José
Ribamar Bessa Freire
01/07/2012
- Diário do Amazonas
A Comissão da Verdade não sabe, mas depois do golpe
militar de 1964, o compositor gaúcho Lupicínio Rodrigues (1914-1974) foi preso
e permaneceu vários meses trancafiado, primeiro no Quartel da PE, no centro de
Porto Alegre e, depois, no presídio da Ilha da Pintada, apesar de nunca ter
tido qualquer atividade política. Lá, foi humilhado, espancado e torturado,
teve a unha arrancada para não tocar mais violão e contraiu uma tuberculose
agravada pelo vento frio do rio Jacuí.
Quem me confidenciou isso foi um dos filhos de
Lupicínio, Lôndero Gustavo Dávila Rodrigues, também músico, 67 anos, que hoje
trabalha como motorista na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ). O fato é pouco conhecido, pois Lupicínio não gostava de tocar no
assunto. Preferiu silenciá-lo. Morria de vergonha. "E a vergonha é
a herança maior que meu pai me deixou", cantava ele em
"Vingança", um grande sucesso dois anos antes de sua morte.
- Pra quem tem dinheiro ou diploma, a
prisão política pode até ser uma medalha, tem algo de heroico. Mas para as
pessoas humildes, como ele, que não se metia em política, a prisão é sempre uma
humilhação, algo que deve ser escondido, esquecido - conta o
filho de Lupicínio, a quem conheci recentemente, quando ele, dirigindo o carro
da Universidade, veio me buscar para participar de uma banca de mestrado lá em
Seropédica.
A viagem de ida-e-volta durou mais de cinco horas.
Nos primeiros cinco minutos, eu já havia lhe contado que era amazonense, do
bairro de Aparecida e, quando deu brecha, mostrei-lhe fotos da minha neta. Nos
cinco minutos seguintes, ele já tinha me falado de Lupicínio, seu pai, de dona
Emilia, sua mãe, de sua infância em Rio Pardo (RS) e de suas andanças como
músico por 29 países. Quando nos despedimos, já éramos amigos de infância.
Nervos de aço
Lôndero tem memória extraordinária e admirável dom
de narrar. Suas histórias, que jorraram aos borbotões, podem ocupar várias
crônicas dominicais. Ele próprio é um personagem, suas andanças dariam um
livro. Mas o que ele viveu com seu pai, boêmio e mulherengo, dá outro livro.
Não sei nem por onde começar. Talvez por onde já comecei: a prisão do pai, que
teria provocado uma reação até mesmo em "pessoas de nervos de aço, sem
sangue nas veias e sem coração".
- Nós, da família, sofremos muito com a
injustiça da prisão. Sabíamos que Lupicínio não se metia em política -
contou seu filho, informando ainda que antes da prisão, o pai havia feito uma
versão musical - quanta ironia! - para aquela letra da "oração do paraquedista"
encontrada com um militar francês morto em 1943 no norte da África. Lôndero
recita:
- Dai-me Senhor meu Deus o que vos resta
/Aquilo que ninguém vos pede / Dai-me tudo o que os outros não querem / a
luta e a tormenta / Dai-me, porém, a força, a coragem e a fé.
Lupicínio precisou mesmo de muita coragem e fé para
amargar a prisão, onde em vez de tainha na taquara ou peixe assado no espeto de
bambu, comeu foi o pão que o diabo amassou. Tudo isso por causa de uma ligação
pessoal dele com Getúlio Vargas, relação que acabou sendo herdada,
posteriormente, por Jango e Brizola.
Segundo Lôndero, Lupicínio, que já era um
compositor consagrado em 1950, fez um jingle para a volta de Getúlio Vargas,
com aquela marchinha de carnaval de Haroldo Lobo, que foi também gravada por
Francisco Alves: "Bota o retrato do velho outra vez / Bota no
mesmo lugar / o sorriso do velhinho / faz a gente trabalhar".
Pede deferimento
Vargas já gostava das músicas de Lupicínio antes de
ele ser sucesso nacional. Por isso, decidiu bancar a entrada do compositor na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Lupicínio, que havia cursado
só até o 3º primário, foi nomeado bedel da Faculdade de Direito, onde trabalhou
também como porteiro.
Um belo dia - conta Lôndero - Lupicínio caiu na
farra, virou a noite e saiu direto dos bares para a Universidade. O reitor deu
um flagrante nele, quando o encontrou bêbado na portaria. Deu-lhe um esporro,
publicamente, humilhando-o na frente de alunos, professores e colegas. No dia
seguinte, Lupicínio entrou com um requerimento com letra de samba, que seu
filho sabe de cor:
- Magnífico Reitor, que a tua sabedoria e soberba
não venha a ser um motivo de humilhação para o teu próximo. Guarda domínio
sobre ti e nunca te deixes cair em arrogância. Se preferires a paz
definitivamente, sorri ao destino que te fere. Mas nunca firas ninguém. Nestes
termos, pede deferimento. Assinado: Lupicínio Rodrigues, porteiro.
Não sabemos se o reitor deferiu o requerimento e a
partir de então passou a sorrir ao destino sem ferir ninguém. O certo é que
Lupicínio deixou o emprego na Universidade e foi cantar em outra freguesia, em
bares, restaurantes e churrascarias, onde aliava trabalho com boemia.
Foi ele, Lupicínio, quem compôs o hino tricolor do
Grêmio, do qual era um fanático torcedor, ganhando com isso um retrato no salão
nobre do clube. Depois do suicídio de Vargas, em 1954, Lupicínio, já consagrado
nacionalmente, continuou mantendo relações amistosas com Jango e Brizola, que
também admiravam sua música. Por conta disso, foi preso e torturado, segundo
seu filho.
Autor de grandes sucessos como "Felicidade foi
se embora", "Vingança", "Esses moços", "Nervos de
aço", "Caixa de Ódio", "Se acaso você chegasse",
"Remorso" e dezenas de outros, Lupicínio compôs "Calúnia",
cuja letra pode muito bem ter outra leitura, quando sabemos de sua prisão e a
forma como foi feita:
- Você me acusa / Mas não prova o que diz /
Você me acusa / De um mal que eu não fiz/ A calúnia é um crime / que Deus não
perdoa / Você vai sofrer / aqui neste mundo.
A letra de "Calúnia", gravada por Linda
Batista em 1958, termina com Lupicínio rogando: "Eu não quero vingança
/ A vingança é pecado / Só a Justiça Divina / Pode seu crime julgar".Mas
se prevalecer a letra de "Vingança", cantada também por Linda Batista
e depois por Jamelão, os torturadores da ditadura não terão paz e serão punidos
pela Justiça: "Você há de rolar como as pedras que rolam na
estrada, sem ter nunca um cantinho de seu pra poder descansar".
P.S. - Agradeço o carinho dos familiares e amigos
que compareceram ao lançamento e noite de autógrafos do livro ESSA MANAUS QUE
SE VAI, no Fran's Café, em Manaus.Foi um momento muito especial e aconchegante,
que se tornou possivel graças ao empenho do editor Mauro Souza.
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