Prestes a Ressurgir
8 de outubro de 1967, data da morte de uma das principais figuras
da história latino-americana e da esquerda mundial: Ernesto Guevara, o Che.
O MARXISMO DE CHE[1]
Michael Löwy[2]
Che não foi
apenas um heroico guerrilheiro, um lutador que entregou sua vida pela
libertação dos povos da América Latina, um dirigente revolucionário que fez
algo sem precedentes na história; deixou todos seus cargos para retomar o fuzil
contra o imperialismo. Ele foi também um pensador, um homem de reflexão que nunca
deixou de ler e escrever, aproveitando qualquer pausa entra duas batalhas para
ter à mão caneta e papel. O seu pensamento faz dele um dos mais importantes
renovadores do marxismo na América Latina, talvez o mais importante desde José
Carlos Mariátegui.
Curiosamente, a
maioria das biografias sobre o Che recentemente publicadas não tratam deste
aspecto essencial de sua personalidade. Até os autores simpáticos à sua figura
não compreendem ou menosprezam sua obra marxista. Por exemplo, no belo livro de
Paco Ignacio Taibo II [Ernesto Guevara, também conhecido como Che], os escritos
de Che quando da discussão sobre a lei do valor são postos de lado como um
“labirinto de citações” inspirado em um “marxismo bíblico”. O jornalista
francês Pierre Kalfon considera o brilhante ensaio “O socialismo e o homem em
Cuba” como “um amontoado de fórmulas” inspiradas por “um dogmatismo de outros
tempos”, isto é, pelo “palavrório marxista tradicional”!
Ora, se se
ignora ou se despreza o pensamento de Che, suas ideias, seus valores, sua
teoria revolucionária, seu marxismo crítico, como compreender sua coerência de
vida, as principais razões de suas atitudes, a inspiração política/moral de sua
prática, o fogo sagrado que o movia?
Diferentemente da
maioria dos dirigentes da Revolução Cubana, Ernesto Guevara já possuía uma
formação marxista antes de aderir ao Movimento 26 de julho, no México, em 1955.
Ele descobriu o marxismo não apenas lendo Marx – graças à biblioteca de sua
companheira Hilda Gadea e de seu amigo mexicano Orfila Reynal – e Lenin, ou os
romances de Nazim Hikmet, Miguel Ángel Asturias e Jorge Icaza, mas também por
meio de sua experiência política na Guatemala, quando do golpe contra Arbenz,
vítima da CIA, da United Fruit e da traição das forças armadas.
Ele não chegou
ao marxismo pela própria experiência revolucionária, mas tratou de,
prontamente, decifrá-la recorrendo a referências marxistas, e, dessa forma, foi
o primeiro a captar plenamente o significado histórico-social da Revolução
Cubana, proclamando, em julho de 1960, que ela “descobriu também, por seus
próprios métodos, os caminhos demonstrados por Marx”[3]Porém, algum tempo
antes, em abril de 1959, ele já previa o rumo que o processo cubano tomaria
depois da queda da ditadura de Batista: trata-se – dizia Che em entrevista a um
jornalista chinês – de “um desenvolvimento ininterrupto da revolução”, até
abolir “a ordem social existente” e seus “fundamentos econômicos”.[4]
De 1959 até sua
morte, o marxismo de Che evoluiu. Ele se distanciou cada vez mais das ilusões
iniciais sobre o modelo soviético de socialismo e sobre o estilo soviético –
isto é, stalinista – de marxismo. Percebe-se, cada vez mais explicitamente,
sobretudo em seus escritos a partir de 1963, a busca de um modelo alternativo,
a tentativa de formular outra via ao socialismo, distinta dos paradigmas
oficiais do “socialismo realmente existente”. Seu assassinato pelos agentes da
CIA e por seus lacaios bolivianos, em outubro de 1967, interrompe um processo
de amadurecimento político e de desenvolvimento intelectual autônomo. Sua obra
não é um sistema fechado, um modelo acabado que possui resposta a todas às
perguntas. Sua reflexão ficou incompleta em várias questões, como, por exemplo,
a democracia sob a planificação econômica e a luta contra a burocracia.
O marxismo de Che se distingue das variantes dominantes em sua
época; é um marxismo antidogmático, ético, pluralista, humanista,
revolucionário. Alguns exemplos nos permitem ilustrar estas características.
