O professor de serviço social e pensador marxista explica a
história da esquerda no Brasil e seus desdobramentos no momento atual em
entrevista especial para o site da Caros Amigos, em razão do lançamento da
edição especial “Dilemas e Desafios da Esquerda Brasileira”. Confira.
Por Tatiana Merlino
Caros Amigos – Quando se poderia afirmar que surgiu uma esquerda
no Brasil?
Sem pretender rigor cronológico, diria que se pode falar em uma
proto-história da esquerda brasileira a partir da última década do século 19 e
nos primeiros anos do século 20. Pense-se, para ficarmos em exemplos
conhecidos, nos nomes de Silvério Fontes, em parte da atividade de Euclides da
Cunha e mesmo nas posições de Lima Barreto. Mas, com rigor, penso que a
história da nossa esquerda tem mesmo o seu momento fundacional com a atividade
dos grupos anarquistas, especialmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, no
período imediatamente anterior à Primeira Guerra Mundial. Julgo correta a
afirmação de que os anarquistas inauguraram a história da esquerda no Brasil.
Caros Amigos – Qual foi a influência da imigração europeia na
consolidação de uma ideologia de esquerda no Brasil?
Esta influência foi absolutamente fundamental – não por acaso,
mencionei, acima, que os anarquistas inauguraram a história da esquerda em
nosso país. E sabemos do papel dos imigrantes neste processo (aliás, a
oligarquia percebeu-o claramente: recorde-se a “lei celerada”, de 1907). Mas é
necessário enfatizar que não se tratou de nenhuma transplantação artificial: a
incipiente industrialização criava as condições para que as ideias difundidas
pelas lideranças anarquistas penetrassem com força no nascente movimento
operário. A greve de 1917, em São Paulo, mostra-o suficientemente.
Caros Amigos – Que ideias os imigrantes trouxeram?
Não cabe aqui, suponho, sumariar o ideário anarquista (que,
diga-se de passagem, chega-nos como um caldo de cultura bastante heterogêneo).
A mim, parece-me que o mais significativo pode ser resumido em dois pontos
elementares: a defesa da dignidade do trabalho e do trabalhador e a definição
claríssima das linhas básicas do antagonismo entre os interesses dos
trabalhadores e os da oligarquia. Num país onde a herança do escravismo,
ademais de pesadíssima, estava muito viva, a simples afirmação dos direitos
civis e políticos do trabalhador “livre” já era, em si, revolucionária. Quanto
à determinação das lutas de classes, o princípio da autonomia política dos
trabalhadores (mesmo que, para os anarquistas, isto significasse uma recusa da
intervenção política institucional, o que se demonstrou insustentável), no
Brasil nós o devemos aos anarquistas.
Caros Amigos – Quais eram as correntes que atuaram no país no
começo do século 20? Como era tal atuação?
À mobilização anarquista, a oligarquia respondeu imediatamente
(para além da repressão) com o estímulo ao sindicalismo “amarelo”,
explicitamente bancado pelo governo federal (pense-se, por exemplo, no esforço
de Mário Hermes da Fonseca, filho do Presidente da República, para a criação do
“peleguismo” no IV Congresso Operário, realizado no Rio de Janeiro). No período
que sucede imediatamente à Primeira Guerra Mundial, o movimento operário tem a
sua dinâmica fundada no confronto entre estas duas tendências. E suas formas de
intervenção eram, é óbvio, inteiramente diversas: os anarquistas jogavam forte
na criação de condições ideológicas constitutivas da consciência classista (sua
ênfase na educação e na imprensa independente são seus traços característicos)
e apostavam na ação direta; os “amarelos” incorporavam a ideologia da
colaboração de classes e se subordinavam às diretrizes legal-institucionais da
oligarquia.
Caros Amigos – Como foi o processo que resultou na criação do PCB?
Quais foram as forças que o formaram?
