04/11/2012 - Diário do Amazonas
Essa doença
eu não pego - pensei cá com os meus anárquicos botões. Ledo Ivo engano - diria
o Cony. Ninguém está imune. Ninguém ! Nem o Papa ! Comprovei na própria pele
quando, nesta semana, contraí o vírus conhecido cientificamente como hybris,
que tem a capacidade de se multiplicar em poucas horas. Fui salvo, é incrível,
não por um médico, mas pelo motorista de um ônibus. Passo a vos relatar minha
experiência, com a esperança de assim ajudar eventuais leitores a tomarem as
precauções que o caso requer.
Deixem-me, antes,
vos apresentar o tal vírus descoberto pelo neurologista inglês, David Owen,
formado em medicina pela Universidade de Cambridge, que se inspirou, para
denominá-lo, em um personagem da mitologia grega, Hybris, filho
deDyssebia (Impiedade). A doença ficou conhecida como "Síndrome
de Hybris" em homenagem a esse filho da mãe que, quando conquistou a
glória, ficou ébrio de poder e passou a se comportar como um deus. Não havia
nome mais apropriado.
Essa doença
ataca, preferencialmente, políticos senis - nos ensina o neurologista, que sabe
do que fala, porque além de médico, foi ministro de Relações Exteriores da
Inglaterra e fez parte do grupo de risco. Mas tanto os jovens, como os
pé-rapados, eventualmente, não estão imunes a ela. Vários casos são
apresentados no livro "In Sickness and in Power" (Na
Doença e no Poder), escrito pelo doutor Owen, cujo subtítulo é: "Illnesses
in Heads of Government during the Last 100 Years(Doenças de chefes de
governo nos últimos cem anos).
Não vou mentir
pra ti, leitor (a). Ainda não li o livro, mas entrevistei quem o leu: o doutor
Google, que sabe tudo. O livro - dizem os que o leram - descreve as
diversas fases da doença. Ela começa quando um político qualquer, sadio e
normal como tu e eu, concorre à eleição e ganha. Ele tem, quase sempre, dúvidas
sobre sua capacidade para exercer o cargo, mas logo é convencido do contrário
por uma legião de puxa-sacos, que começam a incensá-lo.
Os bajuladores
não podem ver candidato vitorioso, que partem pra cima, esvoaçando como urubus
em torno da carniça. Os caras tem um faro devastador. Vejam as primeiras
entrevistas concedidas pelos novos prefeitos, que aparecem sempre ladeados por
vorazes gengivas em sorrisos untuosos e servis. Esse é o caldo de cultivo para
a doença mostrar sua força.
O poder da doença
Essa é a primeira
fase. Diante dos aduladores que surgem de tudo que é buraco com uma habilidade
única de babar ovo, o paciente vai perdendo, aos poucos, a capacidade de ouvir
críticas e opiniões contrárias. Fica convencido de que é um
"escolhido", um predestinado para exercer o poder. É quando a doença
salta para outro patamar.
Os sintomas são
claros nesta segunda fase. Embriagado pelo poder, a vítima começa a sofrer de
"transtorno delirante" e entra num estado agudo de egolatria, própria
de um iluminado. Convicto de que ele é o "o" do borogodó, adquire a
certeza de que é infalível, insubstituível, e faz planos estratégicos para os
próximos vinte anos. Dessa forma, se isola da sociedade e entra num processo
psicopatológico chamado de "desenvolvimento paranoide".
Passa, então, a
esbanjar arrogância e prepotência. Manja o ex-governador Eduardo Braga (PMDB,
vixe, vixe) antes e durante as recentes eleições municipais? Pois é. Ele
acreditou na cambada de puxa-sacos que o cerca e achou que era dono dos votos
dos eleitores. Quebrou a cara. A derrota leva a doença a entrar na sua terceira
fase: um quadro depressivo, cujas características podem ser definidas pelo meu
compadre, o picica-analista Rogélio Casado.
No entanto,
contraditoriamente, essa é a única possibilidade que o paciente tem para se
curar: a rotatividade no poder, que funciona como uma espécie de vacina,
trazendo o dito cujo para o mundo real. A derrota é anunciadora de uma mensagem
implícita que diz: "Lembra-te, homem, que és pó e em pós te hás de tornar".
O Dia de Finados está aí mesmo para não nos deixar esquecer.
Owen, o
neurologista, analisou com propriedade a interrelação entre a política e a
medicina, dois campos que ele conhece muito bem. Mas a "Síndrome
de Hybris", por ele descoberta, é mais uma denominação sociológica do
que propriamente médica, embora produza graves consequências para a saúde.
O psiquiatra
Manuel Franco assegura que essa "doença do poder", marcada por
megalomania e por paranoia acentuada, é uma desordem da personalidade capaz de
produzir transformações físicas, psicológicas, atitudinais e anímicas em suas
vítimas que, antes da doença, eram pessoas equilibradas e respeitáveis.
