José Ribamar Bessa Freire
29/07/2012 - Diário do Amazonas
Ato contra a Portaria na AGU de Rio Branco
O que é AGU?
Levanta a mão aí quem sabe! A curiosidade aumentou depois que a AGU
publicou, no dia 17 de julho, a Portaria 303/2012, dispondo sobre as terras
indígenas, o que provocou o maior rebucetê, com reação contrária de índios,
antropólogos, ambientalistas, juristas, movimentos sociais e até de setores do
próprio governo. A mídia se fechou num silêncio cúmplice, mas não conseguiu
abafar o protesto feito com estardalhaço e indignação nas redes sociais.
- "A
Agu endoidou de vez" - escreveu uma internauta, sem entender de
onde havia saído a tal Portaria. Afinal, quem é AGU no jogo do bicho? Qual o
poder que tem para prejudicar os índios?
No Rio Negro
(AM), todo mundo conhece as histórias inacreditáveis protagonizadas pela Agu,
uma velha preguiçosa e vadia, que nunca fez roça e viveu sempre às custas dos
outros, colhendo o que não plantou. Por isso, Manicy - a Mãe da Mandioca -
castigou a velha, transformando-a em aguti, que é o nome da cutia em língua
geral. Desde então, a velha deixou de ser gente e virou bicho, mas mesmo assim
não perdeu o vício. Continua invadindo e saqueando as plantações, das quais é
um dos piores inimigos.
Os estragos
que este roedor, de hábitos noturnos, faz nos roçados, com suas unhas cortantes
e seus dentes afiados, levaram os índios a criar o ditado da cutia:
- O sol
foi embora / findou o dia / a noite é a hora / da velha vadia.
As histórias
dos estragos feitos pela velha Agu, incorporada na cutia, são contadas nas
malocas dos rios Vaupés e Tiquié. Algumas versões foram recolhidas pelo conde
italiano Ermano Stradelli, que viveu 47 anos no Amazonas, onde aprendeu a
língua geral - o nheengatu, e coletou mitos indígenas. Ele publicou, em 1929, o
seu Vocabulário Nheengatu-Portuguez, em cujo verbete Acuty ou Aguti (p.361-362)
aparece a versão aqui apresentada.
A
Portaria
Mas quem
ameaça estragar agora o roçado dos índios é outra AGU, a Advocacia-Geral da
União. Seu chefe, Luís Inácio Lucena Adams, cujo status é de
Ministro de Estado, assinou portaria determinando que o governo pode fazer nas
terras indígenas aquilo que a cutia faz nos roçados: os estragos que quiser,
sem necessidade de consultar as comunidades envolvidas ou sequer a própria
Funai. Dessa forma, os índios passam a ser inquilinos em sua própria terra, que
virou casa da sogra ou da mãe-joana.
A reação veio
rápida. As redes sociais e as aldeias indígenas fervilharam com mensagens e
notas de protesto. A indignação foi tão grande que um internauta, desesperado,
manifestou que se a portaria não for revogada é o caso de fazer o que a
presidente Dilma fez no combate à ditadura: pegar em armas. Os caciques, as
lideranças e as organizações indígenas foram unânimes no repúdio à Portaria. Os
aliados, alarmados, também se pronunciaram.
A Rede de
Cooperação Alternativa, que congrega dez organizações, considerou a portaria
"um retrocesso na garantia dos direitos indígenas", um
ato "inadmissível e escandaloso" que fere a Constituição
de 1988 e os acordos internacionais assinados pelo Brasil. Solicitou
à presidente Dilma que determine a imediata revogação da Portaria e
recomende à AGU "que aguarde a manifestação da Suprema Corte do país".
O Conselho
Indigenista Missionário classificou a portaria como "excrescência
jurídica", danosa para os índios, "muitos deles morando
em acampamentos na beira de estradas ou em reservas superlotadas, enquanto
esperam que suas terras ancestrais sejam demarcadas".
A própria
Funai manifestou seu desacordo, considerando que a portaria aumenta a
insegurança jurídica e coloca em risco os direitos garantidos
constitucionalmente às comunidades indígenas. Em comunicado à imprensa, a Funai
confirmou contatos com o advogado-geral da União, Luís Inácio Adams, que
aceitou suspender a vigência da portaria até que sejam ouvidos os povos
indígenas em audiência pública.
- Suspender
não é suficiente: a COIAB exige a imediata revogação da Portaria 303 da AGU -
reivindicou a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira,
apoiada no parecer de juristas e no descontentamento dos índios.
Um dos juristas,
Dalmo Dallari, argumentou que a portaria da AGU "contém evidentes
inconstitucionalidades e ilegalidades", pois "pretende
revogar dispositivos constitucionais relativos aos direitos dos índios, além de
afrontar disposições legais". Ele considerou que o advogado-geral da
União não tem competência para fazer o que fez, querendo mudar a Constituição
ou impor sua interpretação a quem não é seu subordinado, o que significa
exorbitar de suas funções.