Se não estou em erro, diria que o PCB (fundado em março de 1922)
resulta da confluência de dois vetores: o exaurimento do poder de atração do
anarquismo entre os trabalhadores e o impacto da Revolução de Outubro. A greve
de 1917, que pôs a correr, em São Paulo, as autoridades e deixou a capital nas
mãos dos trabalhadores – ponto mais alto da intervenção anarquista em nosso
país –, também deixou a nu a incapacidade do anarquismo para tratar a questão
do poder. O impacto da Revolução Russa conferiu grande prestígio (o que, aliás,
foi um fenômeno mundial) ao comunismo, num primeiro momento inclusive entre os
anarquistas. Evidentemente, não se esgotam nestes dois vetores as bases para o
surgimento do PCB – para compreendê-lo, é necessário observar as mudanças
societais que estavam em curso, mesmo larvares, no país, que alteravam
claramente a estrutura de classes e as práticas políticas (pense-se, aqui, no
que o “tenentismo” sinalizava) e atingiam inclusive as expressões estéticas
(não é casual, ainda que expressando posições de classe muito diversas, que o
PCB seja coetâneo ao Modernismo). Importa observar que o surgimento do Partido
Comunista no Brasil, à diferença do ocorrido em muitos outros países, inclusive
da América Latina, não se beneficiou da existência do que podemos designar como
“cultura socialista”: aqui, o peso do anarquismo na fundação do PCB (lembre-se
que o nome mais conhecido dentre os fundadores era o de Astrogildo Pereira, que
provinha do anarquismo) foi hipertrofiado precisamente pela ausência de
qualquer outro componente significativo de esquerda – não é por acaso que, no
PCB, manifestam-se precocemente divergências de monta (por exemplo, já em
1927-1928).
Caros Amigos – Como se desenvolveu a esquerda durante o Estado
Novo, o que ela enfrentou, como atuou?
O Estado Novo se ergue após uma séria derrota da principal força
de esquerda operante no país a partir do segundo terço da década de 1930 –
refiro-me ao PCB que, após a ilegalização da Aliança Nacional Libertadora (que,
de fato, era uma frente que incluía outras forças além do PCB), lidera a
tentativa de tomada do poder em novembro de 1935. Durante os anos de 1938 a
1943, período em que o Estado Novo se manteve em face de uma oposição
imobilizada pela repressão (mas não só), a intervenção da esquerda foi
praticamente nula. O próprio PCB (que, à época, assistiu ao surgimento de
outras frações comunistas, como, por exemplo, aquela animada por Hermínio
Sacchetta) praticamente desaparece como organização entre os finais dos anos
1930 e a realização da célebre “Conferência da Mantiqueira” (1943). É somente a
partir de 1943 – e não se subestime nisto a viragem que ocorre no decurso da
guerra, especialmente após a vitória soviética em Stalingrado – que se pode
falar de uma retomada da intervenção da esquerda, inclusive com o surgimento de
uma esquerda não-marxista.
Caros Amigos – E durante o intervalo democrático entre 45 e 64?
Penso que devemos ter alguma cautela ao mencionar o período
1945-1964 como um “intervalo democrático” – não nos esqueçamos que o Governo
Dutra foi emblemático da Guerra Fria que nascia com o seu zoológico
anticomunismo: foi, dos governos “constitucionais”, um dos mais, senão o mais,
antidemocrático que tivemos. A repressão que então se abateu sobre o movimento
operário-sindical responde, em grande medida, pela interrupção do crescimento
da esquerda, visível em 1945-1946. Mas esta repressão não impediu a intervenção
significativa da esquerda, seja no próprio período Dutra (evoque-se o papel do
Partido Comunista na luta rural de Porecatu, no Paraná), seja na abertura dos
anos 1950, em especial no movimento operário-sindical, quando os comunistas
estabelecem, de fato, uma aliança com setores do Partido Trabalhista Brasileiro
(o PTB de Vargas).
A meu juízo, é na segunda metade da década de 1950 – mais
precisamente, após o suicídio de Vargas e a intentona golpista de 1955 – que
podemos registrar um efetivo crescimento da esquerda no país. No período
posterior a 1955, são constituintes deste crescimento dois fenômenos: a crise e
a recuperação do PCB e o surgimento de forças de esquerda independentemente da
influência do PCB. Conhece-se a crise do PCB na imediata sequência do XX
Congresso do PCUS (fevereiro de 1956): a chamada “denúncia do culto à
personalidade” de Stalin leva o PCB, desde 1945 fortemente stalinizado, a uma
crise que põe o partido no fundo do poço. Somente em 1958, mediante uma “nova
política” (cuja formulação inicial está na discutida “Declaração de Março”), o
partido dos comunistas ganha um novo fôlego, que lhe permitirá ser uma
referência nos anos seguintes (apesar da fratura que sobrevém em 1962 e que dá
origem ao PC do B).
