Escrito por Venâncio de Oliveira
1ª Hipótese: o projeto democrático-popular foi o que gerou o Pacto de Classes e o Neodesenvolvimentismo
As greves, os despejos forçados, a resistência indígena e as lutas urbanas contra o aumento da passagem demonstram brechas no Pacto de Classes construído nos últimos anos pelo PT e partidos aliados. Bem como as constantes quedas de ministros, principalmente o dos Esportes, demonstram que o pólo patrimonialista exige uma fatia muito grande do bolo, seja PMDB ou PCdoB: a corrupção ultrapassa os corredores do planalto e vira sensação. Reagrupamento da esquerda anticapitalista? O que devemos fazer em relação aos pequenos deslocamentos de conjuntura política? Quais os cenários efetivos?
É necessário começar com uma posição: o neodesenvolvimentismo dos quase 10 anos de governo do PT deve ser combatido. Para isto é necessário fazer um balanço do que levou à sua configuração. Não aprofundaremos toda a história que resultou no governo atual. Porém, algumas análises e sínteses podem ser desenvolvidas. Para tanto, publicamos uma série de artigos. Neste primeiro, queremos desenvolver a primeira hipótese, a respeito da relação de neodesenvolvimentismo e projeto democrático-popular, qual seja, o governo atual foi gestado no democrático-popular.
Um Partido anti-burguês e o protagonismo das forças populares
Não se pode afirmar que a estratégia do governo atual é democrática e popular. Porém, herdou a sua base social, foi uma conseqüência dialética e histórica de sua efetiva realização. Não se poderia deduzir isto pelo pensamento, sim pela história e contexto da luta de classes no Brasil.
O projeto democrático-popular propunha medidas que combatessem o latifúndio, o imperialismo, dentre outras, um programa que teria como protagonista as forças populares, expresso nos movimentos sociais e no partido anti-burguês. Disto se elaborou a fórmula clássica da pinça: um pé na institucionalidade e outro no movimento social. Porém, não é exatamente ela que deve ser o principal objeto de crítica, mas a forma como se viabilizou (1).
No concreto da política, houve a união do setor sindicalista de Lula (metalúrgicos do ABC) com a tradição stalinista de José Dirceu. Além, é claro, da base social da igreja católica. Deste tripé, podemos acrescentar uma retranca de formação política de setores trotskistas, que tiveram considerável influência – menosprezada muitas vezes.
Dos primeiros dois setores podemos caracterizar um extremo pragmatismo. O sindicalismo de resultados de Lula e a linha que dialogava com o programa do Partidão (PCB de Prestes). Um novo setor, profundamente enraizado no operário fabril do ABC, empolgado pela linha americana de fazer movimento, se juntava com o stalinismo-burocratismo de figuras como José Dirceu (2). Este setor utilizou-se do democrático-popular para fortalecer uma linha institucional: que buscava resolver as questões democráticas e populares pela política da gestão do capitalismo.
Aqui, o setor da igreja, mais massivo que o stalinista, era dirigido pelo lulismo, figura carismática que sempre fez a mediação entre o setor burocrata e a base social ampla, da igreja e dos sindicalistas. As CEBs (comunidades eclesiais de base) organizavam uma base que está longe do pragmatismo, mas também se furtaram de enfrentar o núcleo duro da direção (3). Também, setores trotskistas, com uma teoria política mais encorpada, fizeram caldo com a direção majoritária, principalmente na dissolução de parte do setor lambertista (O Trabalho), de Palocci e Faivre.
Prefeituras e democrático-popular
Os anos 1980 giravam o pêndulo mais para a linha de combate ao capital que para a conciliação, porém, esta já fazia parte da política do PT à época. No governo Erundina, ocorreram os conflitos mais evidentes da briga do pêndulo entre gestão e combate no campo democrático-popular. Podemos citar o exemplo do programa Tarifa Zero, uma pauta de conflito, numa gestão democrático-popular. Havia um delineamento claro para sua implantação, porém, a responsabilidade com o capital retirou-a de pauta (4).
Foi nos anos 1990, quando as derrotas se avolumaram, que a linha de gestão se consolidou. Configurou-se a política do mínimo impacto com muitas concessões: façamos o social junto com o capitalisticamente correto (manter “responsabilidade fiscal” junto com políticas compensatórias). As prefeituras petistas, como a de Palocci em Ribeirão Preto e de Cheida em Londrina, privatizaram os serviços públicos.
A gestão Marta Suplicy evidenciou também estas contradições, com a política habitacional que buscava dialogar com os movimentos sociais e também conversava com ONGs organizadas por empresários, a criação de instrumentos urbanos que financeirizam o território, a partir da emissão de títulos pelo poder público (denominados CEPACs), buscando galgar-se na demanda do mercado imobiliário (5). E ainda continuou a fazer estradas e rodovias em detrimento de investimentos em transporte público.
Mas foi o tucanato que ajudou na transformação do democrático-popular em neodesenvolvimentismo. Renovou a Razão Dual (6) que estava implícita no democrático-popular e evidente na esquerda antes do golpe. No governo de FHC, renovaram-se as precariedades, configurando um cenário mais duro para a classe trabalhadora.