- O poder
envenena e intoxica tanto que acaba perturbando o juízo de quem o exercita -
diz o psicanalista. O cara fica mesmo lelé da cuca, o que baixa as defesas,
abrindo espaço para uma série de outras doenças.
Vários exemplos
são mencionados no livro, discutindo o papel político e a saúde de 30 chefes de
governos: o ex-presidente americano Theodore Roosevelt, além de depressivo,
sofria de asma; Ariel Sharon, o primeiro ministro israelita, além de obeso
mórbido, tinha graves problemas cardíacos; Woodrow Wilson sofria de hipertensão
e esclerose. A eterna caganeira de Hitler, o alzheimer de Ronald Reagan e o
câncer do Xá da Pérsia eram todas doenças alimentadas pela "síndrome de
Hybris".
Nem o papa Bento
XVI escapou de contrair a doença do poder, quando em 1977 foi sagrado bispo de
Munique e, logo depois, nomeado prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé.
Cercado de puxa-sacos, Joseph Ratzinger ficou excessivamente autoconfiante, prepotente
e arrogante. Foi nessa época que ele deu um créu no teólogo Leonardo Boff,
obrigando-o a ficar calado, porque não suportava ser contrariado.
Mas enquanto os
políticos podem ser curados quando derrotados pelo voto, no caso do Papa a
doença não tem cura, já que seu cargo é vitalício. Ele está condenado a morrer
embriagado de poder, sentindo-se o dono da verdade, o rei da coca-cola, o
infalível, o insubstituível.
Filosofia barata
Eis o que eu
queria dizer, correndo o risco de produzir filosofia barata. Esse virus que
ataca os politicos e o papa pode causar também devastações em qualquer
pé-rapado. É o meu caso. Completei 65 anos sem nunca haver dado uma carteirada
na minha vida, não por virtude própria, mas por falta de carteira. De repente,
a situação mudou e senti, de perto, a sensação de poder que nessa semana me
atingiu como uma bala no peito.
É que não
aguentando mais dirigir o carro diariamente para atravessar a ponte
Rio-Niterói, decidi andar de ônibus. Aderi ao RioCard, um sistema de bilhetagem
eletrônica utilizado no Estado do Rio de Janeiro, gerenciado e distribuído pela
Federação das Empresas de Transportes de Passageiros (Fetranspor).Ganhei uma
carteira.
A troca do carro
pelo ônibus, que parecia ser perda de poder, se revelou o contrário. A carteira
que a RioCard me forneceu é a de Senior, ou seja, passageiro
com mais de 65 anos, que anda de graça. A primeira vez que a usei foi num
ônibus da linha 45 Cubango-Centro, em Niterói, e na volta a linha 49,
Fonseca-Centro. Nos dois casos, enquanto os passageiros pagavam sua passagem, o
papai-aqui, numa demonstração insofismável de poder, deu uma carteirada.
Esfreguei o RioCard Senior, com minha foto, no focinho do motorista, que abriu
a roleta para minha entrada triunfal.
Os puxa-saco logo
surgiram. Em reuniões familiares, minhas primas Dodora e Rosilene juraram que
eu não era um mequetrefe qualquer, como os demais, mas alguém que tinha
privilégios devido aos próprios méritos. Confesso que me senti um
"ungido", entendi o que o Zé Dirceu pode ter sentido quando era
ministro-chefe da Casa Civil. Olhei a plebe ignara, de cima para baixo. Em
outras palavras, entendi aquela jornalista casada com pesquisador de renome internacional
que incorporou o sobrenome dele ao seu para inveja das colegas.
Os pessimistas
podem obtemperar que não é vantagem alguma andar em ônibus xexelentos, sujos e
nojentos, com os bancos encardidos, cujas carrocerias são montadas em chassis
de caminhão e que nas horas de pico estão sempre lotados. Se o RioCard Senior
valesse para avião, vá lá - dizem eles. O que essas cavalgaduras não entendem é
que para quem já está inoculado pelo vírus hybris, o que vale
é o privilégio da gratuidade, sem limite ao número de viagens, frente a
obrigação dos demais, que pagam para enfrentar os mesmos problemas. Poder é
poder.
Agora, posso
entender a euforia do senador Eduardo Braga durante as eleições municipais. Mas
aí, querendo ir para a Universidade onde trabalho, no Rio, esperei o 703 Santa
Rosa-Vila Isabel do Expresso Garcia. Fiz sinal para o primeiro deles, que
quando viu minha cabeça branca, não parou. O segundo, também não. O terceiro,
nada. No espaço de uma hora, nenhum parou, porque evitam levar portadores do Cartão
Senior.
Senti o sabor da
derrota. Meus privilégios foram por água abaixo. Motoristas me trouxeram à
realidade e me salvaram da doença do poder. Foi aí que me senti como o senador
Eduardo Braga depois da eleição: derrotado. Estou curado. Quanto ao senador
Eduardo Braga, não sei não. Talvez precise de uma dose mais forte da vacina. As
eleições de 2014 vem aí.
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