segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Dez propostas para não repetir a capitulação que conhecemos na Grécia

Durante o terceiro encontro ecossocialista internacional, que teve lugar em setembro em Bilbao, Eric Toussaint apresentou dez propostas sobre o empoderamento popular para não repetir a capitulação que conhecemos na Grécia em 2015.

ESCRITO POR ERIC TOUSSAINT
TERÇA, 06 DE DEZEMBRO, 2016

A primeira proposta é a necessidade de um Governo de esquerda de desobedecer, de maneira muito clara e anunciada, à Comissão Europeia. Negando-se a obedecer as exigências austeritárias desde o início - o partido que pretende ou a coligação de partidos que pretende ser Governo e, naturalmente, estou a pensar por exemplo no Estado espanhol - e comprometendo-se a recusar o equilíbrio fiscal. Dizer: "não vamos respeitar a obrigação decretada pelos tratados europeus para garantir o equilíbrio fiscal”, porque queremos aumentar a despesa pública para lutar contra as medidas antissociais, austeritárias e para empreender a transição ecológica. Portanto, o primeiro ponto é declarar de maneira clara e determinada o compromisso de desobedecer. Para mim, é fundamental a ideia de que após a capitulação grega NÃO se pode seguir com a falsa ilusão de obter da Comissão Europeia e dos demais governos europeus o respeito pela vontade popular. Manter essa falsa ilusão, seria um desastre. Há que desobedecer.

Segundo ponto. Comprometer-se a apelar e valorizar a mobilização popular. Tanto a nível do país, como a nível europeu. Também isso faltou no ano passado na Grécia. Evidentemente, os movimentos europeus sociais não estiveram à altura nas mobilizações que existiram, que tiveram lugar, mas que foram insuficientes na solidariedade com o povo grego. Mas é também verdade também que dentro do marco da orientação estratégica do Syriza, não cabia apelar à mobilização popular a nível europeu, nem sequer apelar à mobilização popular na Grécia. E quando apelaram à mobilização através do Referendo de 5 de julho do 2015, foi para LOGO não respeitar a vontade popular de 61,5% dos gregos, que se negaram a obedecer às exigências dos credores.

Terceiro ponto. Comprometer-se a organizar uma auditoria da dívida com participação cidadã. Eu diria, uma auditoria que tem que ser simultânea à suspensão do pagamento da dívida. Há situações diferentes nos 28 países que conformam a União Europeia. Há países europeus onde a suspensão dos pagamentos é uma medida de absoluta necessidade prioritária, como é o caso da Grécia, como seria o caso de Portugal e Chipre. No Estado Espanhol teríamos que ver. Em outros países pode começar-se somente pela auditoria e depois chegar à suspensão dos pagamentos. Estas medidas devem ser implementadas tendo em conta a situação concreta de cada país.

Quarta medida. Impor controlo de movimentos de capitais. E ter em mente o que isto quer dizer. Isto é, ir na contramão da ideia de que se vai impedir os cidadãos de transferir umas centenas de euros aos seus sócios fora do país. Naturalmente, transações financeiras internacionais até um verdadeiro nível estariam permitidas. Mas seria implementar um controlo sobre os movimentos de capital, acima de um certo montante de transferências.

Quinta medida. Socializar o setor financeiro e o setor energético. Para mim, socializar o setor financeiro não é somente desenvolver um polo público bancário. É decretar o monopólio público sobre o setor financeiro incluindo bancos e seguros. Uma socialização do setor financeiro sob o controlo cidadão. Isto é, transformar o setor financeiro em serviço público. No âmbito da transição ecológica a socialização do setor energético é certamente também uma medida de primeira prioridade. Não pode existir uma transição ecológica sem monopólio público sobre o setor energético, tanto a nível da produção, como da distribuição.

Proposta número seis. Criação de uma moeda complementar, não convertível. Quer seja no caso da saída do euro ou da manutenção na zona euro, é necessária a criação de uma moeda complementar não convertível. Isto é, uma moeda que sirva em circuito curto aos intercâmbios dentro do país. Por exemplo, para pagar aumentos de pensões, aumentos de salários a funcionários públicos, para pagamentos de impostos, para pagamentos de serviços públicos... Pode utilizar-se uma moeda complementar que permita aliviar e sair de maneira parcial da ditadura do euro e do Banco Central Europeu. Claro, também não podemos evitar o debate da saída da zona euro. Acho que em vários países, a saída da zona euro é também uma opção que há que defender como partidos e sindicatos de classe. Vários países da zona euro não podem empreender realmente uma rutura com a austeridade e empreender uma transição ecossocialista sem sair da zona euro. Em caso da saída da zona euro, há, a meu ver, que empreender uma reforma monetária redistributiva. O que quer dizer isto? Quer dizer decretar, por exemplo, que até 200.000 euros líquidos, o câmbio no caso de voltar à peseta seria de 1 euro por 100 pesetas. Mas acima de 200.000 (pode ser acima de 100.000) o câmbio para ter 100 pesetas seria de 1,5 euros. Noutro nível superior, teria que entregar 2 euros. Chegando aos níveis mais altos de 500.000, entregar 10 euros para ter 100 pesetas. A isso chama-se reforma monetária redistributiva. Que diminui o circulante e redistribui o património líquido das famílias. Evidentemente, eliminando uma parte do património líquido do 1% mais rico. Sabendo que, não sei exatamente os dados do País Basco ou do Estado Espanhol, mas quase 50% da população nem sequer tem poupanças. Cerca de 30% da população, os de baixo, têm dívidas, não têm património líquido. Podem ter património em termos de habitação (hipotecada ou não), mas essa grande parte da população não tem património positivo.

A medida sete. Evidentemente, reformar radicalmente a fiscalidade. Eliminar o IVA sobre os produtos de consumo básicos, alimentícios por exemplo, serviços de luz e água, outros serviços de primeira necessidade. No entanto, um aumento do IVA sobre produtos de luxo e produtos que contaminam etc. Mas, fora dos produtos e serviços de base, faz falta um aumento da fiscalidade sobre o rendimento das empresas privadas e sobre os lucros e rendimentos acima de um certo nível. Isto é, fiscalidade progressiva sobre os rendimentos e sobre o património.

Oitava medida. Desprivatização. Recomprar empresas privatizadas com o euro simbólico. Assim, a esse nível, usar o euro poderia ser muito simpático, pagar um euro simbólico aos que se aproveitaram das privatizações. E fortalecer e estender os serviços públicos sob controlo cidadão.

Medida nove. Reduzir o tempo de trabalho mantendo, protegendo o salário. Revogar as leis antissociais e adotar leis para solucionar a situação da dívida hipotecária. Poder-se-ia realizar perfeitamente via leis, evitando julgamentos (porque há múltiplos julgamentos sobre dívida hipotecária nos quais as famílias enfrentam os bancos). Um Parlamento pode decretar via lei, por exemplo, a anulação mediante lei, das dívidas hipotecárias de menos de 150.000 euros, por exemplo. Isso permitiria não ir a julgamento.

Medida dez. Abrir um verdadeiro processo constituinte. Não se trata de mudanças constitucionais dentro do âmbito do Congresso ou das Cortes atuais [Toussaint refere-se à realidade do Estado Espanhol][i]. Tratar-se-ia de dissolver o Parlamento e convocar a eleição direta de uma Assembleia Constituinte. Claro, convocá-lo tendo em conta a questão das nacionalidades etc. mas abrir um verdadeiro processo constituinte, seja nas nacionalidades ou a nível do estado como tal. E procurar como encaixar isto noutros processos constituintes a nível europeu.

Estas são, para mim, dez medidas básicas a submeter a debate. Mas ponho essas medidas a um nível alto. Porque acho que sem medidas radicais anunciadas desde o início, não haverá rutura nem sequer com as políticas de austeridade. Não há margem de manobra para romper com as políticas de austeridade sem tomar medidas radicais contra o grande capital. Os que pensam que se pode evitar isto, são “vendedores de banha da cobra” de fórmulas que não têm realmente forma concreta de realização. A nível europeu, a arquitetura é tal, e o nível de crise do capitalismo é de tal ordem, que não há mais espaço real para políticas neokeynesianas produtivistas. Para mim, o ecossocialismo não é o discurso de domingo. É o discurso diário, do qual têm que sair as propostas imediatas que há que concretizar. E complementar a luta contra a austeridade e empreender o caminho e a transição ecossocialista é uma necessidade absoluta e imediata.
  • Eric Toussaint é Presidente do Comitê pela Anulação da Dívida Externa dos Países de Terceiro Mundo
Artigo publicado em http://www.cadtm.org/Sobre-empoderamiento-popular-Diez (link is external)

Tradução de Mariana Carneiro para o Esquerda.net

[i] Este texto corresponde à intervenção de Eric Toussaint em Bilbao no dia 25 de setembro 2016 durante o terceiro encontro ecossocialista internacional http://alterecosoc.org/ (link is external)

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

A esquerda abandonou o discurso contra a corrupção?

