José Ribamar Bessa Freire
26/08/2012 - Diário do Amazonas
Não me lembro mais se o Gervásio era
padre ou apenas irmão leigo. Sei que era religioso da Companhia de Jesus, que
era belga e que migrou para o Peru, nos anos 1960, para atuar numa instituição
denominada "Fe y Alegria". Devia ter uns trinta e poucos anos. A
secretária dele, que não era freira, chamava-se Imelda ou talvez Begônia, não
recordo, só sei que era, com todo respeito, uma chola gostosinha, dona de uma
beleza acabocada. Disso, ninguém esquece.
Os dois,
Gervásio e Imelda (acho que era Imelda mesmo), faziam parte de uma pequena
equipe responsável por uma rede de escolas populares construídas nas favelas de
Lima com palha, esteira e barro. Na época, mais de 10 mil alunos pobres
recebiam educação de qualidade nessas escolas, que aproveitaram a experiência
dos jesuítas em outros países: Venezuela, Equador e Panamá. Era um trabalho
sério que continua ainda hoje, em prédios mais sólidos, de forma ampliada.
Nós
conhecemos o Gervásio e a Begônia (ou seria Imelda?) em 1970. Nós, que eu digo,
éramos três exilados brasileiros: Euclides Coelho de Souza e Adair Chevonika,
que integravam o Teatro de Bonecos Dadá (TBD). O terceiro era esse locutor que
vos fala. Ainda em Santiago do Chile, aderi ao grupo, quando então saímos para
fazer teatro de títeres no Peru, que havia se tornado o epicentro de lutas
políticas anti-imperialistas. Naquele momento, os militares nacionalizaram o
petróleo e o cobre, desapropriaram as fazendas açucareiras e realizaram uma
reforma agrária radical, cujo lema era: "Campesino, el patrón ya no comerá
más de tu pobreza".
La
ciudad de los tísicos
Os
campesinos acreditaram que era mesmo pra valer. Quando chegamos a Lima, em
1970, o país estava fervilhando. Alugamos a garagem de uma casa em Magdalena
del Mar, cuja dona, graças a Deus, não tinha carro. E era lá que morávamos.
Podíamos até cozinhar num pequeno fogão elétrico, portátil, de uma só boca,
onde fazíamos as refeições, que durante uma época se resumiam à sopa de
cubinhos knorr, acompanhada de um pedaço de pão. Nosotros comíamos nuestra pobreza.
Por isso,
diante de um quadro como esse, Euclides e Adair se apavoraram quando numa
manhã, ao acordar, me viram, suado, cuspir sangue, depois de um acesso
persistente de uma tosse seca, barulhenta, parecia até tosse de guariba.
Queixei-me, ainda, de uma ligeira dor no peito.
- Pode ser
tuberculose - diagnosticou com olhar clínico Miguelito, filho da dona Chela,
nossa locatária. O "pode ser" era, na realidade, afirmativo, e soava
como uma sentença. É que Miguelito não era um perico-de-los-palotes qualquer,
ele trabalhava no Hospital Del Niño, seu discurso vinha da área médica, o que
lhe conferia plena legitimidade e autoridade.
As pessoas
do contra - sempre tem gente do contra para empentelhar - poderiam objetar que
Miguelito não era médico, sequer enfermeiro, mas um mero auxiliar de serviços
gerais no almoxarifado do Hospital Del Niño. Era verdade. Mas não importa. A
credibilidade não diminuía, porque de qualquer forma, sua voz vinha de alguém
que convivia com doenças.
Ele soube explorar o lugar de onde
falava, demonstrando conhecimento da questão. Informou que Lima era a cidade
que abrigava o maior número de tuberculosos do mundo, por causa do clima úmido
e frio, da extrema pobreza, da fome e da subnutrição, que debilitavam o sistema
imunológico das pessoas. Lembrou de um breve relato, um romance curto, do
escritor peruano Abraham Valdelomar, intitulado La ciudad de los tísicos, cujo
cenário é o centro de Lima, que exporta seus tuberculosos para Chosica, no sopé
dos Andes, a 40 km da capital, situada a mil metros de altura e, por isso, é
considerada ideal para curar esse tipo de doença.