A
cutia globalizada
Afinal, quais
são mesmo as funções da AGU? A Advocacia-Geral da União foi criada em 1993 para
defender o Estado e representá-lo judicial e extrajudicialmente. Seu chefe,
nomeado pelo Presidente da República, comanda uma instituição encarregada de
defender os interesses da União e de prestar consultoria e assessoramento
jurídico ao poder executivo. Resta saber o que é que a nação brasileira ganha
com uma portaria que pretende prejudicar quase um milhão de índios?
Os interesses
nacionais não conflitam com os interesses dos índios. Ao contrário, o que é bom
para os índios é bom para o Brasil. A diversidade cultural e linguística deve
ser mantida para o bem de nossos filhos, de nossos netos e de toda a sociedade
brasileira. Por isso, a Constituição de 1988 garantiu aos índios o direito à
terra, sem o qual a diversidade deixa de existir. Por que, então, uma
controvertida portaria ataca, como a cutia, o roçado dos índios? Parece que tem
caroço debaixo dessa AGU.
E tem mesmo.
Basta verificar como é que a tal Portaria foi cozinhada. Foi assim: a Confederação
Nacional da Agricultura (CNA) e a Federação de Agricultura e Pecuária do Mato
Grosso do Sul (FAMASUL) vêm pressionando a AGU há muito tempo. Em novembro do
ano passado, encaminharam um documento, cobrando da AGU "uma norma
definitiva e específica sobre a demarcação de terras indígenas em todo o
país".
Os senadores
Waldemir Moka (PMDB/MS - vixe, vixe) e Kátia Abreu (PSD/TO - vixe,vixe),
acompanhados de outros dez senadores e de representantes da bancada ruralista
se reuniram com o advogado-geral da União para discutir a possibilidade de o
Governo Federal produzir a tal Portaria. A senadora Kátia, que é presidente da
Confederação Nacional da Agricultura (CNA), declarou naquela ocasião aos
jornais:
- "O
Moka e eu queremos que a AGU oriente os órgãos da União como proceder sobre
essa questão. Acreditamos que vamos ter sucesso".
Tiveram. Se o
Moka quer, se a Kátia Abreu também, a AGU entendeu como uma ordem. Foi aí, das
unhas cortantes e dos dentes afiados da cutia que surgiu a Portaria,
contaminada de impropriedades técnicas, causando um vexame no mundo jurídico, o
que talvez pudesse ter sido evitado se fosse consultado o Centro de Estudos
Victor Nunes Leal (CEVNL), órgão responsável pelo aperfeiçoamento profissional
dos membros da AGU, que teria advertido sobre o desacordo da Portaria com a Lei
e a Constituição.
- A
Portaria nº 303/2012 da Advocacia Geral da União não tem validade jurídica, e
qualquer tentativa de lhe dar aplicação poderá e deverá ser bloqueada por via
da ação judicial própria, a fim de que prevaleça a supremacia jurídica da
Constituição, respeitados os direitos que ela assegurou aos índios brasileiros - escreveu Dalmo Dallari.
Quem se
beneficia com a tal Portaria? A nação perde, os índios perdem. Quem, então,
ganha? Ela, a cutia. Podem verificar: onde tem terra indígena, tem o
agronegócio - essa cutia globalizada - querendo invadir o roçado. É que os
ruralistas confundem os lucros do agronegócio, que é privado e particular, com
os interesses da nação brasileira. Eles são, apenas, uma pequena parte de uma
totalidade, mas ignoram as outras partes. Quando aumenta o lucro deles, "é
o Brasil que se desenvolve”. Quando diminui, "é o Brasil que está em
crise", não importa o que está acontecendo com os outros segmentos. O
Brasil é o agronegócio, que a AGU, pagando o maior mico, resolveu defender. A
cutia está assoviando:
- O sol foi
embora / findou o dia / a noite é a hora / da tal Portaria.
P.S. As
organizações que protestaram foram, entre outras: Federação das Organizações
Indígenas do Rio Negro (FOIRN), Coordenação das Organizações Indígenas da
Amazônia Brasileira (COIAB), Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB),
Conselho Indígena de Roraima (CIR), Comissão Terra Guarani (CTG), Comissão
Guarani Yvyrupa (CGY), Associação Brasileira de Antropologia (ABA), Programa de
Estudos dos Povos Indígenas da UERJ e a Rede de Cooperação Alternativa (RCA)
que congrega as seguintes entidades: Instituto Sociambiental (ISA), Associação
Terra Indígena Xingu – Atix, Associação Wyty-Catë dos Povos Timbira do MA e TO,
Centro de Trabalho Indigenista – CTI, Comissão Pró-Índio do Acre – CPI-AC,
Conselho das Aldeias Wajãpi -Apina, Hutukara Associação Yanomami - HAY,
Instituto de Pesquisa e Formação Indígena – Iepé e Organização dos
Professores Indígenas do Acre – Opiac.