Escrito por Telma Monteiro
Fonte: Xingu Vivo Para Sempre
A justiça mandou parar Belo Monte. A hora da verdade chegou. Para
os que não acreditavam ser possível, o fato histórico aconteceu. É manchete nos
principais jornais do mundo.
O projeto de Belo Monte foi proposto para operar à custa da
redução da vazão de um trecho de aproximadamente 130 quilômetros chamado de
Volta Grande do Xingu. Lá estão localizadas as Terras Indígenas Paquiçamba,
Arara da Volta Grande e Trincheira Bacajá.
Cinco municípios seriam diretamente afetados: Vitória do Xingu,
Altamira, Senador José Porfírio, Anapu e Brasil Novo.
Em 2005, o Decreto Legislativo 788/2005, do Congresso Nacional,
autorizou a construção de Belo Monte. Postergou-se a consulta aos indígenas.
Como disse, nesta semana, o Desembargador Souza Prudente, depois de mais um
voto brilhante que parou Belo Monte: "a consulta não pode ser
póstuma" [aos indígenas que sofrerão os impactos do empreendimento].
Os indígenas da TI Paquiçamba e da TI Arara da Volta Grande seriam
as maiores vítimas dos impactos diretos, pois estão justamente no trecho da
vazão reduzida. O decreto simplesmente ignorou a consulta prévia e a
necessidade de estudos etnoecológicos dos indígenas.
No início de 2006, com o Decreto Legislativo 788/2005 na mão,
inconstitucional, pois os indígenas não seriam ouvidos previamente, a
Eletrobras pediu a abertura do processo de licenciamento no Ibama. Propôs seu
próprio Termo de Referência – que seria atribuição do Ibama - para elaboração
do EIA/RIMA. A partir daí o projeto foi
"vendido" às instituições envolvidas e o processo, então, teve início
sem estudos e sem a oitiva dos indígenas.
Foi nesse momento, quando a Eletrobras deu início aos trâmites do
licenciamento no Ibama, que o Ministério Público do Pará ajuizou a Ação Civil
Pública (ACP) com pedido de liminar contra a Eletronorte e Ibama. Deviam
paralisar os estudos de Belo Monte, uma vez que faltava a oitiva dos povos
indígenas afetados pelo empreendimento.
A Constituição Federal estabelece no artigo 231, §3º, que "O
aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos em
terras indígenas, só pode ser efetivado com autorização do Congresso Nacional,
ouvidas as comunidades afetadas". A Convenção 169 da OIT, ratificada pelo
Brasil, também estabelece a necessidde de consultas prévias aos indígenas.
Em 28 de março de 2006 o MPF obteve a liminar que suspendia o
processo de licenciamento de Belo Monte. A vitória foi saboreada por pouco
tempo. Em menos de 60 dias, em 16 de maio de 2006, caía a liminar. O processo
de licenciamento teve luz verde para prosseguir.
Um dos pontos interessantes desse caso é que o Ibama jamais teve
intenção de realizar a oitiva ou consulta às comunidades indígenas. Iria sim,
promover as reuniões públicas para ouvir a comunidade com relação aos pontos a
serem abordados no EIA/RIMA. A oitiva
também não caberia à Funai, como chegou a sugerir o Ibaman (1).
O processo de licenciamento prosseguiu. O desrespeito à
Constituição Federal e à Convenção 169 da OIT foram flagrantes. Riscos de
impactos às comunidades indígenas foram suplantados pela celeridade do processo
de licenciamento.
Depois de seis anos, em 13 de agosto de 2012, a ação do MPF foi
julgada pelo Tribunal da Regional Federal da 1ª Região, 5ª Turma. O MPF estava
certo, a sociedade estava certa, os indígenas estavam certos, a justiça
finalmente, através do volto do relator, Desembargador Souza Prudente,
prevaleceu nessa etapa do processo. Por unanimidade, a decisão mandou parar as
obras de Belo Monte até que os indígenas sejam ouvidos pelo Congresso Nacional.
Aparando arestas
No final de 2007, o Ibama convocou a Funai para discutir o Termo
de Referência dos Estudos Etonoecológicos/Socioambientais indígenas e os
procedimentos da oitiva à comunidades indígenas. A reunião aconteceu em janeiro
de 2008. As empresas Engevix, Themag e Techne estavam presentes e deram o tom
(2).