Mas é também no fim dos anos 1950 que surgem núcleos de esquerda,
marxistas e revolucionários, que não carregam a hipoteca do stalinismo que
marcara o PCB. Este movimento, que se tornará inteiramente visível na entrada
dos anos 1960 e que enriquece a esquerda, não expressa tão somente a dinâmica
da sociedade brasileira, mas também sinaliza giros ocorrentes em outras
experiências políticas (ademais da Revolução Chinesa, incide aqui,
poderosamente, o influxo das lutas de libertação nacional em todo o à época
denominado Terceiro Mundo e, particularmente nos anos seguintes, da Revolução
Cubana). Creio que é preciso estudar com mais cuidado estes anos férteis para a
esquerda brasileira, quando o PCB perde o monopólio do marxismo entre nós – e o
marxismo se espraia para muito além das fronteiras do PCB.
A transição dos anos 1950 aos 1960 é de crescimento (inclusive
orgânico-partidário) da esquerda brasileira – e isto vale, a meu juízo, tanto
para o PCB como as outras frações emergentes fora do circuito da tradição
marxista. Penso na constituição de setores socialistas em partidos inteiramente
alheios a esta tradição (basicamente no PTB) e no aparecimento de segmentos
socialistas laicos vinculados a diferentes igrejas, embora com visibilidade
maior para os de extração católica (em função, inclusive, do ponderável
redirecionamento da Igreja a partir do papado de João XXIII). É mais ou menos
claro que este crescimento da esquerda (e, em todas estas respostas, estou
designando por “esquerda” um leque muito amplo e heterogêneo de forças, cujo
denominador comum me parece ser o antiimperialismo e a crítica à ordem burguesa
numa perspectiva voltada para o futuro, excluindo-se, pois, o anticapitalismo
romântico próprio da direita restauradora) expressou, naqueles anos, um efetivo
processo de democratização da sociedade brasileira – processo ele mesmo
relacionado às mudanças estruturais em curso (consolidação da industrialização
substitutiva de importações, urbanização etc.).
Caros Amigos – O que representou o golpe de 64 para a esquerda no
Brasil?
Entendo o golpe do 1º de abril conforme a brilhante caracterização
de Florestan Fernandes: foi parte de um processo mundial de contra-revolução
preventiva. Representou, para as massas trabalhadoras brasileiras, a liquidação
de um processo de democratização que certamente conduziria a profundas
modificações econômico-sociais, capazes de desobstruir a via para o rompimento
da nossa heteronomia econômica. Para a esquerda, foi uma derrota de enormes
implicações.
Também entendo que a esquerda laborou em equívocos e cometeu erros
que facilitaram o golpe e a instauração da ditadura. Mas, ao contrário de
muitos analistas, não debito a derrota de abril aos equívocos e erros da
esquerda: o golpe, parte da mencionada contra-revolução preventiva, deve ser
explicado pela natureza da dominação de classe exercida no Brasil pela
burguesia. Naquele momento, incapaz de ser classe dirigente, ela escolheu,
conscientemente, enquanto classe, ser classe dominante – e armou um esquema de
alianças, nacionais e internacionais, que lhe possibilitou, durante quase 20
anos, instaurar o que o mesmo Florestan designou como autocracia burguesa.
Caros Amigos – Como avalia as diversas organizações que surgiram
no pós-golpe? Por que foram tantas, por que eram tantas correntes? Porque não
conseguiram se unir?
A unidade entre as forças reacionárias e/ou conservadoras nunca
constituiu um problema de vulto na história política do século 20 – e se
compreende a razão: seus interesses econômicos têm fundamentos comuns e estão
enraizados no presente. No quadro da esquerda, a unidade é sempre problemática,
porque os enlaces se dão mais na prospecção do futuro do que na defesa de
interesses materiais imediatos; é problemática, mas possível, como resultado de
longos processos de debates, do conhecimento da experiência histórica, de
combates prévios travados em comum e, sobretudo, do próprio nível de
consciência das massas trabalhadoras, conquistado em suas experiências diretas.
