José Ribamar Bessa Freire
11/11/2012 - Diário do
Amazonas
Os fariseus
da língua querem calar definitivamente a cheirosa Dorsemira, uma bela caboca de
Urucará, no Amazonas, cujo corpo rescendia a priprioca e capim-limão, na época
em que namorou o poeta Thiago de Mello a quem não teve vergonha de mostrar a
"perseguida". Dorsemira está proibida de dizer que ama ou que amou o
poeta por um decreto publicado, nesta sexta-feira, no jornal O Globo, assinado
pelos críticos do Exame Nacional de Ensino Médio (ENEM).
Esses
críticos, como se tivessem acabado de descobrir a pólvora, anunciaram,
escandalizados, na primeira página do jornal da família Marinho, que houve
"DOUTRINAÇÃO NA PROVA DO ENEM". O tom é de denúncia, de
quem revela que existe algo podre no reino da Dinamarca. Ah, mas O
Globo não se intimida e, intrépido, se insurge contra a lavagem
cerebral de nossos jovens, exibindo as "evidências do crime" já na
manchete da matéria que ocupa página inteira:"ENEM FAZ A MESMA PERGUNTA
OITO VEZES" (p.22).
O que é mesmo
que o Enem tem a ver com a Dorsemira? Quando namorou o Thiago, ela
costumava ir para as aulas de datilografia na Escola Underwood usando um
vestido de jersey sobre uma anágua branca de algodão, blusa godê e sutiã Vivien
de tricoline, que era "uma pausa no olhar", como cantava o jingle na
Rádio Baré. Mas deixemos, por enquanto, a Dorsemira de sobreaviso, em stand
by. Te proponho um pacto, leitor (a): vamos ver, antes, o que aconteceu com
o Enem. Prometo o retorno dela, mais adiante, já como datilógrafa profissional
da firma J.G. Araújo.
Os
fariseus da língua
Depois da
divulgação do gabarito do Enem, o jornalista Lauro Neto "descobriu"
oito questões "condenáveis" na prova de Linguagens e Códigos.
Denunciou para Deus e o mundo que tais questões promoviam, de forma
subreptícia, os erros de português, pois "mostram uma preocupação
excessiva em defender o uso oral e coloquial da língua em detrimento da norma
culta". Quem confirma isso é a professora Regina Carvalho, a quem o
jornalista recorre como autoridade, justificando que ela "dá aulas de
Língua Portuguesa no Colégio Santo Inácio":
- "Há
uma indução subliminar" - ela diz. "Acho problemático, porque são
muitas questões sobre o mesmo assunto. Do ponto de vista pedagógico, não se
deve cobrar um mesmo assunto com tanta insistência. Do ponto de vista
gramatical, nada é pedido praticamente. É uma contradição, porque na hora de
fazer a redação os professores cobram a norma culta dos estudantes e se agarram
a ela para justificar a correção".
Carvalho vê
contradição naquilo que é complementação. A professora do Santo Inácio critica
até mesmo o uso de textos de escritores consagrados como Manoel de Barros e
Rubem Alves, quando eles empregam "palavras e expressões inadequadas na
norma culta". Para ela, "a lógica de legitimar o uso coloquial por
meio de autores consagrados é similar à defesa do polêmico livro 'Por
uma vida melhor', distribuído pelo MEC no Programa Nacional do Livro
Didático, que contém frases com construções como nós pega o peixe".
Os ataques ao
Enem insistem que as perguntas da prova são contraditórias, pois de um lado,
"mostram a fala coloquial na voz de poetas e escritores consagrados, quase
como que um modelo" e, de outro, desprezam "livros maravilhosos didáticos
que não são aceitos devido a uma política intencional do MEC". Acham que
aí tem truta.
Trata-se de
um recado para todas as dorsemiras do Brasil. Se escritores consagrados são
censurados por usarem o português coloquial, imaginem a Dorsemira, coitada! Meu
colega na UERJ, Claudio Cezar Henriques, com quem simpatizo, mas de quem
discordo, também foi entrevistado, endossando o coro dos críticos. Ele lamenta
"o destaque dado a textos que mostram usos populares ou regionais de nossa
língua", o que considera "demagogia linguística" e pergunta:
- "As
universidades querem alunos que tenham capacidade para ler e escrever textos
acadêmicos e científicos ou querem alunos que saibam reconhecer variedades
linguísticas?”.
A pergunta
está mal formulada. Não é uma relação de exclusão: ou isso ou aquilo. Mas de
inclusão: isso e aquilo. A universidade quer que os alunos, além de escreverem
textos acadêmicos, sejam capazes de reconhecer e de respeitar a diversidade
linguística. Por isso, os comandos e enunciados da prova estão escritos na
norma padrão. É por isso que se exige redação e respostas dentro desta norma.
Quanto ao registro coloquial, o exame está apenas apresentando amostras da
diversidade linguística e não exigindo que se transformem em "quase como
que um modelo". É simples assim.