ESCRITO POR TATIANA ROQUE
TERÇA, 06 DE DEZEMBRO DE 2016

Foi intenso o debate, nos últimos dias, sobre a pauta anticorrupção possível para a esquerda. A defesa das garantias constitucionais é uma agenda tradicional do campo e medidas de combate à corrupção que as suspendam serão sempre encaradas com desconfiança. Por outro lado, é incômodo que a esquerda permaneça na defensiva nesse tema, levantando a bandeira da lei que – convenhamos – é uma pauta recuada.

Precisamos de um discurso ofensivo que consiga tratar a corrupção como parte de um problema político maior, que não diz respeito somente ao sistema político, mas à questão dos privilégios. Corrupção é um sintoma da concentração de poder e combater os mecanismos que a tornam possível parece uma das próprias razões de existir da esquerda.

Um discurso político contra a corrupção – não justiceiro, mas também não apenas garantista – depende de nossa capacidade para focar no combate à concentração de poder e aos privilégios.

Estamos em pleno retrocesso na pauta fundamental dos transportes públicos, com revogação de bilhete único no RJ e aumento das passagens em SP. Quem são os donos das empresas de ônibus, do metrô e dos trens urbanos? Que dispositivos permitem uma tal concentração de poder? Por que eles não foram enfrentados pelos últimos governos (parte deles de esquerda)?

Surgem ataques de todos os lados contra os funcionários públicos, não só dos governos, mas também de grande parte da opinião pública. Que privilégios existem realmente que enfraquecem qualquer defesa em bloco do funcionalismo público? Que distorções salariais e regalias no executivo, no legislativo e no judiciário acabam dando munição para retiradas de direitos universais duramente conquistados? Por que esses privilégios também não foram enfrentados nos últimos anos?

Direito, quando não é de todos, é privilégio. Não enxergar isso levou grande parte da esquerda (nesse caso, a que estava fora do governo) a cometer equívocos graves, como ter sido contra as cotas nas universidades. A fixação no universalismo torna as pautas da esquerda abstratas e pouco convincentes para uma opinião pública sensível ao tema dos privilégios, tema do qual a corrupção é apenas uma das faces, justamente aquela que vem sendo encampada pela direita.

Para recuperar sua credibilidade com a sociedade, a esquerda precisa de um discurso qualificado de combate à corrupção. Sem cair nos arroubos da direita, mas também sem ficar apenas na defensiva. Para isso, precisa encarar o tema dos privilégios e da concentração de poder, que não tem sido abordado de modo convincente. Depois de tantos anos de governo, deveríamos ter muito mais a exibir nessa direção. Não surpreende, portanto, que a bandeira tenho sido perdida para a direita.


Tatiana Roque é professora da UFRJ e presidente da Adufrj-SSind (Sindicato dos Docentes da UFRJ).

quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Fidel Castro Ruiz

ESCRITO POR CARLOS AUGUSTO DOS SANTOS
QUARTA, 30 DE NOVEMBRO DE 2016

“As pessoas fazem a história não como desejam, mais de acordo com as suas circunstâncias” e “Os mortos incomodam os vivos”.

Estas duas frases de Karl Marx, em tradução livre, exprimem meu sentimento por Fidel Castro.

Revolução Cubana. Desejava apenas retirar do poder Fulgencio Batista, que fizera de Cuba um cassino para os norte-americanos, enquanto sua população vivia na mais completa miséria. Tornou-se comunista depois, de acordo com o momento histórico de uma guerra fria onde imperava os Estados Unidos, na defesa do sistema capitalista, e a União Soviética, na defesa do socialismo. Fez sua opção.

Para muitos fora um ditador. Para outros, um estadista.

Alguns reverberam o fato de Cuba se manter como um país pobre, sem liberdade. Contudo, esquecem-se de que Cuba vive um embargo a mais de cinquenta anos. O que seria de Cuba se não houvesse este embargo? Jamais saberemos.

Quem consegue imaginar o que é viver durante tantos anos sem laços comerciais com outros países? Porém, esquecem-se de que Cuba possuiu um dos melhores sistemas educacionais do mundo. Esquecem-se de que Cuba possui um dos melhores sistemas de saúde do mundo. E que durante muito tempo Cuba foi uma potência esportiva.

Como sobreviver sendo apenas uma pequena ilha e tendo que alimentar, educar e oferecer condições de vida para sua população sem que tenham apoio de outros países e com uma economia tão frágil? Alguém permanece no poder durante tantos anos se não tiver apoio concreto de sua população? Quem são aqueles que lutaram contra Fidel?

Cresci tendo em Fidel Castro um paradigma de que é possível mudar a história. E me dói vê-lo partir, embora saiba que este é o destino de todos nós. Perde-se uma referência de luta. Parte dos sonhos de esvaem. Algumas esperanças se desfazem. Outras se mantém como uma luz a indicar novos caminhos.

É possível simplificar tudo apenas dizendo: Ousamos Lutar, Ousamos Vencer!

E nunca é demais recordar um trecho de uma linda canção do Cubano Pablo Milanês que dizia: “Creio em ti, quando me dizes que me vou ao vento, numa manhã que não permite espera, quando me dizes não sou primavera, e sim uma tabua num mar violento ...Creio em ti, revolução”.

A morte de Fidel significa, para muitos revolucionários uma continuidade, não da vida, mais sim dos ideais que fizeram com que aqueles oitenta homens, liderados por ele, um dia desembarcassem em Cuba para mudarem os rumos da história do século XX.

E como escreveu Marx, a morte de Fidel pode significar o incomodo para todos aqueles que temem as transformações no mundo. Afinal de contas, e apesar dos pesares, o sonho não terminou.


quarta-feira, 16 de novembro de 2016

“Redução de direitos trabalhistas não gerou crescimento econômico em nenhum país”

ESCRITO POR RAPHAEL SANZ, DA REDAÇÃO             
DOMINGO, 13 DE NOVEMBRO DE 2016
 
Na quarta-feira, 9, o STJ encerrou a sessão ordinária sem encaminhar a votação do projeto que regulariza contratos em regime de terceirização, prevista na pauta que será reagendada. Organizações sindicais protestaram o dia todo na Praça dos Três Poderes contra o projeto, em discussão no Senado e já aprovado na Câmara dos Deputados. Faz parte de um pacote de medidas do governo que busca promover mudanças orçamentárias e no campo econômico – e que ainda conta com a proposta de reforma trabalhista. O Correio da Cidadania conversou com Sérgio Batalha, advogado trabalhista, para entender melhor as razões e desdobramentos destas propostas.

“A terceirização é uma tentativa de suprimir os direitos trabalhistas por via oblíqua. Ou seja, você admite que a empresa terceirize parte de sua produção para outra empresa menor, que paga salários menores e não cumpre a legislação trabalhista. A empresa tomadora dos serviços não seria responsabilizada por eventuais irregularidades da empresa terceirizada, reduzindo, na prática, o custo da mão de obra”, avaliou

Durante a conversa avaliou a agenda do governo Temer, denominada Ponte para o Futuro (apresentada pelo PMDB antes do impeachment de Dilma), como “um retorno ao passado”, destacando como exemplo a flexibilização das leis trabalhistas e a prevalência do negociado sobre o legislado. Afirmou que o governo tentou apresentar o pacote de forma palatável, mas não soube aguentar a pressão da imprensa, revelando o verdadeiro caráter da medida. Ou seja, de que haveria perda salarial com aumento de jornada. O enorme rechaço na opinião pública o fez recuar.

“Sempre existe a possibilidade de aperfeiçoar a legislação trabalhista, mas as modificações teriam de surgir de um amplo debate entre trabalhadores e empresários, buscando eventuais consensos entre os envolvidos. Não se pode alterar a relação entre capital e trabalho com base apenas nos interesses do empresariado, sob pena de provocar uma crise social”.

Leia, a seguir, a entrevista na íntegra.

Correio da Cidadania: Como você recebeu o anúncio da nova reforma trabalhista que tramita no Congresso e se tornou bandeira do governo Temer?

Sérgio Batalha: O anúncio da reforma trouxe perplexidade e também preocupação. A perplexidade surgiu porque o governo não apresentou até hoje, objetivamente, os termos da reforma que será apresentada ao Congresso. A preocupação decorre da natureza unilateral da proposta de reforma, ou seja, ela surge exclusivamente para atender às reivindicações de um setor do empresariado, sem que haja um interesse correspondente entre os trabalhadores.

Correio da Cidadania: Vê mudanças na dinâmica do mundo e mercado de trabalho que justifiquem tais propostas?

Sérgio Batalha: A dinâmica que hoje anima esta proposta unilateral de reforma trabalhista é a da redução de direitos dos trabalhadores. Ou seja, em uma conjuntura recessiva, o empresariado pretende aumentar sua margem de lucro às custas de uma redução do custo da mão de obra. Não há qualquer perspectiva de atendimento às demandas da classe trabalhadora, pelo contrário, a ideia é atender exclusivamente as reinvindicações de um setor do empresariado que defende a diminuição dos direitos previstos na CLT.

Correio da Cidadania: Qual sua análise a respeito da argumentação que atrela flexibilização das relações de trabalho a crescimento econômico?

Sérgio Batalha: Esta relação não existe. A redução do custo da mão de obra simplesmente aumenta o lucro do empresário. O que produz o crescimento econômico é o aumento de demanda, ninguém vai contratar mais empregados ou produzir mais apenas porque a mão de obra ficou mais barata.