Frente a um inimigo comum – como era o caso da ditadura instaurada em 1964 e cujo
caráter de classe se explicitou, sem deixar margem a dúvidas, em 1968, com o
AI-5 – seria esperável a constituição de uma unidade entre as forças de
esquerda. Sabemos que isto não ocorreu. Muitas foram as causas da dispersão de
esforços e de combates. Penso que parte delas estava inscrita na análise que as
diferentes forças fizeram (ou deixaram de fazer) da natureza do regime
instaurado em 1964 e, ainda, das causas que permitiram a vitória das forças de
direita. Mas também pesaram as concepções estratégicas quanto à derrota da
ditadura, a extração de classe dos resistentes e a conjuntura ideológica da
época. Substantivamente, pesou igualmente a ponderação diferente que as várias
forças de esquerda (profundamente debilitadas, pela repressão sistemática a que
foram submetidas, em sua relação com as massas trabalhadoras) faziam do papel a
ser desempenhado por estas mesmas massas.
Caros Amigos – Como a luta de massa se organizou na segunda metade
dos anos 70?
Parece-me que estavam na direção mais correta aquelas forças (e
este foi, entre outros, o caso do PCB) que entendiam a derrota da ditadura como
resultado de lutas de massas. O fracasso do “modelo econômico” da ditadura
(evidenciado claramente a partir de 1974-1975), as divisões que começaram a
erodir a estreita base política do regime de 1964 e, sobretudo, a até então
lenta reinserção da classe operária na cena política criaram as condições para
que a resistência democrática deixasse os nichos em que subsistia e ampliasse o
seu raio de influência. Frentes de luta até então subestimadas (contra a
carestia, pela anistia e mesmo processos eleitorais) ganharam uma ponderação
até então insuspeitada para muitos setores da esquerda.
Caros Amigos – Qual foi o papel desempenhado pelo sindicalismo no
período pré-democratização?
Aqui, a resposta é simples: foi absolutamente fundamental.
Mediante a ação do movimento operário-sindical é que se processou a reinserção
das massas trabalhadoras (especificamente do proletariado) na cena política
brasileira. Até então, a oposição e a resistência à ditadura tinham uma
incontestável hegemonia burguesa (não se deve subestimar o papel do falecido
Movimento Democrático Brasileiro/MDB); mediante a ação operário-sindical, que
começa a ganhar vulto a partir de 1976-1977, a oposição burguesa é afetada, sua
hegemonia na resistência institucional é ameaçada e a erosão do regime se
acelera.
Caros Amigos – Qual foi a importância da esquerda no fim da
ditadura e na redemocratização do país?
Já assinalei que a reinserção da classe operária na cena política,
no último terço da década de 1970, foi o componente central para a derrota da
ditadura. Foi através da dinamização do movimento sindical que esta inserção se
viabilizou – e teve como efeito a catalização das demandas democráticas numa escala
até então inimaginável, arrastando amplos setores das camadas médias, da
intelectualidade e até mesmo de segmentos burgueses prejudicados no marco do
“modelo econômico”. Não penso que este arco de forças, originalmente, possa ser
visto como uma criação da esquerda – embora novos setores de esquerda e antigos
militantes, que puderam sobreviver à repressão, tenham tido papel significativo
na sua constituição. Mas é indiscutível que, com o quadro novo criado pela
movimentação operário-sindical, distintas forças de esquerda, operando em
especial a partir do fim do AI-5 e da anistia, deixaram a sua marca no processo
de derrota da ditadura.
Caros Amigos – Como avalia o processo de surgimento do PT, da CUT
e do MST?
Entendo que o surgimento do PT e da CUT estão diretamente ligados
ao que designo como reinserção da classe operária na cena política brasileira –
diria que ambos, emergentes nos anos 1980, são um fruto daquele processo. E um
processo daquela relevância origina naturalmente, numa sociedade diferenciada e
complexa, tal como já se apresentava a nossa na abertura daquela década,
distintas expressões políticas. Nas suas origens, embora militando noutra
organização política, vi o surgimento de ambos como algo basicamente positivo –
porém, sempre tive preocupações em relação ao seu futuro, preocupações
referidas à retórica “esquerdista” e sectária (quem não se lembra daquela
bobagem eleitoreira de “trabalhador vota em trabalhador”?), às ligações
internacionais (especialmente no caso da CUT) e, muito especialmente, à
ignorância (nalguns casos, o desprezo) em relação ao passado de lutas dos
trabalhadores e das outras forças de esquerda. Mas, à época, debitei tudo isto
à necessidade natural de constituir uma identidade partidária e confiei em que
a presença de lideranças expressivas de lutas sociais precedentes poderia fazer
amadurecer esta identidade num sentido efetivamente de esquerda.
