José Ribamar Bessa Freire
21/10/2012 - Diário do Amazonas
Você se
considera um (e) leitor prefulgenciado? Da resposta a esta pergunta depende os
destinos da tua cidade. No próximo domingo, dia 28, quando ocorre o segundo
turno das eleições municipais, mais de 31 milhões de eleitores voltam às urnas
para escolher os prefeitos de 50 cidades brasileiras, das quais 17 são
capitais. Apenas os eleitores prefulgenciados saberão reconhecer aquele que é,
efetivamente, o melhor candidato.
As nossas
cidades estão pedindo, implorando, prefeitos ou prefeitas que as tratem com
carinho. É o caso de Manaus. Nesta semana, em trânsito para o Rio Preto da
Eva, caminhei algumas horas pelas ruas da capital, fiquei chocado em ver como a
desordem urbana atingiu proporções inacreditáveis: Manaus está mais esburacada,
maltratada, suja, sem calçadas, com um trânsito caótico, desarborizada, com
problemas sérios na coleta do lixo e no abastecimento de água.
Nos últimos
quatro anos, Manaus apanhou mais do que mulher de malandro. A qualidade de vida
diminuiu sensivelmente. Quem reclamou, recebeu como resposta: "Então,
morra". Manaus não tem prefeito. Os eleitores que há quatro anos
escolheram Amazonino Mendes, não eram, definitivamente, prefulgenciados. Aliás,
Amazonino é a negação do prefulgenciamento. Saudades do Serafim (PSB)!
A gestão do
Amazonino foi tão ruim, mas tão ruim, que ninguém quer seu apoio, que tira
votos. A campanha da senadora Vanessa Graziottin jura que, por baixo do pano, o
atual prefeito encoraja o outro candidato, Arthur Virgilio Neto, cujos
partidários lembram que o vice de Vanessa era secretário do Amazonino. Só
eleitores prefulgenciados, seja lá o que isso signifique, podem se situar no
meio de tanta confusão. Para ajudar os (e) leitores, apresento aqui o criador
da palavra.
Ô cem fim
Na realidade,
hoje eu apenas queria comentar um livro, mas as eleições não deixaram e acabei
fazendo um gancho. Foi de lá, desse livro, que tomei emprestado o adjetivo,
criado por um mineiro do Vale do Jequitinhonha, que se autodefine como
"astrofísico, teólogo e prefulgenciado". Ele é Paulo Marques de
Oliveira, um dentista prático aposentado, de 86 anos, que nasceu em Comercinho
do Bruno e mora em Salinas (MG), um município produtor de requeijão, carne de
sol, cachaça e cultura popular vigorosa.
Paulo Marques
escreveu Ô fim do cem, fim, com o objetivo de explicar a estudantes
e adultos os fundamentos do mundo. Começou a rabiscar os cadernos nos anos 50,
na época da guerra fria, quando temia que uma bomba atômica acabasse com o
planeta. "Deus é maior. Ele pode destruir com o calcanhar quem quiser
destruir a terra dele" - ele diz.
Marina
Acúrcio, da Vereda Editora, viu os cadernos e não duvidou: fez uma edição
caprichada, com capa dura, reproduzindo as folhas dos cadernos manuscritos com
uma letra aprimorada de caderno de caligrafia e desenhos de grande beleza
gráfica, que parecem bordados a mão.
A escrita do
astrofísico prefulgenciado não se enquadra nas regras e normas da escrita
padrão, no que diz respeito à sintaxe e à grafia. É o tipo de escrita praticada
por autores que vivem predominantemente no universo da oralidade, e que ao
migrarem para o mundo da escrita, mostram seu lado transgressor. Enquanto a
escrita alfabética é linear, a escrita prefulgenciada rompe com a linearidade,
se aproximando muito da estrutura de um hipertexto.
- Ensino tudo
- diz o autor do livro.
Ele não está
exagerando. O livro é uma enciclopédia, que penetra em todos os campos dos
saberes. Numa sociedade com o saber hiperespecializado, onde o otorrino não
cuida do ouvido direito do paciente porque sua especialidade é o ouvido
esquerdo, Paulo Marques, cuja origem é o mundo não especializado, assombra
porque discorre sobre tudo. Sua temática é variada e dispersa para nossas
padrões, mas essa é a forma de se legitimar sábios enraizados na cultura
popular.
Escrita e Oralidade
O livro entra
no campo da medicina popular para nos apresentar remédios naturais e
fitoterápicos e opinar sobre doenças, sobre o parto, a anestesia, a saúde
bucal. Fala de política, religião, pedagogia, filosofia, astronomia,
agricultura, engenharia, matemática, química, história, literatura, culinária e
oscambau a quatro. Mas exibe ainda os inventos do autor: vários tipos de forno,
inclusive um deles para processar lixo, além de bateria hidrelétrica, bateria
atômica, satélite para acabar com a noite, chuveiro de água esquentada por um
lampião, camisa para não morrer afogado e por aí vai.
- Ele é um
homem que se liberta, sem censura, para não enlouquecer. Paulo Marques, como
Arthur Bispo do Rosário, expressou a sua missão de forma artística -
comenta a editora, Marina Acúrcio.
O livro e seu
autor foram celebrados recentemente por dois programas de Pós-Graduação, um da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e o outro da UNIRIO que
organizaram uma mesa-redonda, coordenada pela doutora Isabel Missagia de Mattos
(UFRRJ), com o objetivo de discutir questões relacionadas à Memória, Escrita e
Oralidade.
O evento foi
iniciado com a leitura feita por Benita Prieto de trechos do livro de Paulo
Marques, seguida das falas do antropólogo Carlos Rodrigues Brandão (UNICAMP),
que discorreu sobre Literatura, Cultura e Educação Popular, da psicóloga
Patricia Reinheimer, que abordou o tema da Arte e Saúde Mental e, finalmente,
desse locutor que vos fala, que fez uma analogia da escrita de Paulo Marques
com a dos cronistas índios dos Andes e dos atores da Cabanagem na Amazônia.
O evento se
encerrou com o lançamento do livro de Paulo Marques, uma performance de Ramon
Mello, a partir da obra Astronauta de Mim, de Rodrigo Souza Leão, e a exibição
do documentário O Fim do Sem Fim de Beto Magalhães, Cao Guimarães e Lucas
Bambozzi.
O nosso
dentista prático é um prefulgenciado, porque foi capaz de elaborar um discurso
lúcido e confuso, delirante e racional, provinciano e universal, religioso e
científico. No final do evento, sai convencido de que ou todos nos
prefulgenciamos para entender melhor o mundo e não nos deixarmos enganar,
ou estamos liquidados. Sacou agora, (e) leitor, porque só quem é prefulgenciado
pode escolher o melhor candidato a prefeito?
P.S. Na passagem por Manaus, aproveitei para visitar uma casa do
Prosamin, que só conhecia de longe. Fui lá no Parque Residencial Manaus (entre
as ruas Ramos Ferreira e Ipixuna), conversei com Everaldo Brito, presidente da
Associação dos Moradores do Parque Residencial (Ampare) e com a socióloga Lacy
da Mata, vice-presidente. Eles foram muito gentis, disponibilizando tempo para
um dedo de prosa, me convidando a percorrer os espaços interiores de uma das
casas. Voltaremos ao assunto.
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