - e pelo visto permaneceu por
lá - o ministro foi vizinho de jesuítas como Jerônimo Rodrigues, que depois de
presenciar o assassinato de índios velhos, enfermos e crianças, chamou os
bandeirantes de bandidos:
“Nenhuma pessoa, que não tenha visto com os seus
próprios olhos tais horrores abomináveis, pode imaginar coisa igual. A vida
inteira desses bandidos consiste em ir e vir do sertão, indo e trazendo cativos
com muita crueldade, mortes, saqueios e depois vendendo-os como se fossem
porcos do mato”.
-
Será que tais horrores podem ser compensados pela consideração controvertida
que, graças aos bandeirantes, as terras devastadas pertencem hoje ao Brasil?
Quem
fez essa pergunta, com muita propriedade e senso crítico, foi o historiador
Capistrano de Abreu (1853-1927). Francisco Weffort, ex-ministro da Cultura e
atual explicador do Brasil, mesmo sabendo o que sabe, se apressa em respondê-la
afirmativamente, elogiando a "coragem espantosa" dos bandeirantes.
Quanto à matança generalizada de índios, Weffort justifica, argumentando que os
bandeirantes faziam "parte de uma cultura na qual a violência na vida
cotidiana e o saqueio na guerra eram recursos habituais".
Na
opinião de Weffort é preciso "entender" os bandeirantes para, dessa
forma, podermos pagar a dívida que temos com eles. Ou seja,
"entender" não apenas no sentido de compreender os mecanismos que
permitiram a existência deles, mas no sentido de que devemos julgá-los
historicamente com condescendência. Eles foram efetivamente bandidos, mas não
podem ser condenados pelo tribunal da História porque,
afinal, "conquistaram esta terra", e eu, tu, nós, "todos
temos uma dívida com eles".
Cabe
a pergunta: nós quem, cara pálida? Me inclui fora dessa. Qual a dívida que os
índios têm com os bandeirantes? Não seria o contrário?
Para
Weffort, hoje com 75 anos, os bandeirantes são os “desbravadores do território
nacional” e “heróis da pátria”. Da mesma forma que ele nos convida a
"entender" os bandeirantes, nós convidamos o leitor a
"entender" Weffort, que frequentou museus e estudou numa escola
ufanista, cujas narrativas aboliram os índios da formação do Brasil,
considerando-os minorias inexpressivas.
Imagine
Weffortzinho, quando criança, visitando o Museu Paulista erguido lá, nas
margens plácidas do Ipiranga. Ele contempla aquelas esculturas gigantescas de
mármore dos bandeirantes, apresentados como heróis nacionais: Raposo Tavares,
Fernão Dias e todo o Esquadrão da Morte. No interior, vitrines mostram dezenas
de estojos contendo cachinhos e mechas de cabelos de senhoras da Casa Grande,
mas não tem nada da senzala, nem sequer um pentelho de um índio ou de um negro.
Apagaram o índio na cabeça do Weffortzinho e o Weffortzão aceitou o apagamento
sem discussão.
Essa
foi a fonte onde bebeu Weffort, o explicador do Brasil. Se ele tivesse recebido
um milhão de dólares para escrever essa besteira, a gente podia até discordar
dele, mas era possível "entendê-lo", assim como ele
"entendeu" os bandeirantes. Haveria uma motivação econômica. Mas com
a modesta bolsa que recebeu da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo às
Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro para escrever esse livro, fica difícil
aceitar que ele invada corações e mentes, expandindo preconceitos tão surrados,
que já foram desmontados pela historiografia brasileira.
Por
que não fazer um esforço, uma vez por todas, para "entender" também a
"coragem espantosa" dos índios e o papel deles na História do Brasil?
O americanista espanhol Jimenez de la Espada, que foi diretor do Archivo
General de Indias, en Sevilla, com ironia e propriedade criticou os
brasileiros, por haverem aceitado, passivamente, sem questionamento, a
versão que os portugueses deram da história colonial:
"Los portugueses han tenido la doble fortuna
de no tener un padre Las Casas y de que los brasileiros hayan hechos suyos, sin
discutirlos, los hechos de aquellos hombres que a todo costo les dieron la
opulenta y anchisima pátria".
É
isso. Com um explicador do Brasil como esse, não vamos muito longe.
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