domingo, 18 de julho de 2010

SOBERANIA ALIMENTAR COMO ALTERNATIVA AO AGRONEGÓCIO NO BRASIL


Por: Christiane Senhorinha Soares Campos (*) e
Rosana Soares Campos(**)
Este artigo analisa de um lado, o avanço do agronegócio no Brasil em múltiplas escalas espaciais e nas dimensões política, econômica, ideológica, e de outro lado a aliança camponesa-ambiental que se constrói em torno da luta contra o agronegócio e pela soberania alimentar. Identificando os principais problemas engendrados pela expansão do agronegócio, este trabalho propõe como alternativa o debate acerca da soberania alimentar, para garantir a viabilidade econômica da agricultura camponesa e a sustentabilidade ambiental do país.


O conceito de soberania alimentar surge na década de 1990, a partir dos movimentos sociais do campo, que discordavam das políticas agrícolas neoliberais impostas aos governos do mundo inteiro através de organismos internacionais como Organização Mundial do Comércio – OMC e Banco Mundial, que são parceiros da Organização das Nações Unidas para a Agricultura – FAO nos debates e projetos de segurança alimentar.


A Conferência Mundial de Alimentação, ocorrida em Roma, em 1974, definiu segurança alimentar como “o adequado suprimento alimentar mundial para sustentar a expansão do consumo e compensar eventuais flutuações na produção e nos preços”. Em 1983, sob impacto do fracasso da “revolução verde”, as discussões conduzidas pela FAO, Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação levam à redefinição do conceito de segurança alimentar como sendo a garantia do acesso físico e econômico das pessoas à alimentação básica que necessitavam. (Sztutman, 2006:07)


Mais recentemente na década de 1990 a FAO volta a pautar o tema da segurança alimentar incentivando governos do mundo inteiro a adotarem políticas de combate a fome uma vez que pesquisas apontavam o enorme crescimento do número de pessoas com dificuldades de acesso a alimentação.


Naquela época, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação - FAO constatou que os objetivos de erradicar a fome no mundo estavam longe de serem alcançados. As estimativas indicavam que, se nada fosse feito, ainda haveria 680 milhões de pessoas famintas no mundo ao redor do ano 2010, mais de 250 milhões na África Subsahariana (FAO, 2005[2]). (Silva et al, 2006: )


No início do século este debate foi reforçado pela ONU que lançou os objetivos do milênio elegendo como prioridade número um reduzir pela metade a pobreza extrema e a fome no mundo até 2015. Mas apesar de haver concordâncias quanto ao diagnóstico de que há muita fome no mundo e que é necessário que as nações tomem medidas urgentes para combatê-la, existem propostas bem distintas de como resolver essa questão, tanto do ponto de vista conceitual quanto empírico.


Os movimentos sociais do campo que colocaram na agenda mundial o debate da Soberania Alimentar são vinculados a Via Campesina, articulação mundial de organizações camponesas, que reúne mais de 100 milhões de camponeses e camponesas de quatro continentes (Ásia, América, África e Europa). Esses movimentos questionam o conceito de Segurança Alimentar difundido pela Fao alegando que ele se adequa muito bem as políticas neoliberais e ao agronegócio. Segundo Peter Rosset (2004), um dos intelectuais que colabora com a Via Campesina,

“Segurança alimentar significa que cada criança, cada mulher e cada homem devem ter a certeza de contar com alimento suficiente para cada dia. Porém este conceito não diz nada com respeito a procedência do alimento ou a forma como é produzido. Desse modo, Washington, pode argumentar que a importação de alimentos baratos dos Estados Unidos é uma excelente maneira que tem o países pobres de alcançar a segurança alimentar, mas sem a produção de alimentos próprios.” (citado por Campos, 2006: 155)


A crítica da Via Campesina é que as políticas de segurança alimentar se preocupam só em garantir alimentos sem se importar onde e como são produzidos e isso favorece o agronegócio e contribui para inviabilizar a agricultura camponesa, uma vez que a mera oferta de alimentos pode ser atendida através da importação ou da produção em larga escala de alguns produtos em forma de monocultura.


Além disso, na concepção da Via Campesina o conceito de segurança alimentar não questiona a qualidade dos alimentos, podem ser transgênicos ou ecológicos, e nem a padronização alimentar que está sendo imposta pelos conglomerados que atuam no setor do agronegócio.