Nos países em que houve reformas trabalhistas com redução de direitos do trabalhador não houve crescimento econômico no período posterior. Ao contrário, normalmente ocorreu um aumento da recessão e do desemprego, como na Espanha.

A redução de direitos do trabalhador produz objetivamente uma redução da participação da massa salarial no PIB, provocando normalmente um efeito recessivo, tendo em vista que esta massa salarial é normalmente destinada ao consumo.

Correio da Cidadania: Como analisa a criação das novas modalidades sugeridas, como hora trabalhada e produtividade, chegando-se a sugestões de larguíssimas jornadas?

Sérgio Batalha: É difícil analisar propostas que não são enunciadas claramente. Estas “novas modalidades” não foram explicitadas pelo governo e, de certa forma, já existem dentro dos marcos da legislação atual.

Provavelmente, a lógica da proposta seria a de submeter o empregado a uma jornada maior, sem o pagamento das horas extras correspondentes. Como já esclarecido, o efeito de tal reforma seria a elevação do lucro dos empresários e a redução da massa salarial no país.

Correio da Cidadania: Como ficam as questões da terceirização e do programa de proteção ao emprego, dentre outros direitos trabalhistas, como a PLR?

Sérgio Batalha: A terceirização é uma tentativa de suprimir os direitos trabalhistas por via oblíqua. Ou seja, você admite que a empresa terceirize parte de sua produção para outra empresa menor, que paga salários menores e não cumpre a legislação trabalhista. A empresa tomadora dos serviços não seria responsabilizada por eventuais irregularidades da empresa terceirizada, reduzindo, na prática, o custo da mão de obra.

É isto que acontece hoje com a terceirização na esfera das empresas públicas. Ainda que se admita uma responsabilidade da empresa tomadora por eventuais irregularidades, a terceirização tem como objetivo único contratar empregados com um custo menor do que a empresa hoje arca, isto é, cria duas categorias de trabalhadores: os empregados diretos e os subempregados terceirizados.

Correio da Cidadania: O que pensa da abordagem da chamada grande mídia a respeito do tema?

Sérgio Batalha: A grande mídia simplesmente divulga a versão dos empresários sobre a reforma trabalhista, sem ouvir os representantes dos trabalhadores, seus advogados ou mesmo juízes do trabalho.

Os jornais reproduzem de forma sistemática mitos como a "defasagem” da nossa legislação trabalhista, a suposta “necessidade” de uma reforma trabalhista para “criar empregos” e, ainda, a necessidade de “flexibilizar” a legislação trabalhista, sem esclarecer o que isto significa. Na prática, significa retirar direitos do trabalhador.

Correio da Cidadania: Qual sua opinião a respeito do novo ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira de Oliveira (PDT-RS) que se diz alinhado ao programa “Ponte para o futuro”, de Michel Temer? Como avalia o recuo do governo Federal frente às suas primeiras declarações?

Sérgio Batalha: O projeto do governo, a tal “Ponte para o Futuro”, é na verdade um retorno ao passado. É o velho projeto de flexibilização das leis trabalhistas, com a prevalência do “negociado sobre o legislado”, que foi derrotado no governo de Fernando Henrique. O ministro tentou apresentar o projeto de forma palatável, escondendo seu verdadeiro conteúdo, com as conhecidas fórmulas de “flexibilização” e “negociação”. Quando foi pressionado para fornecer detalhes para a imprensa, acabou por revelar a intenção de aumentar a jornada dos trabalhadores sem a remuneração correspondente.

O recuo do governo se deu em função da reação negativa da opinião pública à redução de direitos trabalhistas. O tema já custou muitos votos ao PSDB no passado em eleições presidenciais e o governo procura contornar a impopularidade das propostas. Mas, não se iludam, a proposta de fundo é a redução de direitos trabalhistas.

Correio da Cidadania: É possível, em termos gerais no Brasil, um trabalhador negociar um acordo em igualdade de condições com o patrão? Essa livre negociação pode ou poderia suprimir garantias da atual legislação? Existem exemplos disto no seu cotidiano de advogado trabalhista que poderia detalhar?

Sérgio Batalha: A chamada “livre negociação” é sempre uma ilusão, tendo em vista que, no regime capitalista, o empresário detém o controle dos meios de produção. Por óbvio, ele negocia sempre em vantagem com o empregado que só possui sua força de trabalho.

No Brasil, há uma dificuldade adicional, pois, os sindicatos representam toda a categoria de trabalhadores, independentemente do número de associados. Assim, um sindicato com 100 associados pode representar uma categoria de 100 mil trabalhadores. Na legislação atual, o sindicato só pode negociar, essencialmente, direitos não previstos na legislação trabalhista. Se for instituída a livre negociação, qualquer sindicato poderia suprimir direitos da sua categoria de trabalhadores, mesmo em relação aos trabalhadores não associados.

Na prática, tal reforma provocaria uma brutal redução dos direitos trabalhistas, dada a baixa representatividade e fragilidade dos sindicatos brasileiros.

Correio da Cidadania: Que ligações podemos fazer entre essa proposta de reforma trabalhista e as propostas de Reforma da Previdência em tramitação no Congresso Nacional?

Sérgio Batalha: A Reforma da Previdência tem uma lógica parecida com a da Reforma Trabalhista, ou seja, a parte mais forte procura retirar direitos da parte mais fraca. Na Reforma Trabalhista, o empresário procura retirar direitos dos trabalhadores, enquanto na previdenciária é o governo que procura retirar direitos dos trabalhadores e aposentados.

Em ambos os casos, são apresentadas falsas premissas, como a “defasagem da CLT” ou o “déficit da Previdência”, ocultando-se dos prejudicados dados essenciais para compreender o que está envolvido no debate.

Correio da Cidadania: Como avalia o sindicalismo brasileiro na atualidade? Acredita que essa nova proposta de reformar a representatividade dos sindicatos pode vir a agregar com as organizações?

Sérgio Batalha: O modelo sindical brasileiro é pouco representativo e depende do repasse do chamado “imposto sindical” pelo governo. Favorece, assim, a existência dos sindicatos pelegos ou cartoriais. A mudança deste sistema teria de ser completa, ou seja, teria de se modificar todos os aspectos do modelo sindical brasileiro, desde o financiamento até a representatividade. Se se conceder apenas o poder amplo de negociação a sindicatos pouco representativos, o resultado será uma chacina social e não um aumento de representatividade.

Correio da Cidadania: Dentro de tal contexto, como você vê a CLT na atualidade? Precisa ser modernizada? O que restou dela e o que poderia ser feito em sua visão?

Sérgio Batalha: Em primeiro lugar, deve ser afastado este mito de que a CLT seria a mesma de 1943. Cerca de 70% de seus artigos já foram modificados, com a inclusão de vários aspectos modernos, como o banco de horas, por exemplo.

Sempre existe a possibilidade de aperfeiçoar a legislação trabalhista, mas as modificações teriam de surgir de um amplo debate entre trabalhadores e empresários, buscando eventuais consensos entre os envolvidos. Não se pode alterar a relação entre capital e trabalho com base unicamente nos interesses do empresariado, sob pena de provocar uma crise social.

Creio que as modificações deveriam, essencialmente, punir o mau empresário, que descumpre a legislação trabalhista, e beneficiar aquele empresário que cumpre a legislação e beneficia o seu empregado. Mas tudo isto prescinde de um amplo debate e de um verdadeiro pacto social.

Correio da Cidadania: Para finalizar, vê alguma relação na natureza dessa proposta com outras semelhantes em países estrangeiros, como por exemplo o que ocorre na França em que mudanças na legislação trabalhista levaram milhares para as ruas daquele país?

Sérgio Batalha: A proposta de Reforma Trabalhista no Brasil tem um ponto de contato com as propostas efetivadas na França ou na Espanha no sentido de ser uma ofensiva dos empresários contra os direitos do trabalhador. Esta é a essência destas reformas, a redução do custo da mão de obra em um ambiente recessivo.

O empresário é pressionado com a redução da produção, vê sua margem de lucro se reduzir e pretende recompô-la às custas da redução dos salários, diretos ou indiretos, de seus empregados. Apresenta como justificativa a necessidade de reduzir custos para criar empregos, mas, na prática, após a implementação das reformas, os empregos não são criados e os salários reduzidos. Ou, ainda, são criados empregos com salários menores no lugar de empregos melhor remunerados, como ocorreu na Inglaterra.

Fonte: Correio da Cidadania 


sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Os acendedores de manhãs

ESCRITO POR JOAN EDESSON DE OLIVEIRA *
SEXTA, 04 DE NOVEMBRO DE 2016

Ah! Esses meninos. Ah! Essas meninas.

Espalham-se pelas ruas, pelas escolas, pelas universidades. Não se contentam mais em esperar pelo amanhã, não querem apenas, como deles dizia Máximo Górki, ter a face do amanhã. Têm sede de hoje, estão famintos pelo agora.