Na apresentação feita pelas empresas constava a consulta aos
indígenas pelo Congresso Nacional como parte da proposta dos estudos
Etnoecológicos dentro do EIA/RIMA. Mas a consulta seria só depois dos estudos.
O texto de um dos slides menciona " resistências" ao novo projeto de Belo Monte por parte das
comunidades indígenas, dos antropólogos e demais agentes atuantes junto aos
indígenas. Foi mencionada uma "necessidade de esclarecer as informações
negativas sobre o Empreendimento difundidas no meio indígena da região, que induzem
à desconfiança sobre a transparência do processo".
Hilário. De qual transparência estariam falando?
A estratégia proposta foi, claramente, de aparar as arestas de
desconfiança com "comunicação direta e formal às Comunidades habitantes das Terras Indígenas
objeto dos estudos: esclarecendo-as a respeito do novo projeto do AHE Belo
Monte. As reuniões, por iniciativa dos próprios índios e da Funai". Estava
"permitida" a presença de antropólogos e instituições, para dar
"esclarecimentos" sobre o "novo" projeto.
Seria uma espécie de imposição e convencimento para viabilizar uma
possível consulta futura protagonizada pelo Congresso Nacional. Preparar o "caminho".
O penúltimo slide da apresentação sugere que os estudos
antropológicos e o EIA/RIMA, depois de prontos e aprovados pelo Ibama e Funai,
"serão encaminhados ao Congresso Nacional , que convocará a oitiva com as
Comunidades Indígenas afetadas, consolidando os compromissos assumidos com
elas" (3).
Apesar da repercussão da ACP do MPF, de 2006, a proposta dos
interessados confirmou uma inversão da ordem e a violação da CF: depois das
reuniões de "esclarecimento" aos indígenas, os estudos seriam
aprovados pelas instituições envolvidas – Ibama e Funai. Por último, o
Congresso Nacional. Se fosse necessário.
O EIA/RIMA e a falta do
Termo de Referência
Em 27 de janeiro de 2007 a empresa e.labore contratada para fazer
EIA/RIMA de Belo Monte enviou uma correspondência ao Ibama apontando a
impossibilidade de fazê-lo devido à falta do Termo de Referência. Como o MPF já havia se manifestado em busca
do Termo de Referência, que não existia, seria preciso mudar o "discurso
estratégico". Que tal enrolar a opinião pública?
A empresa confirmou que já estaria envolvida na confecção dos
estudos sem o Termo de Referência e ainda sugeriu à Diretoria do Ibama expedir um
no "padrão-genérico". Também
pediu ao Ibama para "expedir documento oficial, solicitando que os
responsáveis pelo projeto complementem o Termo de Referência padrão/genérico,
alegando deficiência infra-estrutural e podendo aproveitar os estudos de inventário
em consecução".
O MPF teve acesso a esse documento e ajuizou uma ACP, em 16 de
abril de 2007, apontando a ilegalidade proposta e pedindo que o Ibama não
continuasse o processo de licenciamento sem o Termo de Referência (2).
Mais irregularidades
Os estudos ambientais não estavam finalizados, em 2009, quando o
Ibama questionou a falta de informações de alguns aspectos ambientais. Os
reservatórios que manteriam permanentemente inundados áreas sazonais, como os
igarapés de Altamira e Ambé e parte da área rural de Vitória do Xingu; a
redução da vazão a jusante (rio abaixo) na Volta Grande; a interrupção do
transporte fluvial das comunidades ribeirinhas. Nessa época estimava-se em
2.000 famílias a população a ser remanejada
em Altamira, 813 em Vitória do Xingu e 400 famílias ribeirinhas.
Notas:
(1) Informação N 12/2009 – COHID/CGENE/DILIC/IBAMA – Volume V,
páginas 893 do processo de licenciamento.
(2) Volume IV, páginas 603 a 615 do processo de licenciamento.
(3) Volume IV, página 613, do processo de licenciamento.
(4) Ação Civil Pública Ambiental, com pedido de liminar, em face
de Eletrobras- Centrais Elétricas Brasileiras S.A. – Volume III, páginas 483 a
506 do processo de licenciamento.
Telma Monteiro é ativista socioambiental, pesquisadora, editora do
blog http://www.telmadmonteiro.blogspot.com.br, especializado em projetos
infraestruturais na Amazônia. É também pedagoga e publica há anos artigos
críticos ao modelo de desenvolvimento adotado pelo Brasil.
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