Para se contrapor a essa forma neoliberal de garantir o acesso a alimentação a Via Campesina propõe o conceito de Soberania Alimentar que define como,

“o direito dos povos de definir usa próprias política e estratégias sustentáveis de produção, distribuição e consumo de alimentos que garantam o direito a alimentação para toda a população com base na pequena e média produção, respeitando suas próprias culturas e a diversidade de modos camponeses, pesqueiros e indígenas de produção agropecuário, de comercialização e de gestão dos espaços rurais, nos quais a mulher desempenha um papel fundamental. A soberania alimentar favorece a soberania econômica, política e cultural dos povos. Defender a soberania alimentar é reconhecer uma agricultura com camponeses, indígenas e comunidades pesqueiras, vinculadas ao território; prioritariamente orientada a satisfação das necessidades dos mercados locais e nacionais.(...)” (Declaração final do Fórum Mundial de Soberania Alimentar, assinada pela Via Campesina, Havana, Cuba/2001, citada por Campos, 2006:154/155)


A partir deste conceito de Soberania Alimentar a Via Campesina questiona a transformação dos produtos agrícolas em commodities reguladas pelas regras de mercado pois isso coloca em risco o abastecimento alimentar das populações, a diversidade alimentar dos povos e a preservação da biodiversidade. Isso porque os capitalistas se preocupam em produzir para maximizar lucros não para atender necessidades ou preservar culturas e riquezas naturais.


Quem produz, produz para quem paga mais, não importa onde ele esteja na face do planeta. Logo, a volúpia dos que seguem o agronegócio vai deixando o país vulnerável no que se refere à soberania alimentar. Como as commodities garantem saldo na balança comercial o Estado financia mais as ditas cujas. Então, mais agricultores capitalistas vão tentar produzi-las. Dessa forma, produz-se o saldo da balança comercial que vai pagar os juros da dívida externa. É o cachorro correndo atrás do próprio rabo.(Oliveira, 2003:7)


Mais do que um conceito Soberania Alimentar se transformou em uma bandeira política dos movimentos camponeses vinculados a Via Campesina, que a partir do debate conceitual evidenciam a distinção entre os dois projetos de agricultura: o do agronegócio e o do campesinato, que possui lógicas produtivas e objetivos antagônicos.


O camponês e a camponesa produzem tendo como objetivo atender as necessidades de sua família seguindo a lógica que Marx chamou de M-D-M. Ou seja, produzem mercadorias, pela venda das mesmas obtém dinheiro, com o qual adquirem outras mercadorias para atender necessidades. Esta é a lógica do valor de uso, na linguagem marxista, que se contrapõe a lógica capitalista, que se expressa na fórmula D-M-D’. Neste caso, o processo começa com dinheiro, que é aplicado na compra de mercadorias, como máquinas, matéria-prima e força de trabalho para a produção de novas mercadorias e com a venda destas obtém mais dinheiro. O objetivo aqui não é atender necessidades, é acumular capital. (Campos, 2006:158)


Como ação estratégica para impulsionar o debate e adoção de políticas nacionais com vistas a garantir a soberania alimentar a Via Campesina desenvolve várias ações entre as quais se destaca:


- Campanha Mundial das Sementes: intitulada Sementes, patrimônio dos povos a serviço da humanidade. Na prática a campanha consiste na troca direta de sementes entre camponeses e camponesas e na luta contra os transgênicos e o patenteamento das sementes. Um exemplo foi a ocupação e destruição de uma lavoura de soja transgênica em uma estação experimental da empresa Monsanto, no município de Não-Me-Toque, no Rio Grande do Sul/Brasil, promovida por pessoas de movimentos vinculados a Via Campesina durante o Fórum Social Mundial de 2001.


- Campanha Mundial por Reforma Agrária Integral: partindo do pressuposto de que para garantir a soberania alimentar dos povos a terra e as demais riquezas naturais estejam nas mãos de camponeses e camponesas que devem garantir o abastecimento alimentar preservando a biodiversidade e valorizando as culturas locais. Nesta perspectiva, muitos movimentos vinculados a Via Campesina realizam ocupações de terras, pressionam governos para alterar legislações garantindo o acesso a terra as populações camponesas e indígenas, por exemplo.


O debate da soberania alimentar possibilitou aos movimentos camponeses colocar como prioridade em suas atividades de formação e nas pautas de reivindicações temas como preservação da biodiversidade e agroecologia. E os movimentos ambientalistas através do debate de soberania alimentar estão percebendo que a preservação dos ecossistemas passa necessariamente pela luta contra a exploração mercantil das riquezas naturais, nesse sentido passaram a identificar nos movimentos sociais do campo aliados, uma vez que para o campesinato a terra é lugar onde quer viver e trabalhar, e para o capital é apenas mais um lugar para realizar investimentos e obter o máximo lucro.


