José Ribamar Bessa Freire
22/07/2012 - Diário do Amazonas
Na Favela do Bode, em
Recife, no meio do lamaçal de um mangue, brotou, como uma flor, uma biblioteca.
Funciona dentro de uma palafita. Nem sequer tem estantes, os livros estão
amontoados no chão, mas mesmo assim essa biblioteca-severina é bela, porque
"corrompe com sangue novo a anemia". Lá, as crianças estão lendo e se
encontrando. Mas não é só lá.
No
Rio de Janeiro, na Favela de Manguinhos, floresce uma biblioteca-parque, com
cinema, teatro, espaço de lazer e muito livro. Ela também "infecciona a
miséria com vida nova e sadia". Na Favela da Rocinha, na Zona Sul,
acaba de desabrochar outra biblioteca, em um prédio vistoso, inaugurado
recentemente pela ministra da Cultura, Ana de Hollanda.
- As
bibliotecas, comunitárias ou públicas, ajudam a combater a violência e o medo,
elas trazem esperança - discursou a ministra, mencionando a
experiência exitosa da Colômbia, cujo modelo inspirou a biblioteca-parque.
Essas novas bibliotecas, além de livros, vídeos e internet, constituem um
espaço de convivência, onde as pessoas se reúnem, se encontram, trocam informações
e ampliam a dimensão do ato de ler,
Em
todos os lugares do planeta, estão abrindo bibliotecas, umas mais severinas que
outras, mas todas elas janelas de esperança. Menos no Amazonas, onde a
Biblioteca Pública do Estado, que devia dar o exemplo, permanece fechada há
mais de cinco anos. São quase 2 mil dias de desesperança, sem biblioteca.
Imaginem se o principal banco de uma cidade ficasse fechado por cinco anos! Ou
a catedral! Ou o shopping! Imaginem uma cidade com shopping, banco ou igreja fechados!
Agonia da biblioteca
Foi
o que aconteceu em Manaus com a principal biblioteca, centenária, que nasceu
antes do Oscar Niemeyer, em 1870, como sala de leitura de um liceu. Ela mudou
depois pra igreja Matriz e, de lá, para um colégio, de onde saiu para uma casa
alugada, até ser extinta em 1897. Ressurgiu num prédio próprio de estilo
neoclássico, inaugurado em 1910, na Rua Barroso, com escadas e colunas
importadas da Escócia, mármore, lustres de cristal e telhas da Inglaterra.
Enfrentou um incêndio em 1945, perdeu todo seu acervo de 60 mil livros e
renasceu das cinzas em 1947.
Resistiu
a tudo: incêndio, inundação, saqueio, mudança de sede, corrupção e até mesmo
aos 16 anos de Robério Braga como Secretário de Cultura, responsável pela
vergonha que passei no IV Congresso Latino-Americano de Biblioteconomia e
Documentação, realizado em 2008, em São Paulo, no Memorial da América Latina. É
que na conferência que lá ministrei, me apresentei como amazonense. Veio,
então, alguém com dados à mão, mostrando que no Amazonas, campeão da
desesperança, 50% dos municípios não possuem biblioteca, sequer uma prateleira
ou, pelo menos, livros amontoados numa palafita como na Favela do Bode.
O
secretário de Cultura está se lixando para as bibliotecas. Num artigo publicado
aqui, em 2008, intitulado 'Berinho e o flautista', informamos que naquele ano,
a Secretaria de Cultura estava pagando 604,6 mil para hospedagens em hotéis e
barcos de luxo aos convidados oficiais do Festival de Parintins, entre os quais
algumas "celebridades" ex-BBB. Quem paga, na realidade, é o pobre
contribuinte do Amazonas, que não tem uma palafita com livros dentro. Naquela
ocasião, perguntamos: quantas bibliotecas poderiam ser construídas com essa
grana?
Agora,
Berinho, o eterno secretário de Cultura, está tirando o loló da seringa. Disse
que não pode tomar nenhuma providência. Denunciou seu colega da Secretaria de
Infraestrutura como o responsável pelo não funcionamento da biblioteca. Ou
seja, no Amazonas, biblioteca não é atribuição da Secretaria de Cultura, mas de
engenheiros e construtoras.
