José Ribamar Bessa Freire
18/11/2012 - Diário do Amazonas
Contra o
esquecimento global, proponho um recurso local: a criação de um livro no qual
nós, que aqui ficamos, iremos anotando o nome de cada amigo que embarque na
canoa das almas, na viagem sem volta para o mundo do invisível, até chegar a
nossa vez de partir. Dessa forma, eles não serão esquecidos. Pelo menos, era
assim que funcionava com gente viva, de carne e osso, que era despachada em
canoas de Belém do Pará para os sertões da Amazônia, nos séculos XVII e XVIII,
em busca de escravos indígenas e de cacau. Havia oLivro de Registro das
Canoas que documentava tudo.
Cada canoa que
saía ou entrava em Belém era inscrita num caderno grosso, com uma relação
daquilo que transportava. Sabemos disso porque um desses manuscritos, um
"tijolo" com duzentas folhas rubricadas, foi encontrado no Arquivo
Público do Pará pelo antropólogo Márcio Meira, que organizou, em 1993, sua
transcrição, digitação e publicação. Esse livro contém "termos", ou
seja, declarações que tinham valor legal, feitas por alguém, trazendo
informações valiosas sobre a história do comércio de escravos indígenas, com a
descrição física dos índios capturados e as nações às quais pertenciam.
Entre os diversos
tipos de "termos", um deles chama a atenção: o "Termo de
Lembrança", um documento que registrava, por escrito, tudo aquilo que não
se queria esquecer. Um deles, de 1741, lembra a existência de três escravos "que
vieram do sertão sem se saber quem fosse seu dono ao certo", entre eles
uma índia de 15 anos, cheia de cicatrizes por todo o corpo, até na raiz do
cabelo, aprisionada no Rio Negro e arrastada para Belém. Os três foram
encaminhados para a Aldeia Mortiguara, administrada pelos jesuítas, onde
"ficarão em depósito até aparecer o dono" (Documento 48, folha 34).
Termo de Lembrança
Ora, se o Livro
das Canoas deu certo para lembrar os índios que tiveram seus corpos
escravizados, por que não funcionaria com índios cujos espíritos se libertaram?
No Livro que acabo de criar, registro, então, o "Termo de
Lembrança da última viagem do tikuna Constantino Füpeatücü" que
embarcou há um mês, para que a gente dele não esqueça. Aqui vai a transcrição
seguindo o modelo do século XVII.
Aos 19 dias do
mês de outubro do ano de nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de 2012, lanço
eu, neste Livro de Registro, o Termo de Lembrança do embarque na Canoa das
Almas de Constantino Ramos Lopes, 46 anos, filho de Francisco Fernandes Lopes e
Alice Ramos, nascido no dia 21 de janeiro de 1966, na Ilha de São Jorge,
município de Benjamin Constant (AM). Ele foi batizado com esse nome de
imperador romano, mas seu nome mesmo, de verdade, era Füpeatücü, que em tikuna
significa "asa erguida".
Membro do clã
Mutum, Constantino Füpeatücü, nesse dia, trouxe para a Canoa das Almas, a sua
história de vida na Aldeia de São Leopoldo, onde morou muito tempo e de cuja
escola foi professor. Seu espírito carregava uma bagagem valiosa: cursos,
oficinas, palestras e conferências que ministrou em várias cidades do Brasil e
no exterior, livros que produziu, exposições que organizou no Peru, na Colômbia
e em vários países da Europa e, sobretudo, as coleções etnográficas e o museu
que ajudou a criar, bem como as lutas que travou em defesa da cultura ticuna.
Este Termo de
Lembrança registra a primeira mala que entrou na Canoa das Almas trazendo os
conhecimentos interculturais adquiridos por Constantino, tanto os tradicionais
que lhe foram transmitidos oralmente pelos velhos e sábios ticuna, entre eles
Pedro Inácio, como os novos conhecimentos aprendidos no Curso de Licenciatura
para Professores Indígenas do Alto Solimões, da Universidade do Estado do
Amazonas (UEA), concluído em dezembro de 2011. Esses conhecimentos lhe
permitiram atuar como membro do Conselho Estadual de Educação Escolar Indígena
e como coordenador deste setor na Secretaria Municipal de Educação de Benjamin
Constant.