Quem são esses meninos, que ocupam o Brasil, que transbordam em sua juventude e em sua rebeldia, que não podem mais ser escondidos, por mais que tentem? São herdeiros de outros meninos, em lugares e em tempos tantos da nossa história. São herdeiros daquele menino baiano Antônio de Castro Alves, abolicionista e republicano, voz tão poderosa a pregar aos séculos que “toda noite tem auroras” e a dizer aos moços como ele que “não tarda a aurora da redenção”. Descendem eles do menino alagoano Zumbi, que imberbe ainda comandou homens e sonhou a liberdade.

Quem são essas meninas, buliçosas e de olhar tão vivo, que transpiram beleza e coragem, que erguem a voz doce e firme em tribunas hostis, obrigando velhos conservadores a desviar o olhar, envergonhados e derrotados, por mais que se vistam de vencedores? São descendentes diretas daquela menina Anita Garibaldi, que aos dezoito anos fazia guerra e amor, incendiando o sul do Brasil com a chama da liberdade. Elas vêm da baiana Maria Quitéria, pondo em fuga o opressor português. Vêm de outra baiana, Maria Bonita, que aos vinte anos armou a ternura e alou-se em lenda na caatinga sertaneja. 

Por que despertam tanto ódio nas elites, por que são tão atacados? Não são um exército com tanques, mísseis, fuzis. Não são uma força estrangeira a nos invadir. Qual o perigo que representam, então? Por que jornais e emissoras de TV se empenham tanto em atacá-los? Por que representantes de um governo ilegítimo, velho, machista e misógino, atacam com tal força essas meninas que discursam? Por que recrutam milícias que parecem integralistas saídos de um mofado livro de história para atacar esses jovens?

É que esses meninos, essas meninas, riso solto e gargalhada livre, são uma grande ameaça. Os alicerces desse edifício secular das classes dominantes tremem ante o riso deles, temem a sua gargalhada. Mas acima de tudo, o que causa temor mesmo são os sonhos desses meninos e meninas. Sim, eles sonham. Sonham com educação de qualidade, sonham com justiça, sonham com uma polícia que não seja executora da juventude, sonham com um Brasil novo e têm a mais pura e justa certeza de que o novo sempre vem. 

É por isso que eles são tão perigosos. É por isso que há jornalistas vendidos que os atacam. É por isso que há promotores de justiça que ordenam que eles sejam algemados. É por isso que há juízes que autorizam e recomendam o uso de técnicas de tortura contra eles. É por isso que há policiais prontos a bater, a socar, a prender. Porque esses meninos e essas meninas são perigosos, porque eles agarraram o futuro com as mãos e querem que o futuro seja aqui e agora, e não num tempo que nunca chega. Esses meninos são perigosos porque eles podem colocar o mundo de ponta cabeça, e de virá-lo em festa, trabalho e pão, como sonhou o poeta.

E esses meninos e essas meninas estão armados. Suas armas são as ideias que carregam, são o verbo que corta, a voz que inflama. Estão armados, eles. Trazem consigo a arma mais poderosa que há. Como em Pessoa, trazem em si todos os sonhos do mundo.

Parece que saíram de algum poema, esses meninos, essas meninas. Parecem que saíram de algum poema, para em tempos de tanta escuridão, de noite tão comprida, correrem pelas esquinas do Brasil, chamando pela aurora, acendendo as manhãs.

*Joan Edesson de Oliveira, Educador, Mestre em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará.


Fonte: Portal Vermelho

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

As eleições na construção do projeto popular

ESCRITO POR FREI MARCOS SASSATELLI
QUARTA, 28 DE SETEMBRO DE 2016

Retomo, com algumas modificações, as reflexões - que continuam atuais - do artigo “Eleitor eeleitora: qual é o seu projeto político?” (05/10/12). Diante da questão política, podemos (eleitores e candidatos) assumir fundamentalmente três posicionamentos: o de quem quer manter o projeto político dominante (conservador), o de quem quer reformá-lo (reformista) e o de quem quer transformá-lo (transformador, libertador).

Por ser a história humana dinâmica e contraditória (dialética), esses posicionamentos não são três compartimentos estanques, sem nenhuma comunicação mútua. Entre seus defensores - mesmo que seja por razões diferentes - pode haver, por exemplo, "acordos pontuais” sobre alguma prática política concreta, mas nunca "aliança” (a não ser por oportunismo político, inclusive eleitoral), que supõe comunhão de ideais, de utopias.

O que caracteriza o projeto político dominante (projeto capitalista neoliberal)? Ele é um "sistema econômico iníquo” (Documento de Aparecida - DA 385) ou um "sistema nefasto”, porque considera "o lucro como o motivo essencial do progresso econômico, a concorrência como lei suprema da economia, a propriedade privada dos bens de produção como um direito absoluto, sem limites nem obrigações correspondentes” (Paulo VI. Populorum Progressio - PP 26).

O sistema econômico capitalista neoliberal cria profundas desigualdades sociais, oprime, marginaliza e descarta os pobres. Como diz o papa Francisco aos movimentos populares (Bolívia, julho de 2015), “este sistema é insuportável: exclui, degrada, mata!”.

Para o projeto político neoliberal, o importante não é a vida do povo, mas o deus-mercado e os interesses dos seus servidores e adoradores. Do ponto de vista estrutural, ele é desumano, antiético e, portanto, anticristão.

Os defensores desse projeto político podem até aceitar algumas mudanças, mas só se for para modernizar o sistema e torná-lo mais eficiente. Nunca pensam em mudanças de estruturas. Com as migalhas que sobram da mesa dos ricos, promovem programas chamados de distribuição de renda, que, por sua ambiguidade, de um lado servem para amenizar situações de extrema pobreza (o que é positivo); de outro lado, para cooptar os trabalhadores e evitar que se transformem numa ameaça para a segurança e os interesses do próprio sistema.

Na realidade, porém, esses programas não distribuem a renda, mas simplesmente restituem ao povo uma pequena e insignificante parcela daquilo que é permanentemente roubado (roubo legalizado e institucionalizado) dos pobres na exploração da mão de obra e nos impostos sobre os produtos de primeira necessidade.

Sobretudo em época de eleições, os defensores desse projeto político fazem declarações de amor aos pobres, prometendo que irão acabar com a fome, que irão enfrentar o grave problema social das drogas e da violência, que irão cuidar da saúde, da educação, da segurança etc. Terminadas as eleições, nada disso acontece.

O que caracteriza o projeto político reformista (projeto capitalista neoliberal reformado)? As reformas - dizem os defensores desse projeto - têm por objetivo um "capitalismo com sensibilidade e responsabilidade social e ambiental”, um "capitalismo de rosto humano”, um "capitalismo humanizado”, com a redução das desigualdades sociais e a busca do bem estar social e ambiental. É a chamada Terceira Via, doutrina político-econômica idealizada por Anthony Giddens, impulsionada por Tony Blair e Lionel Jospin, e que ganhou força com o chanceler Gerhard Schroeder e outros.

Pergunto: se o capitalismo neoliberal é estruturalmente desumano, pode ser humanizado? Pela lógica, a resposta é: não. O máximo que pode ser feito é amenizar, em determinadas situações conjunturais, seus efeitos iníquos.

O que caracteriza o projeto político transformador (libertador)? É o projeto popular para o Brasil (e para o mundo), que - como projeto alternativo - visa mudar as estruturas e superar o capitalismo neoliberal, abrindo caminhos para um socialismo realmente democrático e comunitário.

Atualmente, “multiplicam-se sem cessar as relações do ser humano com os seus semelhantes, ao mesmo tempo em que a própria socialização introduz novas ligações, sem, no entanto (vale o alerta), favorecer em todos os casos uma conveniente maturação das pessoas e relações verdadeiramente pessoais (personalização)” (Concílio Vaticano II. A Igreja no mundo de hoje - GS, 6). Precisamos buscar sempre mais a integração entre “socialização” e “personalização”.

O projeto popular “é a sociedade que queremos construir, é o objetivo a ser alcançado. Ele deverá estimular o trabalho de base, a formação militante e as ações conjuntas para a transformação de nossa sociedade. O caráter do nosso projeto não é apenas reivindicativo, mas busca construir unidade e força social para a transformação profunda das relações de produção”.

Para isso, precisamos construir o poder popular, que consiste na "organização autônoma e independente do povo em suas lutas concretas, sejam elas locais ou regionais, de âmbito nacional ou internacional”, como "um processo permanente de busca por igualdade e justiça”, na promoção e defesa dos Direitos Ambientais, Políticos, Sociais, Civis, Econômicos e Culturais (II Assembleia Popular Nacional. Projeto Popular para o Brasil na construção do Brasil que queremos. Luziânia, 25-28/05/10, p. 6-9).

Em outras palavras, o projeto popular é o projeto do Bem Viver, do Bem Conviver. Jesus de Nazaré, "profeta da maior Utopia (‘que sejamos bons como Deus é bom, que nos amemos como Ele nos amou, que demos a vida pelas pessoas que amamos’) promulgou, com sua vida, sua morte e sua vitória sobre a morte o Bem Viver do Reino de Deus. Ele é pessoalmente um paradigma, perene e universal, do Bem Viver, do Bem Conviver” (Pedro Casaldáliga. Latino-americana Mundial 2012, p. 11).

Eleitor e eleitora, qual o projeto que você escolhe e quer para o Brasil? Quais os partidos políticos (mesmo pequenos) que hoje (e não no passado) apoiam e lutam pelo projeto popular? Quais os candidatos ou candidatas que se identificam com esse projeto?