Antidogmático:
Marx, para Che, não era um papa ungido pelo dom da infalibilidade. Em suas
“Notas para estudo da ideologia da Revolução Cubana” (1960), ele ressalta:
mesmo sendo um gigante do pensamento, o autor d’O capital cometeu erros que
podem e devem ser criticados. Por exemplo, no que toca à América Latina, sua
interpretação de Bolívar ou a análise sobre o México que realiza junto com
Engels, “em que admite determinadas teorias sobre raças ou nacionalidades que
são hoje inadmissíveis”.[5]
Entretanto, os
fenômenos de dogmatização burocrática do marxismo no século XX são mais graves
que os equívocos de Marx; em várias oportunidades, Guevara se queixou da
“escolástica que freou o desenvolvimento da filosofia marxista” – uma evidente
referência ao stalinismo – e que impediu sistematicamente, inclusive, o estudo
do período de construção do socialismo.[6]
Ético: A ação
revolucionária é inseparável de certos valores éticos. Um dos exemplos é o
trato aos prisioneiros da guerrilha: “A clemência mais absoluta o possível com
os soldados que combatem cumprindo, ou que creem cumprir, seu dever militar
(...) Os sobreviventes devem ser postos em liberdade. Os feridos devem receber
cuidados utilizando todos os recursos disponíveis”.[7]Um incidente da batalha
de Santa Clara ilustra o comportamento de Che: em resposta a um companheiro que
propôs a execução de um tenente do exército, feito prisioneiro, diz Guevara:
“Você acha que somos iguais a eles?”[8]
A construção do
socialismo também é inseparável de determinados valores éticos, diferentemente
do que advogam as concepções economicistas – de Stalin a Charles Bettelheim –
que levam em conta apenas “o desenvolvimento das forças produtivas”. Em sua
famosa entrevista ao jornalista Jean Daniel (julho de 1963), Che defendia, no
que já se constituía uma crítica implícita ao “socialismo real”, que: “O
socialismo econômico sem a moral comunista não me interessa. Lutamos contra a
miséria, mas ao mesmo tempo contra a alienação (...). Se o comunismo
desconsidera os fatos da consciência, poderá ser um método de distribuição, mas
não se constitui como uma moral revolucionária.[9]
Pluralista:
Apesar de Che não ter formulado uma concepção acabada da democracia socialista,
ele defendia a liberdade de debate no campo revolucionário e o respeito à
pluralidade de opiniões. O exemplo mais marcante é sua resposta – em um informe
de 1964 a seus companheiros do Ministério da Indústria – à crítica de
“trotskismo” feita a ele por alguns soviéticos: “Com relação a isso, creio que
ou temos a capacidade de destruir com argumentos a opinião contrária ou devemos
deixá-la se expressar (... ). Não se pode destruir uma opinião por meio da
força, pois isso interrompe todo livre desenvolvimento da inteligência. Além
disso, há uma série de aspectos do pensamento de Trotsky que pode ser levada em
conta, ainda que, como acredito, ele tenha se equivocado em seus conceitos
fundamentais e sua ação posterior tenha sido errônea (...)”[10]
Revolucionário:
Na América latina, durante anos e décadas, o marxismo serviu como justificativa
a uma política reformista de subordinação do movimento operário à aliança com
uma suposta “burguesia nacional”, com vistas a uma suposta “revolução
democrática, nacional e antifeudal” ([Victorio] Codovilla, para mencionar
apenas um nome simbólico de todo um sistema político de corte stalinista). Em
sua “Mensagem à tricontinental” (1966), Guevara cortou o nó górdio que atava
pés e mãos dos explorados: “As burguesias autóctones perderam toda sua
capacidade de oposição ao imperialismo – se alguma vez a tiveram – e constituem
apenas sua retaguarda. Não há mais mudanças a serem feitas: ou revolução
socialista ou a caricatura de revolução”[11]
Todos os
escritos e discursos marxistas de Che, de 1959 até sua morte, seja sobre a
realidade latino-americana, sobre a guerra de guerrilhas, sobre a luta
internacional contra o imperialismo, sobre os problemas econômicos de Cuba,
possuem um objetivo central, concreto e urgente: a transformação revolucionária
da sociedade.
Insistiu-se
muito sobre a teoria do foco guerrilheiro nos escritos de Che. Mas ele sabia
que a revolução social é uma tarefa não apenas de uma – indispensável –
vanguarda, mas das grandes maiorias: são “as massas (as que) fazem a história
como um conjunto consciente de indivíduos que lutam por uma mesma causa (...)
que lutam para sair do reino da necessidade e passar ao reino da
liberdade”.[12]
Humanista: A
leitura de Marx feita por Che é totalmente distinta da vulgata estruturalista,
“anti-humanista teórica”, althusseriana, que tanto se difundiu na América
Latina nos anos 1960-1970. Referindo-se ao Capital, ele escreve: “O peso deste
monumento da inteligência humana é tal que nos fez, frequentemente, esquecer o
caráter humanista (no melhor sentido da palavra) de suas inquietudes.
A crítica ao
capitalismo – sociedade na qual “o homem é o lobo do homem” –, a reflexão sobre
a transição ao socialismo, a utopia comunista de um homem novo: todos os temas
centrais da obra marxista de Che têm fundamento no humanismo revolucionário.
