domingo, 6 de novembro de 2011

Família Pirroque

Por Ribamar Bessa Freire
Diário do Amazonas, 06/11/2011

Quem foi Pierre Pirroque? Poucos sabem. Nem sequer os seus colegas de trabalho – Braguinha e Euclides, o Bunda-de-Aço – ligavam o nome à pessoa. Se o seu Henrique, que era seu Henrique, chefe dos bedéis no Colégio Estadual do Amazonas, ignorava que tinha um subordinado com esse nome, imagine os outros! Mas eu vos garanto que Pierre Pirroque existiu, trabalhou 30 anos como bedel e, entre um gole e outro, serviu lealmente a Pátria com dedicação, contribuindo na manutenção da ordem. Por isso, sua biografia interessa à posteridade.

Pierre Pirroque. Era assim que o chamávamos, nós, alunos de francês do professor Miguel Duarte. Tratava-se de uma tradução livre, inspirada no nome pelo qual o bedel era conhecido no bairro de Aparecida. Pierre morava na Rua Alexandre Amorim, onde – aí sim – todos só o chamavam pelo seu nome, que era Pedro Piroca.

Nome é uma forma de dizer. Era um desses apelidos, tipo Sarney, que ficam grudados em toda a família por várias gerações como uma maldição. Sua mãe, dona Maria Piroca, teve três filhos a quem legou o insólito sobrenome: Paulo, Pedro e Saulo – Pirocão, Piroca e Piroquinha respectivamente – assim chamados não por razões anatômicas, mas pela ordem de chegada ao mundo. Pedro, o do meio, ficou sem sufixos.

Qual a origem desse nome? Numa pesquisa séria, consultei minhas irmãs. Duas delas responderam. Elisa tirou o loló da seringa: “Tô fora! Não é da minha época”. Porém Gina, que entende do riscado, refrescou minha memória: “Talvez o apelido tenha vindo do cabelo muito curto e do pescoço comprido da dona Maria. Ela vestia sempre roupa branca, usava tênis branco barato, daqueles antigos, que se limpava com alvaiade, mas achinelado atrás, por causa de um calo que nunca sarava. Andava, por isso, caxingando. Naquela época não havia máquina de lavar e ela tirava seu sustento indo de casa em casa, oferecendo seu serviço de lavadeira. Só trabalhava movida à cachaça: “Minha branca, me paga uma ‘esquenta’ ela pedia. Isso é tudo que lembro, nebulosamente. A Glória deve saber mais, pergunta pra ela”.

Ainda não tive tempo de consultar Glória. De qualquer forma, por enquanto, a explicação da Gina faz sentido. A palavra piroca é um empréstimo do nheengatu ao português e significa, entre outras coisas, segundo o Dicionário de Nheengatu de Stradelli: “pelado, depenado, descascado” (pg.608).

Por outro lado, meu sobrinho Pão Molhado, a quem dei uma bolsa de iniciação científica, jura que no Curso de Serviço Social da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) estudou com duas irmãs gêmeas, já formadas – Dodora Piroca e Rosilene Piroca – que seriam bisnetas da Maria Piroca.

Mas de onde surgiu esse interesse na biografia do Pedro Piroca? É que outro dia, no carro, em plena ponte Rio-Niterói, liguei a Rádio Roquete Pinto, e Nora Ney cantava uma música dos anos 50: “Vivo só sem você / Que não posso esquecer / Um momento sequer”.

Foi aí que lembrei o meu primeiro porre aos 16 anos de idade. Era um domingo de 1963. Voltava eu da missa, às 10h, quando ao passar em frente ao bar Sputnik, na Epaminondas com a Mons. Coutinho, vejo lá dentro, solitário, o Pierre Pirroque, que me convida a tomar uma cerveja. Aceitei.

Tomei uma, talvez duas. Tudo bem, não vou mentir, tomei umas três, ouvindo na vitrola do Sputnik a Nora Ney cantar um LP inteirinho com músicas como ‘De cigarro em cigarro’, ‘Dorme, menino grande’, ‘Ninguém me ama, ninguém me quer’, ‘Tu passas pela rua, e a vida continua…’ e outras músicas de fossa.

A voz dela era inconfundível e se tornara ainda mais conhecida, em janeiro de 1963, quando participou de uma intensa campanha política na rádio para derrubar o parlamentarismo então vigente. Tinha um jingle, onde ela cantava: “Eu vou fazer um x no quadrinho ao lado da palavra NÃO. Parlamentarismo NÃO, o povo tem razão, eu vou votar no NÃO, NÃO, NÃO, NÃO, NÃO”.

Enquanto discutíamos política, fofocas do Colégio Estadual e música popular brasileira, ouvindo Nora Ney, Pedro se queixou da tragédia de carregar esse nome Piroca pelo resto da vida. Foi aí que eu comuniquei – ele não sabia – que a turma do Clássico só o conhecia como Pierre Pirroque. Ficou reconhecido com a homenagem: “Em francês, não soa pornográfico”, disse, já bêbado.

Embora não existam mais funcionários denominados de bedel, Pedro Pirroque foi um exemplo de dignidade para todos os bedéis do Brasil. Cumpriu seu dever, tirante os fins de semana quando tomava umas canas, afinal ninguém é de ferro.

Quando cheguei em casa trocando as pernas, minha mãe me deu uma surra homérica e ainda cobrou do meu pai: “Olha o exemplo que dás ao teu filho. Essa história do meu primeiro porre, como todas as demais, tinha que acabar na cachaça do Barbosa”.

P.S. Pierre Pirroque não é mencionado, mas o cenário onde ele atuou está finamente desenhado no livro ‘Gymnasianos’, de Osiris Silva, leitura imperdível para quem viveu aquela época.

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