As situações concretas são muito diferenciadas, sobretudo em nível municipal. Precisamos ter espírito crítico e tomar as melhores atitudes possíveis. Existem partidos e candidatos(as) que são claramente a favor do projeto político dominante; outros que, renegando sua própria história, defendem hoje um projeto político reformista (mas, em alguns casos, ainda possibilitam pequenos espaços de atuação para quem se identifica e luta pelo projeto popular).

Não basta o candidato ou a candidata ser considerado(a) subjetivamente "uma pessoa boa” ou "bem intencionada”, muitas vezes por ingenuidade política ou por causa dos condicionamentos da formação recebida. O mais importante é ver com qual projeto político o candidato ou a candidata se identifica.

"É urgente criar estruturas que consolidem uma ordem social, econômica e política, na qual não haja iniquidade e onde haja possibilidades para todos/as” (DA, 384).

Enfim, “todos os cidadãos(ãs) lembrem-se do direito e, ao mesmo tempo, do dever que têm de fazer uso do seu voto livre em vista da promoção do bem comum” (GS, 75), ou seja, do bem de todos(as).

Uma "outra política” é possível e necessária! Lutemos por ela!


domingo, 25 de setembro de 2016

Um borbônico no ministério de Minas e Energia

ESCRITO POR HEITOR SCALAMBRINI COSTA
DOMINGO, 25 DE SETEMBRO DE 2016

Com o título “Em defesa da energia nuclear” o jornal do Commercio de Pernambuco divulgou em 6 de setembro último, uma entrevista com o filho do senador Fernando Bezerra Coelho, que tem o nome do pai, atual ministro de minas e energia, por força das circunstâncias.

Sua entrevista é de uma clareza cristalina sobre o que o “menino” pretende fazer como ministro de um dos ministérios mais estratégicos para o país. Obviamente como resposta a primeira pergunta “de quais as principais iniciativas que vai adotar?”, tratou logo de asseverar sua total ignorância para o posto que foi guindado. Confessou que seu ministério foi montado com uma equipe de pessoas ligadas ao mercado, as empresas privadas; com o intuito de gerar um ambiente favorável para o mercado. Ou seja, será somente um titere nas mãos dos grupos empresariais, das corporações, cujos interesses são somente mercantis.

Com relação a pergunta feita pelo repórter sobre sua posição quanto a energia nuclear tratou logo de desqualificar aqueles que pensam o contrário, que afirmam que o Brasil não precisa de usinas nucleares. Disse que não tem preconceito sobre esta fonte energética.

Sua resposta demonstra sua completa ignorância, à falta de conhecimento, sabedoria e instrução sobre este tema. Sua crença em elementos amplamente divulgados como falsos. E a sua ignorância é tanta que nem sequer está em condições de saber aquilo que lhe falta.

O ministro conhece bem é como manipular seu curral eleitoral, afirmando em recente visita ao lado do seu pai, aos correligionários do sertão pernambucano, que a usina nuclear será construida em Itacuruba, e trará “desenvolvimento”, empregos e geração de renda aos moradores dos municípios do seu entorno. Isto o ministro e seu pai sabem fazer. Manipular a informação, iludir as pessoas, vender uma falsa imagem de poderoso, daquele que decide.

A energia nuclear para fins energéticos é totalmente desnecessária ao país para sua segurança energética. Esta justificativa de que ela é a salvação contra o “apagão” é trazido a tona, de tempos em tempos, por aqueles que defendem esta fonte de energia por interesses outros, muitas vezes nada republicanos.

O custo de uma usina de 1.000 MW está em torno de 15 bilhões de reais (se não houver atrasos nas obras). Pense numa obra desta magnitude no Brasil que tenha sido entregue em dia, sem novos aditivos? Sem propinas das empreiteiras. O custo da energia para o consumidor é tão caro que se não fosse os subsídios do governo (de todos nós) seria proibitivo comparado com outras tecnologias de geração de energia elétrica. Os custos são camuflados, não se leva em conta nos custos os danos ambientais do ciclo do combustível, e nem o descomissionamento da usina depois de cumprido sua vida útil.

Caso haja vazamento de material radioativo, ai sim que a coisa complica.  Material radioativo disperso na natureza contamina o ar, a água, o solo e subsolo por tempo indeterminado. No desastre de Fukushima fala-se em 40 anos para a descontaminação, e várias dezenas de bilhões de dólares. Nenhuma seguradora do mundo aceita assegurar uma usina nuclear. É o próprio Estado que tem que assegurar a usina para caso de acidentes.

Quanto ao material radioativo produzido nas reações nucleares, aqueles de maior radioatividade, ainda não se sabe o que fazer com eles. Como armazená-los definitivamente. O popular “lixo” fica como presente para as gerações futuras. Belo presente, não senhor ministro.
E assim vai os aspectos negativos de uma usina nuclear, hoje repudiada por vários países do mundo.

Portanto, aqueles que defendem que o país não precisa de energia nuclear não tem nenhum preconceito. Suas posições são determinadas pelo conhecimento dos impactos causados por tal tecnologia. Diferente do senhor ministro que nada sabe sobre este assunto, e de outros do ministério que ocupa. Que seja rápido sua passagem para o bem do país.

Para um desenvolvimento sustentável, voltado para o bem de todos, da pessoa humana e da natureza, em um país como o Brasil com tantas opções de produção de energias renováveis, a energia nuclear não passará.


Heitor Scalambrini Costa, é Professor aposentado da Universidade Federal de Pernambuco

terça-feira, 20 de setembro de 2016

Lula, Belo Monte e a Lava Jato 2

ESCRITO POR TELMA MONTEIRO
SEGUNDA, 19 DE TEMBRO DE 2016

"Belo Monte é um projeto de 30 anos, não é um projeto de agora. Belo Monte levou muito tempo sendo discutida, foi muita gente que discutiu, se fazia projeto, se não fazia projeto, e nós conseguimos dar a Belo Monte um tratamento, diria, qualificado, envolvendo todo o segmento da sociedade num debate", afirmou. De acordo com Lula, abandonar um potencial hídrico de, aproximadamente, 260 mil megawatts para começar a usar termoelétrica a óleo diesel será um "movimento insano", contra toda a ação que se faz no planeta. (Extraído: Estadão 26 de abril de 2010 - Lula defende a construção da usina de Belo Monte)

Em 2010, Lula esteve em Altamira para “lançar” Belo Monte. Estava acompanhado de autoridades e políticos em campanha. Políticos adoram grandes obras. Principalmente superfaturadas. Campanhas eleitorais no Brasil costumavam receber apoio financeiro de empreiteiras e de concessionárias de serviços públicos. Em especial do setor energético (veja-se a Petrobras e o que se descobriu com a Lava Jato), onde se desvendou o funcionamento do esquema de grupos de poder nacionais e transnacionais unidos aos partidos políticos e autoridades do executivo e legislativo para dilapidar o nosso patrimônio.

Para Lula, nós nunca passamos de medíocres e desinformados porque não conhecíamos o projeto da hidrelétrica de Belo Monte. Naquela ocasião, em Altamira, Lula resolveu compartilhar suas “experiências”. Disse que quando era jovem protestou contra a usina de Itaipu. Que acreditou nas fantasias de que Itaipu iria alterar o clima da região, causar terremoto, que o peso da água do reservatório mudaria o eixo da Terra e a Argentina seria inundada. Tirando a história idiota da mudança do eixo da Terra, os demais impactos aconteceram e acontecem no caso de grandes hidrelétricas. Se ele considerou fantasias é por pura falta de conhecimento dos estudos de cientistas e pesquisadores. Ignorou solenemente todas as informações disponíveis.

Chamou-nos, os declarados contrários à construção de Belo Monte, de mal informados. Ignorou que entre os desinformados estavam a equipe técnica do Ibama que analisou o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) de Belo Monte; os técnicos e procuradores do Ministério Público Federal (MPF) que se debruçaram por meses sobre o calhamaço de informações do processo; dos especialistas e pesquisadores que emitiram seus pareceres; do juiz da Vara de Altamira, Antonio Carlos Campelo, que acompanhava o caso desde a primeira ação ajuizada; das organizações da sociedade civil que contam com pessoal habilitado em questões ambientais; dos movimentos sociais da região do Xingu que sempre viveram o dia a dia do rio; e principalmente, dos indígenas que conhecem profundamente o comportamento do ecossistema do qual suas vidas dependem.

Nem é preciso dizer que a infinita falta de conhecimento de Lula sempre atrapalhou o seu já parco discernimento. Basta fazer um retrospecto da baboseira que pautou seus discursos e até recentemente o “pronunciamento” descabido e distorcido sobre as provas apresentadas pela força tarefa da Lava Jato. Portanto, quem não conhecia e jamais procurou conhecer o projeto de Belo Monte e nunca teve a humildade para ouvir a sociedade foi ele, Lula. E é por isso que Belo Monte está lá. O monstro engoliu o rio Xingu e cospe, agora, a podridão da insensatez de um presidente medíocre e perdulário.