Miguelito
embasou seu discurso com toda uma fundamentação histórica, ilustrando-a com
exemplos didáticos. Disse que a tuberculose havia atacado, no passado, até
mesmo o Inca Tupac Yupanqui, que foi se curar em Jauja, cujo clima saudável era
famoso. Dessa doença, não escapou nem mesmo Santa Rosa de Lima, que foi
declarada a patrona dos tuberculosos. Por isso, no seu dia, 30 de agosto, se
celebra no Peru o Dia do Tísico.
Se a
tuberculose pegou o Inca e até uma santa, por que iria poupar um pobre pecador,
mal alimentado e desapoderado, como o Zé Bigodinho, nome artístico que eu
adotei no TBD, como referência a uma ridícula penugem que surgiu abaixo do meu
nariz, mais rala e fina do que a de qualquer camponesa de Portugal.
Pulmões
tímidos
Não havia
qualquer dúvida. O diagnóstico estava feito. Faltava tomar as providências para
a cura da doença. Tínhamos agendado uma reunião com Gervásio e Imelda (ou
Begônia), para combinar as realizações de espetáculos de teatro de bonecos que
íamos apresentar nas escolas de Fé y Alegria. Euclides falou:
- Esse é o
momento de pedirmos um gesto de solidariedade do Gervásio, que ele arranje um
médico para te examinar e talvez - quem sabe? - conseguimos até uma cesta
básica de alimentos. Ou que realize uma rifa, podemos rifar um dos nossos
bonecos, com a renda em benefício da cura da tuberculose.
Fomos para
lá, levando minha tuberculose, minha tosse e um rolo de papel higiênico. No
caminho, tive muitos acessos de tosse e cuspi dezenas de vezes, todas elas eram
postas de sangue. Quando chegamos ao nosso destino, Euclides explicou a
situação, dramatizando-a. Pediu ajuda e, como prova a ser exibida, ordenou:
- Mostra pra
eles! Cospe, Zé Bigodinho!
A expectativa
era grande. Todo mundo se reuniu num círculo. A tosse não vinha. Cuspi sobre o
pedaço de papel higiênico, mas, para surpresa nossa, tratava-se de uma secreção
branca, sadia, do tipo usado para colar selos em envelopes. Para quem tinha
visto as cusparadas anteriores, parecia um milagre de Santa Rosa de Lima.
- Ele está
nervoso - consertou meu amigo Euclides, ligeiramente decepcionado, dirigindo-se
à plateia. Depois, me orientou:
- Não fica
ansioso, meu filho. Relaxa e daqui a pouco tosse e cospe de novo.
Euclides
implorou, em vão, muitas vezes, num tom suplicante:
- Cospe, Zé
Bigodinho!
Repeti o
gesto um infindável número de vezes, parecia até treinamento para campeonato de
cuspe à distância. Em todas elas, invariavelmente, EM TODAS, só saía uma
secreção de saliva branca, sem um pingo de sangue. A tuberculose estava
definitivamente desmoralizada ou, então, era mesmo um milagre de Santa Rosa de
Lima. Se Gervásio e Begônia (ou Imelda) não nos conhecessem, poderiam pensar
que se tratava de um "golpe".
Saímos
de mãos abanando. Já de regresso à casa, pelo caminho, voltei a cuspir. Saiu
uma enorme posta de sangue. Tornei a cuspir: outra posta de sangue. Dei 383
espirros, tive 432 acessos de tosse e cuspi o dobro disso. Todas as vezes,
TODAS, que cuspia, vinha com sangue. Peguei um esporro do meu amigo, que
condenou o meu "excesso de timidez": "Já vi de tudo, mas
tuberculose tímida é a primeira vez" - ele disse.
Lembrei
dessa história porque escapei por pouco de comemorar o Dia dos Tísicos neste
próximo dia 30 de agosto. O Euclides e a Adair vivem hoje no Paraná e estão aí
mesmo para não me deixarem mentir. Quanto ao Gervásio, à Imelda (ou Begônia),
francamente, não sei por onde andam.
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