A
"perseguida"
Para
aparentar isenção, o jornalista decidiu fazer um contraponto. Entrevistou por
email o linguista Marcos Bagno, autor de "Preconceito
linguístico", citado na prova do Enem, a quem perguntou "se a
sociolinguística não estaria se sobrepondo à gramática". O linguista,
já escaldado com as constantes edições que deturpam sua fala, respondeu:
- "Sua
pergunta não faz o menor sentido. Não existe essa oposição que você insinua
entre "sociolinguística" e "gramática". Também não existe
antonímia entre "uso oral e informal" e "norma culta": uma
manifestação culta, falada ou escrita, pode ser perfeitamente informal. Como
sempre, vocês, jornalistas, sobretudo da mídia conservadora como O GLOBO,
procuram apenas justificativas para perpetuar seus pontos de vista reacionários
sobre tudo, incluindo o ensino. Quando vão tratar de linguagem, a falta de
preparo se revela de maneira patente".
O
Globo reproduziu ainda uma postagem de Marcos Bagno no
facebook, onde ele, já sem paciência, comenta que "uma pergunta tão
imbecil só merece uma resposta irônica". Nessa luta pelo reconhecimento da
diversidade linguística afloram paixões, mas também questões ideológicas e
econômicas, com componentes teóricos que envolvem o próprio conceito de língua
e de norma com o qual se opera.
A língua,
entre outras coisas, é um bem de consumo, um negócio editorial com investimento
de muita grana em dicionários, gramáticas, livros didáticos, quase todos
escritos com a perspectiva do policiamento da fala. Os livros didáticos
existentes no mercado sempre cagaram regras e policiaram a linguagem, tentando
engessar a língua.
Agora,
felizmente, o MEC, dialogando com as ciências da linguagem, aponta para
desfazer esse erro secular, afirmando que as pessoas frequentam diferentes
registros, todos eles respeitáveis, e não apenas a norma denominada
"culta". Questiona-se o uso do próprio termo "norma culta"
para designar a "norma padrão", como uma impropriedade, na medida em
que o falar popular também expressa cultura. Essa postura do MEC, que foi
chamada de "doutrinação" pelos fariseus da língua, fere interesses
comerciais.
E é aqui que
a Dorsemira volta ao cenário para mostrar que não tem vergonha de exibir a
"perseguida". A sua forma de falar, marcada pelo regionalismo, pelo
popular, pelo coloquial, é a verdadeira "perseguida", caçada a pau,
como se fosse um rato de esgoto. O poeta Carlos Drummond de Andrade já havia
chamado a atenção:
- "O
purista procura cercear a língua toda vez que ela tem um acesso de vitalidade.
A língua portuguesa devia dispensar seus defensores pedantes e defender-se por
si mesma".
Há muitos
anos, quando retornava da aula noturna do Ginásio, em Manaus, o poeta Thiago de
Mello costumava trocar uns amassos - na época se falava "acochos" -
com a caboca Dorsemira, num desvão da rua Japurá. Foi depois de uma dessas
sessões, que Dorsemira exibiu sua fala "perseguida", dizendo:
- Eu acho que
nós gosta é já demais.
Thiago nunca
mais esqueceu da frase, tão presente como o cheiro da caboca Dorsemira, que se
abastecia anualmente de ervas aromáticas para seus banhos-de-cheiro no
"Buraco Cheiroso", lá na travessa Frutuoso Guimarães, em Belém,
quando ia para o Ciro de Nazaré, em outubro.
Da mesma
forma que alternava o uso do sutiã Vivien com o do corpete, que além do peito
cobria até a cintura, a cheirosa Dorsemira durante o dia datilografava a
correspondência comercial da firma J.G. usando a norma padrão do português,
mas, de noite, ali, no escurinho, o que valia mesmo era seu português coloquial
de Urucará. Diante da ordem dos perseguidores da língua: "Cala a boca,
caboca", ela deu a resposta que surge nas brincadeiras de criança em toda
a Amazônia:
- Cala a boca
já morreu, quem manda na minha boca sou!
P.S. -
Dorsemira não é personagem de ficção. Sua história já foi contada por Thiago de
Mello (http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=918) O que fiz foi apenas
colocar um cheirinho de pripioca nela.
Não digo que é genial, porque, como disse Quintana: se te disseres que estás escrevendo muito bem, desconfia: um crime perfeito não deixa vestígios!
ResponderExcluirO que vem ocorrendo no Brasil é a tentativa de se oficializar o fracasso que já vem de séculos, pois como todo brasileiro sabe, a educação nunca foi prioridade de nenhum governo, o aluno da rede pública com 10 anos de idade, não sabe se quer construir um texto com 15 linhas, esse mesmo aluno no final do ensino médio é um analfabeto funcional. essa é a realidade do Brasil. Agora vem esses Doutores em Pedagogia falando "asneiras" falar e escrever errado se tornou uma cultura da diversidade linguística. Diversidade linguística é uma coisa totalmente diferente. na verdade a maioria desses "Doutores" de Pedagogia e do MEC, a maioria nunca entraram em uma sala de aula, por que sempre foram covardes e se escondem atrás de inúteis diplomas....
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