José Ribamar Bessa Freire
17/02/2013 - Diário do Amazonas
Embora viva num palácio em Roma e fale latim, o
papa ainda tem poder para fazer a cabeça de muita gente humilde que ele não
conhece, de pessoas que moram nas bibocas mais remotas do planeta. Ele se
apropria de mentes e corações, pauta os temas das conversas e determina o que
cada um, nos mais longínquos rincões, pensa e sente e até como devem se
comportar os que acreditam em sua infalibilidade.
Foi o que aconteceu no bairro de Aparecida, em
Manaus, onde o papa entrou e de onde nunca mais saiu. Lá, no Beco da Bosta,
vivia um honrado chefe de família, definitivamente careca, inapelavelmente
careca, cuja cabeça ovalada, cheia de manchas amarelas, parecia um casco de
tartaruga. Por isso, ele ficou conhecido como Tracajá. Seu Tracajá.
Era Seu Tracajá prá lá, Seu Tracajá pra cá. Ninguém
sabia ao certo seu nome de batismo, nem os próprios filhos, os tracajazinhos,
até o dia em que ele, aos 54 anos, 'fechou o paletó'. Uma nota publicada no
obituário do Jornal do Commércio convidava para a "missa
de sétimo dia de Ambrósio Damião Mendes Conrado (Tracajá), natural de São
Felipe do Rio Juruá, hoje Eirunepé". Se não fosse o parêntese
esclarecedor, ninguém saberia quem é que havia "subido o boulevard com os
pés deitados", nem nós, que éramos seus vizinhos, com quintais separados
apenas por uma cerca.
De onde surgiu o nome dele? O pai queria Mâncio.
A mãe, Taumaturgo. A sugestão de chamá-lo Ambrósio Damião foi
do padre Augusto Cabriolé, vigário da igreja de São Francisco, que o batizou.
Era uma homenagem ao cardeal italiano Ambrogio Damiano, que foi
eleito Papa Pio XI no dia do nascimento do Tracajazinho: 6 de fevereiro de
1922. A fumaça branca na chaminé do Vaticano anunciou ao mesmo tempo a
emergência de dois Ambrósio carecas: um novo papa, em Roma, e uma cabeça de
ovo, em Eirunepé. Tracajás já nascem tracajás, assim como papas já nascem
papas.
Leituras infames
Apelido e nome vieram, portanto, do berço. A
infância dele, porém, foi mais de Tracajá do que de Ambrósio, com total
liberdade, vagabundando por igarapés, lagos e ilhas, pescando, nadando,
remando, coletando ovos de tartaruga nas praias do Juruá e até punhetando no
Aquariquaral onde as meninas iam tomar banho, nuazinhas.
Assumiu o espírito de Ambrósio quando aprendeu a
noção de pecado, ao fazer a primeira comunhão, em maio, durante o Arraial de
Nossa Senhora de Fátima. O vigário da Congregação do Espírito Santo traduziu,
em linguagem popular, a Encíclica Divini Illius Magistri do
Pio XI, que trata da Educação Cristã da Juventude. Foi ai que Ambrogio,
lá de Roma, começou a fazer a cabeça do Ambrósio, no Juruá.
A encíclica que norteou a vida do Tracajá reconhece
a "inclinação dos jovens para o mal". Diz que o adolescente é
"mole como a cera para aderir ao vício". Combate "as más
conversas que corrompem os bons costumes". Censura "os perigos morais
traiçoeiramente insinuados nos livros". Ataca "o teatro, o cinema, os
espetáculos modernos e as leituras infames que incentivam as depravações
juvenis e as más paixões". Exalta a obediência cega às autoridades -
"admoestais os povos para que obedeçam aos reis" - e
glorifica a pureza e a castidade.