Penso que é diferente o caso do MST. Também fruto das condições
que levaram à derrota da ditadura, o MST, a meu juízo, tornou-se um movimento
verdadeiramente autônomo, com objetivos muito claros e uma estratégia de luta
flexível e que leva em conta a experiência do passado. É bastante provável, em
função das aceleradas transformações operadas no campo, que o movimento seja, na
atualidade, compelido a repensar-se e a repensar a natureza e a função das suas
lutas – mas me parece o único protagonista político significativo que põe em
prática algumas referências próprias da esquerda, como a sistemática formação
política e a solidariedade internacionalista.
Caros Amigos – O que representaram para a história da esquerda as
eleições de 89?
O balanço, feito à distância, do processo eleitoral de 1989 é
paradoxal. De uma parte, mostrou a força das aspirações democráticas num
momento preciso – o saldo eleitoral, do ponto de vista imediato, foi notável:
demonstrou a possibilidade efetiva de derrotar, nos marcos da
institucionalidade formal, as forças da direita, desde que se realizasse, ainda
que momentaneamente, uma unidade da esquerda e de setores democráticos
(recorde-se que tanto os partidos comunistas quanto Covas e Brizola apoiaram
Lula no segundo turno). De outra parte, o ganho organizativo, para o conjunto
da esquerda, parece-me que foi pouco mais que residual – não teve a menor
simetria com o ganho eleitoral.Mas é preciso dizer outra coisa importante:
ficou claro que a grande burguesia, em processos eleitorais minimamente
democráticos, não tinha, no final dos anos 1980, a menor chance de se
viabilizar se apresentasse o seu próprio rosto (Collor nunca passou de um
aventureiro político, que não expressava organicamente os interesses do grande
capital; foi apenas um instrumento para evitar a vitória de Lula). E a grande
burguesia aprendeu a lição: no processo eleitoral seguinte, foi obrigada a
usar, para a defesa das suas posições, a maquiagem da esquerda – daí o seu
apoio a FHC.
Caros Amigos – Como vê os rumos do PT desde então?
A resposta a esta questão já está implícita linhas acima e, de
algum modo, inclui a pergunta subsequente. Os anos 1990 foram de um discreto,
aparentemente suave e efetivo deslizamento do PT para o centro – já no primeiro
confronto com FHC, desenhava-se o “Lulinha paz e amor”. Ao que parece, no fim
da década, a esquerda foi inteiramente neutralizada no interior do PT – isto
não significa, a meu juízo, que desde então deixaram de estar presentes no PT
militantes de esquerda sérios, responsáveis e confiáveis. Mas tudo indica que
são algumas rosas vermelhas num grande campo de braquiária. Posso estar
enganado, mas, a partir de 2003, o PT converteu-se no gestor preferencial, para
a grande burguesia, deste país. Permita-me recorrer a algo menor, mas que me
parece extremamente simbólico: semana passada, a grande imprensa noticiou que o
ex-presidente da República fez uma viagem ao exterior num jatinho de empresa do
Grupo Gerdau, mantendo agradável palestra com o patriarca da família. Não sei
se é fato, mas sei que é emblemático. Emblema de que já tivemos prova, aqui no
Rio de Janeiro, há tempos: quando do falecimento de Roberto Marinho, Lula veio
ao velório acompanhado de um séquito de ministros; no velório de Brizola,
brilhou pela ausência.
Caros Amigos – Quais foram os efeitos da década neoliberal na
esquerda brasileira?
Os efeitos – ainda que indiretos, mediatos e que precisam ser
relacionados aos impactos derivados da queda do “Muro de Berlim” – foram
catastróficos em todo o mundo e não se limitaram, obviamente, ao universo
ideológico e ao imaginário político: o preço da ofensiva do grande capital foi
e está sendo pago pelas massas trabalhadoras do mundo inteiro.