Sua formulação mais profunda, mais original e mais pessoal está no ensaio “O
socialismo e o homem em Cuba” (1965): “Deixe-me dizer, correndo o risco de
parecer ridículo, que o verdadeiro revolucionário é guiado por grandes
sentimentos de amor”. Sem o amor aos povos, o amor à humanidade, sem estes
sentimentos generosos “é impossível pensar num revolucionário autêntico”.[13]
A expressão
concreta, prática, ativa do humanismo revolucionário é o internacionalismo. Em
uma conversa com jovens comunistas, em 1962, Guevara insistia que o
revolucionário deve “sempre se colocar os grandes problemas da humanidade como
problemas próprios”, isto é, “deve se sentir angustiado quando, algum canto do
mundo, um homem é assassinado, e até o ponto de se sentir entusiasmado quando,
em algum canto do mundo, se levanta uma nova bandeira de liberdade”.[14] Para
além de seus erros táticos, ou mesmo estratégicos, o compromisso pessoal de Che
com a revolução no Congo e na Bolívia, arriscando sua vida, é a tradução destas
palavras em atos.
O mundo – e a
América Latina – passaram por muitas transformações nos últimos 30 anos. Não se
trata de olhar para trás e procurar, nos escritos de Che, a resposta a todos
nossos problemas atuais. Mas é fato que os povos continuam, hoje como ontem,
sob a dominação do imperialismo; que o capitalismo, em sua forma neoliberal,
continua produzindo os mesmos efeitos: injustiça social, opressão, desemprego,
pobreza, mercantilização dos espíritos. O que é ainda pior: o capital financeiro
multinacional nunca exerceu um poder tão aplastante, tão sombrio sobre todo o
planeta. O capitalismo nunca conseguiu, como o faz agora, afogar todos os
sentimentos humanos nas “águas glaciais do cálculo egoísta”. Por isso,
necessitamos, hoje mais que nunca, do marxismo do Che, de um marxismo
antidogmático, ético, pluralista, revolucionário, humanista.
No século XXI,
quando os ideólogos neoliberais – que ocupam hoje a cena política e cultural –
já estiverem esquecidos, as novas gerações ainda se recordarão do Che, e sua
estrela continuará iluminando a luta da humanidade por sua emancipação.
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[1]Tradução de Miguel Yoshida.
[2]Diretor de pesquisas no CNRS (Centre National de la Recherche
Scientifique) e dirige um seminário na École des Hautes Études en Sciences
Sociales e autor de O pensamento de Che Guevara, Editora Expressão Popular.
[3]Discurso de 28 de julho de 1960, “Para o primeiro Congresso
Latino-americano de Juventudes”, in: Ernesto Che Guevara, Obras 1957-1967, La
Habana: Casa de las Americas, 1970, v. 2, p. 392. Daqui em diante esta edição
será citada como Casa.
[4]E. Guevara, Selected Works, Cambridge, MIT Press, 1970, p. 372.
[5]“Notas para estudo da ideologia da Revolução Cubana” in: Che
Guevara – Política, São Paulo: Expressão Popular, 2011, p. 115.
[6]Casa, v. 2, p. 190. Em um discurso, em abril de 1962, sobre
Anibal Escalante e sua tentativa de stalinização do Partido Revolucionário
Cubano, Guevara destaca a íntima relação entre alienação das massas,
burocratismo, sectarismo e dogmatismo. In: Ernesto Guevara, Obra
revolucionaria, Mexico: Era, 1967, p. 333.
[7]Che Guevara, “La guerra de guerrillas”, Casa, v. 1, p. 46.
[8]Citado en Paco Ignacio Taibo II, Ernesto Guevara,também
conhecido como Che, São Paulo: Expressão Popular, 2011, p. 261.
[9]In: L’Express, 25 de julho de 1963, p. 9.
[10]Che Guevara, “Il piano i gli uomini”, Il Manifesto n. 7,
dezembro de 1969, p. 37.
[11]Casav. 2, p. 589. É impressionante o paralelo com a tese de
José Carlos Mariátegui, em 1929: “À América do Norte plutocrática, imperialista
só se pode opor de maneira eficaz uma América Latina ou ibérica socialista.
(...) O destino destes países, dentro da ordem capitalista, é o de ser
simplesmente colônias”. (J. C. Mariátegui, El proletariado y su organizacion,
Mexico, Grijalbo, 1970, p. 119-121.
[12]Casa, v. 2, p. 249, 375, 383.
[13]“O socialismo e o homem em Cuba”, in: Che Guevara – política,
ed. cit., p. 265.
[14]“O que deve ser um jovem comunista”, in: ed. cit, p. 279, 277.
FONTE: Editora Expressão Popular
Ha 47 anos Ché não mata ninguém
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