A carta de Pio XI, usada na educação de Tracajá,
recomenda que, ao aconselhar um filho sobre o pecado para "inocular nele a
virtude da castidade", o pai não deve entrar em detalhes "em matéria
tão lúbrica", porque o conhecimento minucioso da promiscuidade "em
vez de extinguir o fogo, pode despertar a hidra infernal". Ou seja, pode
estimular o jovem a fazer as sacanagens que se condena. Dá o exemplo de Alípio,
depravado aluno de Santo Agostinho. Critica a escola laica ou neutra e defende
a escola católica, onde meninas devem estar separadas de meninos.
Foi assim que foi educado o jovem Ambrósio Damião,
vulgo Tracajá, sem leituras, defendendo-se do vício, da promiscuidade e das más
companhias. Durante a guerra, em 1942, migrou para Manaus e já veio direto
morar no Bairro dos Tocos, hoje Aparecida. Conheceu uma mulher, de quem se
separou, depois de ter com ela vários filhos, um deles, o mais velho, o Paçoca foi
também batizado, para manter a tradição, como Eugênio Pacelli, nome do Papa Pio
XII, criador do Banco do Vaticano. Dois papas na mesma família é dose. Depois
dos dois, nem mais um Pio?
Viagra da floresta
Na década de 1950, quando ele era nosso vizinho,
saía todo dia cedinho para trabalhar no porto, lá no Ródo, onde exercia o cargo
de conferente, encarregado de identificar e conferir as
mercadorias transportadas por barcos e navios. Nessa época, por estar separado
da mulher, não podia comungar. Enrabichou-se por uma caboquinha de Tefé, que
dava ponto na Rua Itamaracá. Para cumprir seus deveres extraconjugais, comia
diariamente, em jejum, uma cuia dearabu, uma espécie de "viagra da
floresta" feita com gemada de ovos crus de tracajá misturada com farinha.
- É pecado comer arabu - lhe assegurou o padre
Frederico, chefe do Ambulatório da Paróquia de Aparecida. O velho Tracajá
brochou e ficou meio biruta, perturbado do juízo. Diariamente, por volta das
5h30 da madrugada, depois de dar milho pras galinhas, o nosso vizinho com nome
de papa e apelido de quelônio, só de cueca, com uma toalha enrolada no pescoço,
caminhava para o banheiro no fundo do quintal, num passo cadenciado, cantando
baixinho um samba tocado em todas as emissoras de rádio nos anos 1950:
- "Deu uma hora, deu duas horas...".
Ia aumentando o tom da voz gradualmente, enquanto
atravessava o quintal, passo a passo, até chegar ao banheiro. Atingia o ponto
culminante no momento em que derramava a primeira cuia com água do camburão
sobre sua careca, quando então se esgoelava:
- "ELA ABALÔ-Ô-Ô-Ô, MEU SISTEMA
NERVOSO".
Ninguém jamais saberá quem era "ela": se
a jovem de Tefé ou a educação que recebeu. De qualquer forma, com o sistema
nervoso abalado, carregando toneladas de culpas sobre os ombros, Tracajá passou
a beber doses e mais doses de cocal. Vivia cheio da troaca, acreditando que
seria consumido pelo fogo do inferno, porque segundo os papas, "fora da
Igreja não há salvação". Teve ainda um último filho, o Neguinho, batizado
com o nome de Ângelo José, em homenagem ao Papa João XXIII. Depois da abertura
do Concílio Vaticano II, trocou o disco e passou a cantar, no banheiro, a Marcha
da Penicilina, então sucesso na voz de Linda Batista:
- Ai, penicilina cura até defunto / ai, petróleo
bruto faz nascer cabelo / mas ainda está pra nascer o doutor / que cure a dor
de cotovelo ai ai ai.
Morreu em 1976 de cirrose hepática, sem haver
conhecido seu bisneto, o Paçoquinha, nascido há quatro anos e que pode ter sido
batizado - mas isso não asseguro - como José Ratzinger. Foi dessa forma que os
moradores da viela bostarum foram condenados a conviver com os
papas que se intrujaram em suas vidas e se apropriaram de suas almas.
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