Em Altamira, ao exaltar Belo Monte, Lula se jactou de histórias, falsas experiências e afirmações que empolgaram uma plateia de cabos eleitorais e bajuladores de plantão, dele e da então governadora do Pará. A retórica farsesca continuou sendo o seu velho e hoje gasto artifício para enfrentar a realidade do fracasso do seu projeto político.

Nunca deixou de mencionar e se vangloriar de ter chegado aonde chegou sem que fosse preciso ter estudado. Não surpreende que tenha desprezado as conclusões de pesquisadores e especialistas. Ele não as leu. Pensando bem, quando Lula nos chamou de desinformados poderia estar se referindo à falta de outras informações sobre Belo Monte, aquelas que não estiveram disponíveis. Nesse caso estávamos mesmo desinformados.

Entre as informações que Lula disse ter e afirmou que, nós pobres mortais, não tínhamos, bem poderia estar a estratégia de utilização dos recursos de energia para aumentar sua influência na política regional. Ou a pretensão de ser lembrado no futuro como um estadista que encontrou o ideal da política energética na exploração da Amazônia com a remoção compulsória de populações ribeirinhas e indígenas de suas terras imemoriais. Objetivo: transformar o Brasil na quinta economia global.

O setor privado brasileiro nunca quis investir em obras com viabilidade econômica duvidosa, idealizadas por estatais hipertróficas, como se viu no imbróglio do leilão de Belo Monte. Não sendo possível obter taxas de retorno compatíveis com os altos custos sociais e ambientais, deixaram o investimento, o financiamento e os riscos para o Estado, que era rico o suficiente. Lula garantia. Como garantiu a sangria da Petrobras.

Claramente, esse megalomaníaco esteve incentivando falsas parcerias público-privadas, como no caso de Belo Monte, onde quem bancou e correu (ainda corre) riscos é o Estado e os fundos de pensão. Lula planejara voltar em 2015 para continuar sua obra. Mas a bomba da decadência da economia, com o pus emergindo das feridas do quase cadáver putrefato da sua base política no Congresso, atacada pelo cancro da corrupção, ameaçava explodir no seu colo. Então ele deixou para Dilma o gran finale e achou que voltaria para “salvar” a pátria em 2018.

A Lava Jato que está extirpando o câncer que assolou a Petrobras está quase acabando. Espero que comece logo a Lava Jato 2 para desvendar a podridão na Eletrobrás.

Obs: Este texto foi originalmente escrito em 2010 e reescrito agora com alterações e atualizações.
  
Telma Monteiro é ativista socioambiental, pesquisadora, editora do blog http://www.telmadmonteiro.blogspot.com.br, especializado em projetos infra-estruturais na Amazônia. É também pedagoga e publica há anos artigos críticos ao modelo de desenvolvimento adotado pelo Brasil.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Estamos colhendo, exatamente, os frutos dos 13 anos de petismo no governo federal

ESCRITO POR GABRIEL BRITO, DA REDAÇÃO DO CORREIO DA CIDADANIA  
SEXTA, 16 DE SETEMBRO DE 2016

Entre um impeachment e mais um ciclo eleitoral, o Brasil continua a cambalear, no aguardo das medidas econômicas que visam combater a grave crise e sob o calor de frequentes protestos contra o governo de Michel Temer. Além disso, com o cerco da Operação Lava Jato a Lula, indiciado nesta semana, a temperatura dos embates continua a subir, o que deixa várias interrogações no horizonte. Sobre todo esse contexto, o Correio da Cidadania entrevistou o sociólogo do trabalho Ruy Braga, que fez profunda análise do momento.

“Não se pode obscurecer o fato de que a esquerda brasileira colhe hoje aquilo que o PT plantou ao longo de seus 13 anos no Planalto: desmobilização social, estratégia de negociar tudo no parlamento, pacificação apoiada em reformas quase inexistentes, com privilegiamento agudo de setores capitalistas e financeiros”, afirmou, como ponto de partida da compreensão do que se passa.

Conforme já dissera em entrevista anterior, Braga alerta para a necessidade de derrubar o governo de Michel Temer, que visa impor uma dura ordem em favor dos negócios. Aliás, considera que tal combinação de políticas de austeridade com violência política são cada vez mais inerentes ao modelo de democracia em vigor. Mais ainda quando nem mesmo aqueles que subiram ao poder conseguem se entender por completo.

“Ainda existe um potencial de contestação do movimento sindical e também existe mobilização nas ruas. Portanto, um quadro de crise bastante complexo, em que o PMDB tem ressalvas em implantar a agenda desejada pelo PSDB, que pode se beneficiar do ponto de vista eleitoral em dois anos. No entanto, o PMDB não se sente forte o suficiente pra garantir tal agenda, sabendo que favorece os tucanos”.

Ruy Braga também destaca que não pode haver mais vida para os setores de esquerda dentro do lulismo, que mesmo antes do fim da lua de mel com as massas já mostrava uma grande miopia diante dos anseios dos brasileiros. Com isso, considera que há um longo ciclo de reconstrução pela frente, que tem tudo para encontrar duros obstáculos no plano imediato diante de contexto tão aterrador.

“Não tem como manter concessões dos gastos sociais do governo federal numa conjuntura de crise econômica. Isso iria colapsar conforme a crise econômica se aprofundasse. Houve uma desaceleração a partir de 2013. O governo do PT, em tal momento, ainda fez uma leitura vazia das Jornadas de Junho, quando as massas – em especial a juventude da classe trabalhadora, precarizada, mulher, negra e pobre – saíram às ruas exigindo mais democracia, gastos públicos, investimentos em saúde, educação, transporte, moradia. No mês seguinte, em julho de 2013, o governo Dilma cortou mais de 10 bilhões de reais do orçamento federal. A partir de então, não foi mais capaz de retomar a iniciativa política”, contextualizou.

A entrevista completa com Ruy Braga pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Como você assistiu e sentiu o trâmite final do processo de impeachment de Dilma, apreciado e votado no Senado ao longo da última semana?

Ruy Braga: Não foi nenhuma surpresa. A rigor, o segundo governo de Dilma já tinha acabado na votação da Câmara dos Deputados, em 17 de abril. O resultado no Senado não surpreende porque as forças políticas colocadas no interior do parlamento, associadas às forças econômicas e sociais de fora do parlamento, em especial os bancos, grandes empresas, grandes interesses internacionais, já tinham articulado a decisão de que Dilma deveria ser impedida.

Consequentemente, o resultado coroa a combinação de forças ao mesmo tempo políticas, sociais e midiáticas colocadas em movimento no último ano e meio, a fim de substituir o governo Dilma por Michel Temer, e fazer avançar a agenda de contrarreformas, cujo sentido fundamental é fazer um ajuste estrutural no modelo de desenvolvimento capitalista do país, de modo a privilegiar os setores rentistas. A votação no Senado coroa o processo que redundou na assunção do governo Temer.

Correio da Cidadania: O que achou da postura e discurso da presidente Dilma em sua defesa?

Ruy Braga: Acompanhei todos os debates do Senado de maneira pormenorizada, e dentro da dimensão jurídica do impeachment, me parece absolutamente claro que não houve o crime de responsabilidade. Assim, o que houve foi um golpe parlamentar, midiático, palaciano, no sentido de escolher ou encontrar uma razão pra impedir a sequência do governo de Dilma.

Consequentemente, a situação fortalece, claro, o argumento dos setores outrora governistas e cacifa-os a denunciar um golpe que de fato ocorreu. Dentro disso, seu discurso ao Senado levantou uma série de questões-chave para pensarmos a crise. Parece que a Dilma, como personalidade histórica, se preservou de maneira bastante digna no processo. Historiadores estudarão daqui um tempo o momento vivido pelo país e darão razão à tese do golpe e ao discurso proferido por Dilma no Senado.

O fato de Dilma vir discursar como nunca havia feito se explica, em primeiro lugar, pela clara adoção do PT de um modo de regulação baseado na pacificação social, consequentemente, na desmobilização dos setores populares e da massa da classe trabalhadora. Isso significa que nos governos Lula e Dilma percebe-se um PT no poder que prefere negociar no parlamento a estimular a participação das massas no processo de empoderamento social e popular. Abdica do processo de apostar no poder popular, na capacidade de mobilização dos movimentos e pressão sobre o parlamento pra garantir políticas públicas progressistas ou reformas mais profundas, do tipo que nunca foram implementadas pelo PT.

No momento em que o partido e Dilma percebem que a estratégia de pacificação social ruiu com o processo de impeachment, a polarização política instalada na sociedade e toda a radicalização ocorrida no parlamento, por conta da Operação Lava Jato, aprofundamento da crise econômica e suas repercussões na vida nacional, a presidente resolveu radicalizar o discurso porque a nau já tinha ido a pique, o barco já estava furado.

Numa mistura de desespero com alívio, Dilma passou a ter um comportamento mais ativo, no sentido midiático, denunciar o impeachment como um golpe e apelar aos movimentos sociais, de modo a fazer o papel que lhe cabia, de fato, naquele momento. Mas não se pode obscurecer o fato de que a esquerda brasileira colhe hoje aquilo que o PT plantou ao longo de seus 13 anos no Planalto: desmobilização social, estratégia de negociar tudo no parlamento, pacificação apoiada em reformas quase inexistentes, com privilegiamento agudo de setores capitalistas e financeiros.