Sobre a esquerda brasileira, os efeitos foram imediatamente deletérios:
o generalizado abandono do ideário socialista e, no limite, a sua conversão
numa social-democracia tíbia e tardia. Forças que no passado tiveram expressiva
participação na luta contra a ditadura e pela democratização do país
converteram-se ou em abertos porta vozes da ordem (o caso do PT é certamente
gritante, mas não se esqueça o posicionamento junto com o DEM – com o DEM! –
que os ex-comunistas do PPS hoje efetivam) ou abdicaram do seu programa e da
sua autonomia na prática política (o caso do PCdoB). Evidentemente, estamos
defrontados com um processo social profundo, que não pode ser creditado a
personalidades ou a oportunismos de ocasião. De qualquer forma, impera na
esquerda “reciclada” pela ideologia dessa coisa realmente reacionária que grosseiramente
se chama neoliberalismo um cinismo assombroso: ex-guerrilheiros que se tornaram
paladinos da “cidadania”, ex-líderes sindicais outrora extremamente radicais
defendendo/teorizando os/sobre a importância econômica e democrática de fundos
de pensão, ex-expoentes de partidos comunistas predicando que a questão central
sob o capitalismo está na distribuição e não no modo de produção e coisas que
tais.
Caros Amigos – O que representou a eleição de Lula em 2002 para a
esquerda brasileira? Como avalia desde então as forças de esquerda no país?
Do ponto de vista político imediato, o resultado eleitoral de 2002
foi uma derrota da direita e dos conservadores, uma derrota do grande capital.
Do ponto de vista simbólico, foi extremamente importante a vitória de um líder
político de extração operária.
Mas uma coisa foi a vitória eleitoral e outra, muito diversa, o
desempenho político: a enorme legitimidade que as urnas conferiram a Lula para
empreender a caminhada no sentido das grandes transformações econômicas e
sociais foi direcionada para outro rumo – à base da reiteração do fisiologismo
político, a adequação do minimalismo da política social à orientação
macro-econômica de interesse do grande capital. Lula realizou uma eficiente
gestão do status quo.
Que fique claro que estou longe de equalizar Lula (e tudo o que
ele representa e expressa) a um líder submisso à direita e aos conservadores ou
um mero instrumento do grande capital – mas seus dois períodos presidenciais
estiveram aquém, inclusive, de uma prática política “possibilista”. E seu
principal papel, no que tange à esquerda, foi desqualificá-la como capaz sequer
de um governo “diferente” – e não será fácil, para a esquerda, livrar-se desta
herança.
Caros Amigos – Por fim, como o senhor avalia o atual momento da
esquerda brasileira?
Penso que se trata de uma conjuntura extremamente difícil (e,
insisto, trata-se de um quadro mundial, que não diz respeito somente ao
Brasil). O espectro da esquerda orgânica (bastante diferenciada: PCB, Psol,
PSTU) e da esquerda que ainda subsiste no interior de alguns partidos
(nomeadamente no PT) não reflete minimamente o peso potencial, mesmo que hoje
minoritário, da esquerda na sociedade brasileira (como se pode constatar em
movimentos como o MST e em grupos políticos minúsculos, mas que podem ser
expressivos futuramente). Como escrevi há algum tempo, o nosso déficit é
organizacional e ele não será superado da noite para o dia – temos, a esquerda,
um longo caminho a percorrer.
A longo prazo (por mais que esta expressão provoque um sorriso nos
keynesianos), sou otimista. As contradições e impasses da ordem do capital,
inclusive como se apresentam na periferia, são insolúveis no seu marco – não há
Bolsa Família, mesmo ampliado, que os resolva. As tensões acumuladas na nossa
formação social não podem ser anestesiadas sem limites. Tenho, para mim, que
está e continua em curso um processo de fundo que implicará numa agudização das
lutas de classes. Se a normalidade da democracia formal não sofrer interrupção,
a esquerda poderá perfeitamente superar a sua debilidade organizacional – desde
que trabalhemos forte já desde agora – e cumprir o que dela se espera: vencer a
cronificação da barbárie pelo avanço na direção do horizonte socialista.
José Paulo Netto é professor emérito da UFRJ e professor da Escola
Nacional Florestan Fernandes.