O Livro registra
um paneiro cheio de fichas de avaliação feitas pelos que foram professores de
Constantino ao longo de sua formação (*), entre eles Jussara Gomes Gruber,
coordenadora do Curso de Formação de Professores Indígenas e responsável pela
disciplina de Arte-Educação. Lá está transcrito o que escreveu a doutora
Marília Facó, linguista do Museu Nacional, recordando as aulas na aldeia
Kanimaru, quando Constantino, que concluiu o Curso de 1º grau em 1987, começava
seus estudos.
-
"Constantino era" - escreveu Marília - "um jovem talentoso,
olhos brilhantes e curiosos, características às quais viriam se juntar
demonstrações de coragem e dinamismo, além de uma enorme capacidade de
construção".
A Canoa das Almas
começou a ficar cheia, quando recebeu os diversos livros que Constantino
construiu, coletivamente, desde 1987, como produto dos diversos cursos e oficinas
que fez no Centro de Formação de Professores Ticuna-Torü Nguepataü, na Aldeia
de Filadélfia, entre outros o Livro de Leitura e Caderno de Exercícios na
Língua Ticuna, o Livro das Árvores e três volumes dos Mitos Ticuna da Coleção
Eware.
Sobrava pouco
espaço na Canoa das Almas, quando foi feito o registro dos projetos de arte e
educação desenvolvidos pela Organização Geral dos Professores Ticuna Bilingues
(OGPTB), da qual Constantino foi um dos fundadores e presidente entre 2006 e
2010. Mas a canoa ficou lotada mesmo com as coleções etnográficas do Museu
Maguta - o primeiro museu indígena do Brasil, do qual ele foi curador e
diretor.
Etnomuseologia
O Termo de
Lembranças registra foto do Museu Maguta, instalado em Benjamin Constant (AM),
em uma casa de arquitetura simples, com varandas ao redor, cinco salas de
exposição, uma pequena biblioteca, cercada por um jardim. Lá dentro, as
coleções formadas, em grande parte, com os trabalhos de artistas ticuna:
máscaras rituais, pintura em painéis decorativos de entrecasca, esculturas de
madeira e de coco de palmeira, colares, cestos, redes e bolsas, além de
artefatos, hoje já em desuso, que foram reconstituídos a partir de fotografias
antigas pertencentes a museus etnográficos.
São quase 500
peças, todas registradas, organizadas, documentadas e devidamente fichadas
por Constantino, que foi capacitado para exercer a guarda do acervo e por
sua dinamização. Ele participou da equipe que preparou e montou a primeira
exposição do Museu, aberta ao público em 1991. Tornou-se, na prática, o
primeiro índio museólogo, completando sua formação em visitas a museus
etnográficos em todo o Brasil e em diversos países da Europa: Holanda, França,
Noruega, Itália, Áustria.
Este Termo de
Lembranças registra diversas palestras de Constantino realizadas em eventos em
diferentes cidades brasileiras: em 1995, no I Encontro Nacional do Conselho
Internacional de Museus (ICOM-Brasil), em Petrópolis (RJ), quando o Maguta
recebeu o prêmio de Museu Símbolo do ano e no II Encontro Internacional de
Ecomuseus (Rio-2000), assim como sua participação na organização e montagem da
exposição Arte Ticuna, no Museu de Folclore Edison Carneiro (Rio-1996).