Estamos colhendo, exatamente, os frutos dos 13 anos de petismo no governo federal. Portanto, Dilma é vítima de golpe parlamentar, porém, é cúmplice do golpe contra os direitos sociais agora em andamento no país.

Correio da Cidadania: O que pensa do adiamento do julgamento do TSE a respeito da chapa Dilma-Temer para 2017?

Ruy Braga: Eu vejo a possibilidade, sim, da queda de Temer, mas pouquíssimo provável. O ambiente do país é muito volátil, está difícil prever o que vai acontecer em duas semanas, o que dizer até o fim de 2018. Mas parece mais provável ele permanecer no poder e procurar, ainda que não seja certo por conta das forças que tem, implementar a agenda de contrarreformas e ataques aos direitos sociais e trabalhistas da massa subalterna do país.

Mas não está claro. Por várias razões: do ponto de vista político strictu sensu, há uma crise que não foi superada, a despeito da formação de uma maioria parlamentar confortável no Congresso. Isso porque o PMDB incorpora a agenda do PSDB, que por sua vez tenta empurrar ao PMDB o mico de aplicar medidas não aprovadas na eleição de 2014. Significa que o PMDB de forma mais ou menos envergonhada, em alguns setores até flagrantemente contrariado, tem de assumir uma agenda que não é a que assumiria em condições normais. No entanto, o PSDB força tal agenda porque percebeu a janela de oportunidades de fazer aprovar as medidas derrotadas em 2014.

Por outro lado, o PMDB sabe que o governo dependerá da aprovação dessas medidas que favoreçam o capital exportador, financeiro e parte significativa do próprio capital industrial brasileiro. No entanto, não é propriamente uma garantia da aprovação porque as medidas são extremamente antipopulares, num contexto fundamentalmente volátil, de grande mobilização social.

Ainda existe um potencial de contestação do movimento sindical e também existe mobilização nas ruas. Portanto, um quadro de crise bastante complexo, em que o PMDB tem ressalvas em implantar a agenda desejada pelo PSDB, que pode se beneficiar do ponto de vista eleitoral em dois anos. No entanto, o PMDB não se sente forte o suficiente pra garantir tal agenda, sabendo que favorece os tucanos.

Ou seja, continuamos num imbróglio muito grande. E caso a agenda avance no Congresso e a reação popular atinja de morte o governo Temer, o PSDB não irá acompanhá-lo para o túmulo, irá romper com o governo do PMDB caso este se torne ainda mais impopular e ameace suas intenções eleitorais.

Pra resumir, é o seguinte: o impeachment foi uma aventura muito mal calculada pelos diversos atores políticos, improvisada. Imaginava-se que o impeachment poderia bloquear a Lava Jato, mas tampouco aconteceu como esperado. No lugar do governo Dilma enfraquecido, mas ainda legítimo e com algum nível de controle sobre o movimento social e sindical, agora temos um governo e um parlamento que cortaram qualquer vínculo com a sociedade, ao menos com as massas populares, que participam de eleições.

Assim, temos uma crise que deve se estender por mais algum tempo. Também deve continuar com alta volatilidade o cenário social do Brasil.

Correio da Cidadania: Acredita que podemos adentrar tempos de instabilidades, e até quedas, nos próximos tempos, talvez com alguma semelhança com a Argentina entre 2001 e 2003?

Ruy Braga: Há um aprofundamento da crise política e o horizonte não é tranquilo para o governo Temer, pois parece que enfrentará um processo de contestação social cada vez mais forte. Até porque só agora os efeitos deletérios do desemprego estão sendo sentidos de forma mais íntima nas classes populares. A isso se soma o fato de o governo apostar numa agenda antitrabalhista, de flagrante ataque contra os direitos sociais, em especial à previdência pública, através da sua reforma.

Haverá aumento da crise, em razão das respostas populares, mas também creio que a economia, num primeiro movimento, irá se recuperar da recessão dos últimos dois anos. Não no patamar anterior à crise, mas claramente atingimos o fundo do poço e talvez fiquemos lá por mais alguns meses. No entanto, é característica da economia capitalista uma recuperação cíclica, ainda que moderada, após processos de recessão profunda. O que temos para o ano que vem é um cenário de recuperação, ainda que muito modesto, em torno de 1%, que de alguma maneira servirá pra aliviar a pressão econômica, combustível da crise política.

Parece que a tempestade da Argentina, com profunda crise política no interior de uma profunda crise econômica, não deverá, ao menos no ano que vem, acontecer. O cenário que enxergo é de aprofundamento da crise política com alguma recuperação cíclica da economia.

Correio da Cidadania: Em entrevista anterior, você disse “estarmos sendo confrontados com o colapso de um modelo de representação tradicional” e usou a Turquia de Erdogan como um exemplo de democracia com diversas nuances ditatoriais. Com o PMDB à frente do governo, diria que já estamos diante desse experimento?

Ruy Braga: Diria que ainda não pelo simples fato de o governo ser frágil. Mas se conseguir controlar a situação, por meio da frente parlamentar e assegurando, por meio das contrarreformas, a elevação da taxa de lucro das empresas do país, ou seja, se o governo se fortalecer com uma recuperação da economia, aí sim nos encaminhamos para o aprofundamento do autoritarismo no país.

O regime democrático brasileiro é muito frágil, de baixíssima intensidade, e aquilo que os setores empresariais querem (ajuste estrutural na economia com vias de renovar as estratégias de espoliação social) exige governos fortes, centralizadores e autoritários. Pois aquilo que caracteriza o desenvolvimento apoiado em regimes de acumulação por espoliação social é a violência política, ao invés da violência econômica que se dá na acumulação de capital e geralmente na produção.

Na verdade, temos a dependência cada vez maior da estrutura da economia em relação a um Estado autoritário, que se apoia na violência política sobre as massas. Portanto, me parece mais ou menos claro que caso o governo Temer se fortaleça caminhamos para uma espécie de “saída turca”, isto é, um regime cada vez mais autoritário a liderar uma democracia de fachada.

Por isso é tão importante derrubar o governo Temer.

Correio da Cidadania: Como você relacionaria o atual momento com as massivas manifestações de 2013? Como vê, nesse sentido, a sequência de atos realizados nas principais cidades, sob a insígnia do Fora Temer?

Ruy Braga: Basicamente, o “Fora Temer” liberou as forças que se organizam em torno dos movimentos sociais do fardo pesado que era defender o governo Dilma. Isso fez intensificar o processo de mobilização em torno de uma bandeira que unifica quase todo mundo.

Com o fim do processo impeachment, os setores populares estão mais à vontade pra sair às ruas e protestar contra o governo desse usurpador chamado Michel Temer. Diria, ainda, que a mobilização que hoje orbita muito em torno dos movimentos sociais e sindicais organizados tende a se ampliar na medida em que os setores que não saíram às ruas neste ano, mas saíram em 2013, devem se somar, pois se trata daqueles setores não organizadas da juventude, do que chamo de “precariado”, que ainda não deram as caras. Mas cada vez mais tendem a se aproximar da mobilização pelo “Fora Temer”.

De fato, o “Fora Temer” é uma palavra de ordem e um slogan sedutor, na medida em que esse governo é profundamente impopular. Com 8%, 10% de aprovação, tem-se um governo fraquíssimo, e a perspectiva de derrubá-lo torna a mobilização bastante sedutora pra diferentes setores subalternos.

Nesse exato momento, assistimos a mobilização dos setores mais organizados, numa espécie de fagulha que pode ser capaz de incendiar setores não organizados, em especial aqueles formados por jovens trabalhadores.

Correio da Cidadania: Como as manifestações comandadas pela direita entre 2015 e 2016 se situam no meio disso?

Ruy Braga: Vejo como algo pendular, levando em consideração o flagrante aprofundamento da polarização política. 2013 foi majoritariamente espontâneo, sustentou bandeiras ou demandas de esquerda, e tinha no seu interior, no momento de pico, cerca de 30% de setores médios tradicionais, insatisfeitos com Dilma. Tais setores médios passaram a ser majoritários nas manifestações de 2015, quando aqueles grupos que sustentaram plataformas mais à esquerda e radicais, como o próprio MPL, recuaram.

Isso por várias razões, desde certa inorganicidade e incapacidade de sustentar o próprio movimento de contestação aos governos, e, evidentemente, uma relativa perda de espaço para a agenda de direita. Em 2015, tivemos uma onda de manifestações pró-impeachment, que se massificou levando-se em conta, no essencial, a participação da mídia corporativa, que convocava as manifestações no país todo.

Com o processo de impeachment de Dilma, entramos no terceiro momento, de retomada das mobilizações dos setores de esquerda contra a agenda liberal, que significa um recuo aos anos 90, simbolizado nas figuras de Serra e Temer. São movimentos pendulares que acompanham os desdobramentos das crises política e econômica e se alimentam dos fatos espetaculares de tais crises.

Correio da Cidadania: Em meio à crise toda, como viu a sessão de cassação de Eduardo Cunha neste início de semana na Câmara, um dos ícones da recente ingovernabilidade do país e também da queda de Dilma?

