José Ribamar Bessa Freire
08/07/2012 - Diário do Amazonas
"Teixeirão Bobalhão". Esse foi o título que dei para uma nota
publicada, em agosto de 1979, no jornal mensal Porantim do
qual era redator-chefe. Teixeirão, no caso, era o coronel Jorge Teixeira,
ex-prefeito biônico de Manaus. O "bobalhão" tinha uma razão de ser.
Imaginem que o dito-cujo, na ocasião governador nomeado de Rondônia, pretendia
realizar umas obras e decidiu, para isso, invadir terras indígenas, o que era
ilegal. Os índios resistiram e ele agiu como um office-boy de
luxo da construtora Andrade Gutierrez, declarando aos jornais:
- "Os índios são uns bobalhões, uns parasitas
que estão me dando um pouquinho de preocupação. Mas venço a parada e vou
empurrá-los para a outra margem do rio".
Indignado
com tanto desrespeito, o nosso valente tabloide partiu pra cima do governador,
dando o troco na hora. Devolvemos-lhe o epíteto de bobalhão. O
dito-cujo não gostou e se queixou ao bispo, afinal o Porantim era
um jornal do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), que por sua vez estava
subordinado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). A CNBB Regional
escalou para puxar minha orelha o bispo-prelado de Parintins, Dom Arcângelo
Cerqua, da ala mais conservadora da igreja. Sua barbinha-de-bode esvoaçava
quando falou com voz abemolada:
- Meu
filho, um jornal da igreja não pode tratar uma autoridade desta forma.
- Pode
sim - me tranquilizou Antônio Brand, quando soube do ocorrido. -
Deixa o bispo falar. Bispos, às vezes, erram - acrescentou, totalmente
cúmplice na indignação, mas sugeriu que eu não desse o desmentido que pretendia
dar, o que seria pura provocação. Já havia até escolhido o título: Teixeirão,
ex-bobalhão.
Muitos
anos depois lembramos dessa história, Antônio Brand e eu. Nós nos conhecemos,
em julho de 1978, em Goiânia, durante a III Assembleia Nacional do CIMI, que
foi uma escola para todos nós. No episódio do Teixeirão, as palavras de Brand
foram tão reconfortantes quanto o apoio do teólogo Paulo Suess, secretário
do CIMI, com quem eu convivia mais de perto. Conto o caso aqui porque ajuda a
definir o nosso personagem.
O doce radical
Antônio
Brand desenvolveu uma virtude invejável. Conseguia ser radical na defesa dos
índios, sem jamais ser "fundamentalista" e dogmático. Mantinha, ao
lado dessa radicalidade e dessa coerência com os postulados básicos, uma
incrível capacidade de negociação política, baseada na análise de correlação de
forças. Sabia ouvir, ceder, negociar, para poder avançar. Cutucava a onça, mas
com vara comprida. Talvez tenha aprendido essa arte de dosar na convivência com
Dom Thomaz Balduíno, outro doce radical, que consegue ser afável sem transigir
com os princípios.
Essa
virtude, com certeza, foi muito útil durante os trabalhos da Assembleia
Nacional Constituinte de 1987-1988, quando Antonio Brand, então residindo em
Brasília, desempenhou um papel decisivo na luta pelos direitos indígenas, articulando
com deputados e senadores, argumentando, explicando, convencendo. Ele deu uma
grande contribuição para que o novo texto constitucional de 1988 afirmasse o
direito à diferença e definisse o papel do Estado não mais como agente promotor
da integração dos índios, mas como protetor da diferença.
Quem
chama a atenção para esse trabalho discreto, mas eficiente de Antônio Brand é Dom
Erwin Krautler, presidente do CIMI, ele também um doce radical, incansável na
batalha contra os estragos previstos na construção da Usina Hidrelétrica de
Belo Monte.
Nessa
luta sem trégua, o CIMI fez escola, uma escola de militância na qual tivemos o
privilégio de conviver com as principais lideranças indígenas e com figuras
como Thomas Balduíno, Pedro Casaldaliga, Moacir Grechi, Egydio Schwade, Antonio
Iasi, Bartomé Meliá, Paulo Suess. Muitos de nós saímos de lá para a academia:
Antônio Brand, Renato Athias, Egon Heck, Wilmar D'Angelis, Ademir Ramos, todos
vinculando seu trabalho no magistério à temática indígena. Dentro das
universidades, abrimos outras frentes de luta.
Foi
lá, dentro da Universidade, que Antonio Brand atuou nas duas últimas décadas.
Fundador do CIMI no Mato Grosso do Sul e secretário executivo nacional no
período da Constituinte, ele, que era graduado em História pela Unisinos,
defendeu tese de doutorado na PUC-RS, intitulada "O Impacto da
perda da terra sobre a tradição Kaiowá/Guarani: os difíceis caminhos da
Palavra". Ali, ele reconstitui os processos históricos que levaram a
usurpação das terras indígenas em Mato Grosso do Sul e o confinamento dos
índios que lá vivem.