Entraram na Canoa
das almas também os registros das palestras proferidas no exterior: em
Stavanger-Noruega, na Conferencia Mundial de Museus (1995); no Seminário
"La Scuola della Foresta", organizado pelo Ministério da Educação da
Itália, em Roma (1999); na Exposição "Amazônia" realizada no
Tropenmuseum, em Amsterdam, Holanda (1996); no Seminário organizado pela
Rainforest-Austria, em Viena (2000) e na Universidade de Nápoles, Itália
(1999), onde atuou ao lado das professoras ticunas Hilda do Carmo e Adélia
Bittencourt.
Tchauenee,
cunama!
Finalmente, o
Termo de Lembrança registra que as atividades de organização do Museu Maguta
iniciaram em 1988, num momento crítico em que os Ticuna estavam mobilizados na
luta pela defesa de seu território, enfrentando-se até mesmo com grupos
armados. Dessa luta, Constantino deu conta, em 1995, quando por mim convidado,
ele deu uma aula de Etnohistória, na UERJ, no turno da noite.
No meio da aula,
um apagão deixou a universidade nas trevas. As salas se esvaziaram, exceto uma.
Lá, os estudantes pediram que ele continuasse. Na escuridão, era apenas uma
sombra relatando, com voz anasalada, o episódio ocorrido em 28 de março de
1988: o massacre do igarapé do Capacete.
Ele contou como
os índios, desarmados, reunidos na aldeia, foram cercados e surpreendidos por
pistoleiros que começaram a atirar. As crianças lançavam gritos de desespero,
protegidas pelos adultos que, com seus corpos, faziam um escudo humano em volta
delas. No meio do tiroteio, corpos começaram a cair. No final, havia 14 mortos,
23 feridos, 10 desaparecidos, todos eles ticuna, o que repercutiu
internacionalmente.
Constantino
lembrou, com respiração ofegante, como foi ferido por quatro balas que ficaram
permanentemente alojadas em seu corpo e seriam depois levadas com ele na sua
última viagem. Sua voz cortava a escuridão, intercalada por pausas
dolorosamente prolongadas, que criavam um silêncio eloquente. Os estudantes de
História escutavam estarrecidos aquele documento vivo, em cujo corpo a história
havia deixado o seu registro, com sangrenta caligrafia.
Essa mesma
história ele narrou para sua amiga Jussara Gruber, numa noite de chuvinha fina
e interminável. "A história ia se desenrolando como um filme tal a riqueza
de detalhes. Foi quando ele me disse: eu não tenho medo de morrer" - conta
Jussara.
Este Termo de
Lembrança teria ainda muitos registros a fazer, mas a Canoa ameaça transbordar.
Vamos deixar assim para que ela não alague e possa chegar ao seu destino final:
as águas vermelhas do igarapé Eware. Chamamos o piloto do barco, o comandante
Tinga, para dar a partida, e Nelcy, a vizinha de Constantino no Beco Castelo
Branco para dar seu último adeus. Resta apenas dizer: "Tchauenee,
cunama! Meu irmão, até logo!".
(*) P.S. Foram professores de Constantino em vários cursos, entre outros:
Jussara Gomes Gruber (OGPTB), Marília Facó (PPGAS - Museu Nacional), Márcia
Spyer (UFMG), Luis Roberto de Paula
(UFMG), Lúcia Lopes (PUC/RS); Marineusa Gazzetta (UNESP), José R.
Bessa (UNIRIO/UERJ), Geraldo Sá Peixoto Pinheiro (UFAM), Dorinethe Bentes, Davi
Leal, Luciano Cardenes e Sebastião Rocha de Sousa (UEA), Sirlene Bendazzoli
(OGPTB/UEA); João Pacheco (PPGAS - Museu Nacional), Ana Suely Cabral
(UnB), Cloude de Souza Correia (IIEB). Conviveram com ele em eventos e
trabalhos de pesquisa: Odalice Miranda Priosti, Alessandra Marques, Helena
Cardozo de Oliveira, Valéria Luz da Silva, André Andion Angulo, Christiane M.
Lyra e Sérgio Santos, todos do Curso de Museologia da UNIRIO.
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