Ruy Braga: Não acredito que mude. Parece que, pura e simplesmente, tivemos outra tentativa da Câmara, ao menos de uma parcela majoritária, de salvar sua pele diante da opinião pública. Temos uma classe política desgastada, uma Câmara que se mostrou praticamente nua na votação do impeachment de Dilma e chocou o país com sua faceta caipira, retrógrada, reacionária, conservadora, uma face misógina, além de empresarial, branca, enfim, tudo aquilo que a sociedade brasileira não é em sua maioria. Eles chocaram o país no impeachment de Dilma e agora buscam fazer relações públicas com a opinião nacional ao afastar Eduardo Cunha, que na realidade já tinha perdido todo seu capital político.

É um indivíduo, evidentemente, deplorável, detestável, mas nada mais nada menos representa a condição política do regime brasileiro e sua forma de funcionamento, a face mais visível e perversa dessa classe política. Não acho que a cassação do Cunha resolve a crise política e mudará algo. Foi uma maioria de ocasião, mas não altera as principais determinações da crise política tal como ela se apresenta hoje.

Correio da Cidadania: O que pensa da relação entre manifestantes e PM, mais uma vez a envolver a polêmica a respeito da tática black bloc?

Ruy Braga: O Vladimir Safatle matou a charada quando disse que “a polícia tem partido”. De fato, a Polícia Militar tem partido e é o partido da ordem, no caso aqui de São Paulo o partido que comanda o estado, o PSDB. A polícia reprime duramente as manifestações progressistas, protagonizadas pela juventude, pacíficas, e celebra ou garante as manifestações pelo impeachment, contra o PT, contra Dilma e assim por diante. É uma clara demonstração de que a Polícia Militar tem um partido, um partido antipopular, do ataque aos pobres, à juventude negra; é o partido daquilo que podemos chamar de atraso. Isto ocorre levando-se em consideração o uso cada vez mais frequente, e que tragicamente continuaremos a ver, da violência política contra as massas populares que se rebelam.

A burguesia brasileira não tem um plano B. Ela vai atacar os direitos dos trabalhadores, que reagirão e serão duramente reprimidos pela PM. É o que tem acontecido e vai continuar acontecendo. A estratégia social de acumulação por espoliação depende fundamentalmente da violência da polícia e do Estado. Insisto: a PM ou a militarização frente ao movimento social no Brasil é um componente inerente, não é algo externo do próprio regime e modelo de desenvolvimento. Vai ser cada vez mais usado e não há a menor sombra de dúvidas de que a PM, quando promove a baderna, a confusão e a violência no final das manifestações, absolutamente pacíficas, pelo Fora Temer, está agindo conforme uma diretriz que, seguramente, recebe do governo do estado de São Paulo.

Dessa forma, precisa criar um fato político para justificar a repressão. Apoiada na mídia golpista, a estratégia é aquela que a burguesia brasileira tem à sua disposição hoje. É a única possibilidade. Tudo o que foge disso não é uma alternativa para a burguesia brasileira. A democracia ou a democratização do país não é alternativa para a burguesia brasileira. A alternativa única e exclusiva é a violência contra a pressão popular.

Correio da Cidadania: Teria finalmente algo ainda falar sobre a debacle do governo petista, após anos de euforia e consagração internacional? O que será do lulismo daqui em diante?

Ruy Braga: Naturalmente, a crise do segundo governo Dilma, ou ao menos o ritmo que tomou, tem efetivamente um componente político: a disputa entre Dilma e Eduardo Cunha, que se resolveu neste ano. O ritmo político, de alguma forma, acelerou tanto a queda da Dilma quanto o próprio aprofundamento da crise econômica.

Tivemos no parlamento, a partir de 2015, a votação de uma série de pautas-bomba que vinham sendo acumuladas e praticamente inviabilizaram qualquer capacidade de manobra do governo federal em relação à questão econômica. Assim, temos um componente político que passa pelas características da cena política no parlamento e pela relação entre o legislativo e o executivo.

Entretanto, não vi como surpresa o colapso do lulismo. Colapso do lulismo como modo de regulação do conflito de classes no Brasil, apoiado pelas ideias de pacificação social, por um consentimento ativo dos setores mais organizados da classe trabalhadora e dos movimentos sociais, e um consentimento mais passivo, basicamente formado pela combinação de políticas sociais do Bolsa Família para o subproletariado e a formalização e valorização do salário mínimo para o precariado brasileiro. Tal combinação de consentimentos, ativo e passivo, tinha um colapso mais ou menos previsível, a partir do aprofundamento da crise econômica.

Não tem como manter concessões, ainda que sejam concessões mínimas e do ponto de vista do mercado de trabalho, dos gastos sociais do governo federal, numa conjuntura de crise econômica. Isso iria notoriamente colapsar conforme a crise econômica se aprofundasse. Houve uma desaceleração a partir de 2013. O governo do PT, em tal momento, ainda fez uma leitura vazia das Jornadas de Junho de 2013, quando as massas – em especial a juventude da classe trabalhadora, precarizada, mulher, negra e pobre – saíram às ruas exigindo mais democracia, mais gastos públicos, mais investimentos em saúde, em educação, em transporte, em moradia. No mês seguinte, em julho de 2013, o governo Dilma cortou mais de 10 bilhões de reais do orçamento federal. Ou seja, fez uma leitura totalmente às avessas e cavou sua própria sepultura, porque a partir de então não foi mais capaz de retomar a iniciativa política.

O governo Dilma, assim, ficou cada vez mais refém de um parlamento conservador e reacionário e de um ente político (PMDB) que deu uma acelerada guinada para a direita, de modo a ficar cada vez mais dependente. A ponto de, ao ver aquelas massas de verde e amarelo invadirem as ruas, em grande medida convocadas pela mídia golpista, ficar totalmente sem medida no cenário político. Não podia contar com os setores populares, que havia traído com uma campanha à esquerda em 2014 e medidas à direita em 2015 – cortes de gastos aos direitos sociais e trabalhistas etc.; por outro lado, não podia propriamente contar com uma base parlamentar que estava dando uma guinada à direita muito improvisada e acelerada, levando-se em conta a própria reação à Operação Lava Jato.

O governo tornou-se insustentável, mas apenas expressa e representa o colapso daquele modo de regulação que o lulismo representou durante ao menos 12 anos. Ou seja, uma acomodação mais ou menos geral dos interesses das classes populares no interior de um modelo de desenvolvimento financeirizado, que privilegiava fundamentalmente setores do capital financeiro e algumas frações do capital interno, mas internacionalizado, como o agronegócio, a construção civil e assim por diante.

O fim do governo Dilma, da forma como vimos, representa um desdobramento razoavelmente natural do colapso do modo de representação lulista.

Correio da Cidadania: Dentro disso, como imagina a esquerda, de modo geral, nos próximos anos?

Ruy Braga: Dentro do lulismo, não imagino mais esquerda, não há esperança. Fora do lulismo, e pensando basicamente fora desse projeto de conciliação de classe e pacificação social, acredito que há espaço para uma esquerda mais radical no país. Uma esquerda radical que terá pela frente uma enorme tarefa de reconstrução de um projeto socialista de país, que parte necessariamente de uma reconstrução das suas práticas políticas.

Não consigo imaginar hoje um projeto de esquerda no Brasil que tenha futuro se não for capaz de articular de maneira não sectária tantos segmentos de esquerda, que ainda existem em termos eleitorais, e de enraizamento na vida política brasileira. Notoriamente, o PSOL, ao lado de outros partidos de menor expressão, como o caso do PCB e do PSTU, em diálogo com os movimentos sociais. E estou pensando tanto nos movimentos sociais urbanos, com o MTST à frente, quanto nos setores do campo, MST e outros movimentos populares, que sejam capazes de superar a experiência de 13 anos do PT no governo.

Hoje, estamos diante da possibilidade de reinventarmos a esquerda no país a partir da fórmula que envolve partido e movimento. Que seja uma fórmula radicalmente democrática, capaz de colocar o controle das direções pelas bases e a reinventar práticas democráticas dentro das organizações socialistas como prioridade absoluta. Caso contrário, não vejo possibilidade de superar a crise que o PT nos legou.

Correio da Cidadania: Como a destituição da presidente Dilma deve se refletir nas eleições municipais?

Ruy Braga: Acho que o impacto principal é uma espécie de comprovação de que o PT não é capaz de tirar o país da crise. Consequentemente, candidaturas conservadoras ou de direita devem ser beneficiadas pela queda da Dilma. Temos, por outro lado, um PT buscando explorar politicamente a história do golpe, mas acho pouco provável que consiga – ao menos nos centros urbanos mais importantes como São Paulo e Rio de Janeiro; talvez haja alguma esperança para o PT no Nordeste, ainda que com dificuldades.

O cenário político eleitoral deste ano não deve destoar muito daquilo que temos percebido em pesquisas de opinião. Provavelmente, prevalecerão candidaturas de centro ou centro-direita, com algumas eventuais surpresas positivas, como o caso da Luciana Genro em Porto Alegre, que possui chances efetivas de ganhar a prefeitura – e não vai ser fácil, pela existência do segundo turno. Parece que o cenário geral é bastante desalentador para a esquerda brasileira. Novamente, tal cenário se deve à derrota imposta a toda a esquerda brasileira, não apenas aos setores petistas.

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