Isso significa que o tema da Soberania Alimentar como alternativa ao agronegócio permitiu o início de um diálogo entre movimentos sociais e organizações ambientalistas. Disso tem resultado lutas, por exemplo, contra os transgênicos e contra as monoculturas de árvores denominadas no Brasil de Deserto Verde[3].


Nos últimos anos o tema da Soberania Alimentar vem sendo discutido em eventos que estão consolidando a aliança camponesa-ambiental. Um exemplo foi o Fórum de Resistência ao Agronegócio que, em junho de 2006, reuniu em Buenos Aires, dezenas de organizações de países latino-americanos. Outro é o Fórum de Soberania Alimentar, realizado na África em fevereiro de 2007 (em uma aldeia no interior de Mali), no qual foi estabelecida uma agenda de debates e lutas em torno do tema. Em março de 2007 as mulheres da Via Campesina do Brasil realizaram uma jornada nacional de lutas intitulada “Mulheres na luta por Soberania Alimentar, contra o Agronegócio”, durante a qual realizaram várias ações denunciando os impactos das monoculturas de cana-de-açúcar e eucalipto, por exemplo. Isso demonstra que Soberania Alimentar vem se consolidando como um instrumento analítico e político das organizações que condenam o agronegócio.


E o debate da soberania alimentar também é inovador porque mostra que os movimentos não apenas denunciam os efeitos nocivos do agronegócio, mas também propõem uma alternativa de produção agrícola que garanta viabilidade econômica da agricultura camponesa e a sustentabilidade ambiental dos países.


Algumas considerações


Ideológica e politicamente o agronegócio está conseguindo se fortalecer com apoio da mídia e da maioria dos partidos e políticos; economicamente os mercados do agronegócio apresentam cada vez mais elevadas taxas de lucros e um crescente grau de monopolização e oligopolização; espacialmente o processo de apropriação do capital no campo através do agronegócio ocorre geralmente na forma da monocultura associada a grande propriedade, combinando elevando grau de tecnificação e uso de insumos industrializados cada vez mais sofisticados.


Mas por trás das estatísticas de super-safras, das cifras de milhares de toneladas exportadas, dos gráficos de aumento de produção e produtividade de produtos do agronegócio se escondem indicadores de aumento da pobreza, da desigualdade social, do desemprego e precarização das condições de trabalho, dos conflitos no campo, de desequilíbrios ambientais, entre outros. Neste sentido é que entendemos como bastante pertinente a alternativa da Soberania Alimentar.


No Brasil a construção da soberania alimentar passa necessariamente pela realização de uma verdadeira reforma agrária e pela implementação de uma política agrícola voltada para atender as necessidades alimentares da população respeitando a enorme diversidade cultural e os vários ecossistemas do país. Evidentemente que isso não é algo simples, pois contraria o “sagrado direito de propriedade” do sistema capitalista, bem como interesses políticos e econômicos de grupos nacionais e internacionais que hoje tem hegemonia no Estado brasileiro.


Tanto que o alicerce para a expansão do agronegócio no Brasil é o Estado, que tem um papel fundamental tanto no que se refere à legislação favorável quanto de viabilização de infra-estruturas e de recursos financeiros. O que revela que, ao contrário dos jargões neoliberais, a mão do Estado segue bem visível como um esteio do processo de acumulação de capital.


O atual governo brasileiro é um dos que mais tem pautado o tema da fome na agenda de debates mundiais. Entretanto, apesar de todos os estudos mostrarem que onde avança o agronegócio cai a oferta de alimentos para a população local, as políticas públicas que o governo Lula tem implementado visando resolver a dificuldade alimentar de milhares de pessoas no país não contestam o agronegócio, pelo contrário.


O governo Lula parte do pressuposto que o problema da dificuldade de acesso a alimentos é uma mera conseqüência da desigualdade de renda não tendo nenhuma relação com a estrutura agrária e a política agrícola. Por isso entende como positiva uma política de combate a fome conduzida por um ministério específico, desvinculado dos órgãos do estado que tratam das políticas agrária e agrícola, diferentemente do que ocorre em outros países da América Latina.