Antônio
Brand passou a lecionar no Departamento de História da Universidade Católica
Dom Bosco (UCDB), em Campo Grande (MS), orientando alunos no mestrado e
doutorado. Criou o Centro de Documentação Kaiowá-Guarani, responsável pelo
levantamento, catalogação e divulgação da documentação primária. Tive a sorte
de participar deste projeto, convidado por ele para identificar a documentação
sobre índios do Mato Grosso do Sul em arquivos do Rio de Janeiro e que contou
com a valiosa colaboração do historiador Neimar Machado.
Na
UCDB, Brand coordenava o Núcleo de Estudos e Pesquisas das Populações Indigenas
(NEPPI) e a Rede de Saberes, sendo responsável, junto com a doutora Adir
Casaro, pela formação de jovens pesquisadores, indígenas e não-indígenas.
Recentemente, fizemos parte de uma banca de mestrado na UNIRIO, quando ele
compartilhou seus conhecimentos sobre história indígena.
O legado
Antonio
Brand conseguiu aliar a militância em favor dos índios com o rigor nas
pesquisas acadêmicas e na formação de pesquisadores. Quem destaca o fato é o
historiador John Monteiro, professor titular do Departamento de Antropologia da
UNICAMP e ex-professor visitante da Harvard University, que escreveu:
- Brand foi uma das pessoas mais dedicadas à defesa
dos direitos indígenas que já conheci. Conseguiu, de uma maneira expressiva,
trazer essa dedicação para dentro da academia, reunindo um núcleo de alunos
e pesquisadores na UCDB voltados para o avanço do conhecimento sobre povos
indígenas em vários campos do saber. Não foram poucos os meus alunos que se
valeram dos conhecimentos e dos contatos que ele partilhava com entusiasmo,
sempre incentivando o engajamento com a temática. Vai fazer falta, porém deixou
um legado significativo.
Esta
falta já estamos sentindo todos nós: sua companheira de todos os momentos,
Valéria Calderoni, sua filha Luciana, seus familiares, seus parceiros, os
membros de sua equipe na UCDB e os índios que vivem no Brasil, especialmente os
Kaiowá e Guarani de Mato Grosso do Sul, que perderam um grande amigo. Na manhã
de terça-feira, 3 de julho, o professor Antonio Jacó Brand, 62 anos, faleceu em
Porto Alegre (RS), vítima de um infarto. No dia seguinte, foi sepultado em sua
terra natal, São José do Sul (RS), no cemitério junto à Igreja de Dom Diogo.
Quando
souberam da morte do amigo fiel, vários Nhanderu - líderes religiosos indígenas
- junto com estudantes e professores guarani e kaiowá saíram de Mato Grosso do
Sul e viajaram a noite toda, atravessando municípios, cidades e estados, para
um último adeus. Lá, no Rio Grande do Sul, abençoaram um cocar e colocaram
sobre seu corpo, em sinal de respeito, reconhecimento e gratidão. Celebraram um
ritual no qual agradeceram, com cantos sagrados, a presença dele, por mais de
40 anos, na luta indígena, conforme informa nota do CIMI.
Os
líderes religiosos Guarani-Kaiowá lembraram, no final da cerimônia, toda a luta
em defesa da terra, da cultura, da língua, que teve em Antônio Brand um aliado
devotado e sempre presente. Pediram a palavra para reafirmar que a melhor forma
de honrar a memória do amigo é continuar a resistência.
A
morte de Antonio Brand foi pranteada em muitas aldeias indígenas do Brasil,
onde era conhecido, no norte e no sul, entre os tuyuka do rio Tiquié (AM), em
comunidades Kaingang e Guarani do Rio Grande do Sul, mas também fora do país.
Mensagens chegaram do Paraguai, do México, da França, de Portugal, da Itália,
dos Estados Unidos, de várias partes do mundo, por parte de antropólogos,
linguistas, historiadores, educadores, missionários, indigenistas e
pesquisadores de diferentes áreas do saber.
No
dia 4, foi realizada missa em sua homenagem, num anfiteatro da Universidade
Católica Dom Bosco, em Campo Grande (MS), reunindo alunos, professores e
funcionários, que ouviram a leitura de uma carta escrita pelo tuyuka Justino
Sarmento Rezende, padre salesiano e ex-aluno de Brand no Mestrado em Educação
na UCDB. Nesta segunda-feira, dia 9, a UCDB realiza a missa de sétimo dia
às 10 horas da manhã.
Com
Antônio Brand aprendemos muitas coisas, além de tomar chimarrão, primeiro nas
reuniões do CIMI, depois nos eventos acadêmicos. Aprendemos também a tratar os
"bobalhões" preconceituosos. No momento em que sentimos uma falta
danada dele, cabe lembrar aqui Dom Pedro Casaldaliga, bispo de São Felix do
Araguaia que numa entrevista publicada no Porantim, recitou um
poema de sua autoria - Profecia Extrema, com o qual nos despedimos
do fiel amigo dos índios:
- Com a morte se fará verdade a minha vida, por fim
terei amado.
Tive alguns problemas também com Arcângelo Cerqua, quando era bispo em Parintins e escrevi uma matéria que ele não gostou, se queixou para o prefeito Raimundo Reis, na época, e tive que deixar o município dos bumbas. Sem comentários quanto aos demais itens. Um abraço,
ResponderExcluir"O poeta é um fingidor.
ResponderExcluirFinge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente."
Fernando Pessoa
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