Portanto, aqui a subjetividade de um país dual se fortalece. Nesta visão, o Moderno e o Atraso são vistos de forma dicotômica. O Estado é o elemento-chave para superar o atraso, apoiando e desenvolvendo o elemento moderno.
As privatizações, o latifúndio, as políticas de desregulação financeira e do mercado de trabalho alimentaram o Brasil atrasado. Os flanelinhas, os trabalhadores da reciclagem e os cortadores de cana foram objeto do imaginário social. O subproletariado estava recomposto (7). Onde estava o Estado Protetor?
Todos contra o neoliberalismo
À falsa dicotomia entre Moderno e Atraso se junta aquela entre Mercado e Estado. Portanto, era necessário resgatar o Estado. Buscar uma recomposição dos empregos com criação de mercado de massas. Aqui, o desenvolvimentismo e a estratégia da Revolução Burguesa se renovam. Nesta leitura, alguns setores empresariais começavam a fazer parte do protagonismo das forças progressistas. Poderiam ser feitas alianças e pactos com setores da base social do governo PSDB-PFL que estivessem em confrontação com a política de juros altos.
Decorre daí a síntese de uma experiência do fazer-se da classe. O acúmulo de lutas da esquerda baseou-se numa perspectiva de combate ao Brasil Dual. Era preciso combater o latifúndio e o autoritarismo, conseguir a democratização do país. O protagonismo seria do povo e das forças populares, mediado por um partido anti-burguês (o PT).
Findos os anos 1990, o neoliberalismo se fez o maior inimigo e as privatizações e o sucateamento dos serviços públicos geraram uma subjetividade que reivindicava “Estado contra Mercado”. A queda das condições da classe trabalhadora renovara o subproletariado. O rendimento médio do salário caindo, reestruturação produtiva e desemprego criaram um cenário, por um lado, de individualismo (eu busco meu próprio caminho de sobrevivência) e, por outro, a necessidade da volta do Estado Protetor, de demanda de uma mudança vinda de cima.
Em síntese, candidatura de 2002: o empresário do Partido Liberal, José Alencar, como vice de Lula, e Cutrale, maior empresário do setor de cítricos, como uns dos principais apoiadores da campanha. Além da famigerada Carta ao Povo Brasileiro, que em síntese priorizava os contratos, menos o combate ao capital.
O PT em sua intervenção no Legislativo e nos movimentos sociais ainda fazia coro com as propostas democrático-populares. Mas este anseio, quando chegava às prefeituras ou à sua realização, se transformava numa resolução de gestão, em que a governabilidade era prioritária ante a realidade efetiva de uma bandeira democrática (que, se levada a cabo, poderia confrontar com o modelo de capitalismo brasileiro).
Mesmo o Programa Fome Zero, política compensatória desde o início, que, na ilusão de setores da igreja, poderia tornar-se emancipação da pobreza, se fez um simples programa burocrático, intermediado por assistentes sociais, menos por militantes que buscassem construir um contra-poder por meio da oferta de alimentos de renda mínima.
O democrático-popular não é neodesenvolvimentismo. Existe uma relação contraditória entre eles. O PT é a máxima representação deste conflito. O governo é uma coisa e o partido é outra, vão reivindicar muitos militantes do PT, mas a retórica da base alimenta seu contrário no alto. Qual é a efetiva diferença e a relação entre os dois? É necessário caracterizar melhor o neodesenvolvimentismo para que possamos ter uma aproximação desta pergunta.
Referências teóricas:
(1) A gestão desta estratégia pode ser lida nos programas de governo, principalmente o de 1989, encontrados no site da Perseu Abramo: http://www.fpabramo.org.br/. Ler também, SADER, Emir (org.): E agora, PT? - Caráter e Identidade. São Paulo: Brasiliense, 1986.
(2) Este é o argumento de Rudá Ricci (Lulismo: Da Era dos Movimentos Sociais à Ascensão da Nova Classe Média Brasileira. Brasília: Editora Contraponto, 2010.). Contudo, não concordamos com o autor, em sua análise da relação entre a prática burocrática do PT e a teoria de Lênin.
(3) Ibid Rudá Ricci (2010).
(4) Este é um argumento que foi desenvolvido em conversas com Plínio de Arruda Sampaio, que participou ativamente da tentativa de implantar o Tarifa Zero.
(5) Mariana Fix. São Paulo Cidade Global: Fundamentos Financeiros de uma Miragem. São Paulo: Boitempo Editorial: 2007.
(6) Ver Francisco de Oliveira Crítica à razão dualista/ O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.
(7) Para ler a relação entre lulismo e subproletariado ver André Singer, Raízes Sociais e Ideológicas do Lulismo, Novos Estudos, 85, novembro de 2009.
Venâncio Guerrero é economista e militante do Tribunal Popular da Terra.
Contato: venancio.comuna(0)hotmail.com
Blog do autor: antesdatempestade.wordpress.com
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