Os países latino-americanos que têm debatido a instituição de uma Política de Segurança Alimentar tomam como ponto de partida, a preocupação com a oferta de alimentos e a proteção de seus agricultores. (...) verifica-se que a institucionalidade destes países acabou ficando fortemente centralizada nos respectivos Ministérios da Agricultura e Pecuária. No Brasil, acredita-se que este não é o caso, pois já foi colocado que o problema da oferta de alimentos para segurança alimentar já foi superado nas décadas passadas, e hoje o Brasil é um dos principais exportadores de produtos básicos do mundo. Os problemas agropecuários têm se resolvido no campo setorial do próprio Ministério da Agricultura. Assim, a proposta institucional do país foi distinta. Para o Brasil, avalia-se que os avanços ocorridos na implantação de ações que fortalecem a segurança alimentar foram possíveis, nos primeiros anos, devido à existência de um Ministério setorial específico, que servia como formulador e executor de políticas antes inexistentes, com orçamento e autonomia que conferiram maior agilidade, e que também efetivava a articulação na execução de alguns programas, no nível federal, estadual e municipal. (Silva et al, 2006:19)


Desse modo o mesmo governo que implementa políticas públicas de combate à fome apóia fortemente o avanço do agronegócio, que produz prioritariamente para a exportação. O resultado é que a cada ano o país exporta e importa mais alimentos. Neste contexto a soberania alimentar de fato só pode ser alcançado a partir de lutas promovidas pelos setores sociais que estão sendo prejudicados, direta ou indiretamente, pelo avanço do agronegócio, em especial as populações camponesas e indígenas, bem como a população pobre das periferias urbanas.


No conjunto dos países, mas especialmente nos da periferia ou semiperiferia capitalista, há uma tendência ao enfraquecimento do Estado Nacional e aumento do poder das corporações, sobretudo porque algumas delas têm um faturamento maior do que o PIB de muitos países.


Entretanto, essa situação não significa que o Estado deva ser desprezado como ator no contexto econômico e sócio-espacial atual. Ao contrário do que alegam as análises extremistas, de direita ou de esquerda, o Estado está longe de ser mínimo, pelo menos quando se leva em conta o processo de acumulação de capital. Tanto que continua sendo, no Brasil, a principal fonte financiadora de obras que alteram a estrutura territorial. Além disso, como diz Becker (1991, 53) “o Estado continua a ser a unidade espacial básica para a acumulação de capital, embora cumprindo um novo papel”.


E, ao que parece, o novo papel do Estado, atribuído pelos que tem poder de decisão na atual correlação de forças mundial, tende a se caracterizar pela ausência de uma política territorial vinculada a um projeto nacional. O resultado é que o capital fica cada vez mais livre para determinar os usos do território-mundo, de modo a maximizar seu processo de acumulação em escala global. A lógica privatista, que inclui o desmantelamento de serviços públicos como saúde, educação e previdência, para diminuir gastos sociais do Estado e a intensificação do papel do Estado como agente financiador de grandes investimentos privados (industriais, técnico-científicos e de infra-estrutura) são fortes indícios dessa tendência. Por isso quando se fala de estado mínimo é preciso questionar sempre: mínimo para quê e para quem?


Notas


[1] Ver a esse respeito BICKEL, 2000.
[2] FAO. Monitoring progress since the World Food Summit. Acesso realizado em outubro de 2005 (www.fao.org/wfs).


[3] O nome Deserto Verde é uma alusão ao ressecamento do clima e dos solos e a grande redução da densidade demográfica provocada pela destruição de comunidades rurais que ocorrem em áreas em que há grandes plantios de árvores como eucalipto e pinus. Esse mesmo nome também vem sendo usado recentemente para monoculturas de cana-de-açúcar que vem se expandindo de modo muito rápido. Os impactos sócio-ambientais da cana também são muito negativos e essas monoculturas tendem a crescer ainda mais motivadas pelo aumento do consumo de etanol que está sendo incentivado como alternativa aos combustíveis derivados de petróleo.
(*) Christiane Senhorinha Soares CamposPrograma de Pós-graduação em GeografiaUniversidade Federal do Rio Grande do Sul


(**) Rosana Soares CamposPrograma de Pós-graduação em Ciência PolíticaUniversidade Federal do Rio Grande do Sul



Ver Artigo na Integra


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Postagem em destaque

A IMPORTÂNCIA DA EDUCAÇÃO POLÍTICA DA CLASSE TRABALHADORA

  Sem educação política, a classe trabalhadora fica vulnerável aos discursos marginais que tenta impor no imaginário das pessoas que, a solu...