A
agonia da biblioteca pública vem se arrastando durante a gestão do Berinho na
Secretaria de Cultura com diferentes governadores. Num artigo publicado em
1996, intitulado A Agonia da Biblioteca, que mereceu comentários do
saudoso senador Jefferson Peres, dizíamos que era preciso deixar de lado
divergências políticas, partidárias, ideológicas e pessoais e unir esforços
para salvar a biblioteca. Fiel a esse compromisso, eu já estava disposto a
fazer a minha parte e me prostrar, de joelhos, diante do governador Omar Aziz,
que nem a Nina fez com a Carminha, implorando pela abertura. Fui salvo dessa
humilhação pela Maré Amarela.
Abre Biblioteca
Maré
Amarela ou Marea Amarilla nascida em Madrid inspirou o
movimento "Abre Biblioteca", criado em maio do corrente ano, no
Amazonas, que na última segunda-feira organizou uma passeata, com um abraço
simbólico ao prédio da Rua Barroso, patrimônio estadual desde 1988. Os
manifestantes já recolheram mais de 3.500 assinaturas num documento que será
entregue ao governador do Amazonas, Omar Aziz. A Maré Amarela luta, na Espanha,
contra corte de recursos para a manutenção dos espaços culturais.
Mas
no Amazonas, os recursos existem e estão previstos no orçamento, acontece que
não são usados de forma correta. A reforma, que devia durar apenas seis meses,
recebeu aditivos ao contrato e se prolongou por mais de cinco anos, parece até
a igreja da Praça XIV, cujo segredo era permanecer inconclusa para continuar
arrecadando donativos dos fiéis. É suspeita uma reforma que custa mais, em
tempo e dinheiro, do que custou a própria construção do prédio. O mais grave é
que ainda não foi concluída.
Por
isso, o "Abre Biblioteca" exige uma data para a reabertura da
biblioteca. Este movimento surgiu com a união de quatro amigos, segundo a
bibliotecária Soraia Magalhães, mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia pela
UFAM. Ela, que edita o Blog Caçadores de Bibliotecas, conta a reação ao
fechamento da Biblioteca Estadual:
- Estudei
e trabalhei por anos nela, para mim tem um valor sentimental e quero que outras
crianças tenham a oportunidade que tive de obter conhecimento gratuitamente.
Nós decidimos que precisávamos fazer alguma coisa e iniciamos a campanha
com uma petição, que hoje já está circulando na internet, além da adesão de
muitas pessoas no próprio facebook. O grupo Abre Biblioteca já conta com 3.674
pessoas que aderiram à causa.
A
Biblioteca Estadual faz muita falta porque as escolas de Manaus não estão
aparelhadas para atender aos alunos e ela acaba cumprindo também a função de
biblioteca escolar, além de referencia para os pesquisadores que buscam
consultar textos raros.
Luiz
Milanesi, em seu livro "Ordenar para Desordenar", com o qual trabalho
no curso de biblioteconomia da UNIRIO, afirma que qualquer biblioteca abriga
sempre um conjunto de informações diversas e conflitantes e que aqui reside o
seu aspecto democrático. Ao lado de um livro em defesa do capitalismo, por
exemplo, é possível encontrar outro em defesa do sistema.
Uma
cidade sem biblioteca é um corpo sem alma, é um cadáver. Abre a Biblioteca,
Omar!
Olhando
a foto do abraço dado por mais de 100 manifestantes à Biblioteca Pública, o
medo se dilui, a esperança cresce. Não é só uma biblioteca aberta que acende a
luz no final do túnel: uma biblioteca, mesmo fechada, se abraçada, é como uma
flor nascendo no mangue.
P.S. - Para
ver os artigos citados:
1) Berinho e o
Flautista (29/06/2008) - http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=79
2) A agonia
da biblioteca (19/04/1996) - http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=408
3) Contra a
leitura (16/11/2008) - http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=57
4) Blog
Caçadores de Biblioteca - http://cazadoresdebiblioteca.blogspot.com.br/
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