14/10/2012 -
Diário do Amazonas
Entro no facebook. Abro uma janelinha que diz:
"Pesquise pessoas, locais e coisas". Coisas? Somente aquelas do
coração cantadas por Raul Seixas. Locais? Dispenso todos. As pessoas sim, essas
me interessam. Digito, então, o nome de uma amiga querida: Vera Sastre.
Aparecem quatro pessoas com esse nome. Qual delas é a que procuro? Vou clicando
um por um para ver.
A primeira Vera, decididamente, não é.
Parece que essa é argentina, traz acoplado outro sobrenome: Vera Sastre
Quesada. O perfil exibe a foto de uma loura, com uma máquina fotográfica e uma
frase em espanhol que provocaria risos na minha amiga: "el corazón también
se cansa de esperar, de callar y de intentar".
A foto da segunda Vera, que além de
Sastre é Gallegos, mostra uma mulher, de vestido vermelho, deitada num sofá
cama, com a perna cruzada e uns sapatos prateados, que não fazem o estilo
daquela que procuro.
Dou sorte no terceiro clique. Encontro,
enfim, a Vera vera, a Vera verdadeira. É ela, não tenho dúvidas, sobretudo
quando vejo a indicação sobre o seu livro preferido: "Fora Paulo
Coelho". É a cara da Vera. Mas o facebook desconfia de mim e, em outra
janela que abre, insiste com uma pergunta impertinente:
- Você conhece Vera?
Quem? A Verinha Porra-Louca? É claro
que conheço desde o século passado, quando o Facebook nem havia nascido.
Trabalhamos juntos no jornal O SOL. O "Porra Louca"
acabou incorporado à sua identidade, pelo menos entre os amigos, porque desde
aquela época, ela exercitava com prazer seu direito de criticar, sem qualquer
autocensura. Era absolutamente espontânea, aberta, alegre, irreverente. Dizia
tudo o que pensava com invejável liberdade. Nesse contexto, o "Porra
Louca" era uma manifestação de carinho e de admiração de todos nós.
O facebook parece admitir que eu possa
conhecê-la, mas na sugestão que a seguir me dá, faz uma ressalva - a gente
nunca sabe - com um "se" no condicional:
- Se você conhece Vera, envie uma
solicitação de amizade ou uma mensagem...
A amizade
O que o facebook não compreende é que
não adianta, é inútil enviar qualquer mensagem, porque não haverá mais
resposta. Vera Sastre, a nossa Vera, a Verinha Porra Louca, foi embora, na
última quinta-feira, deixando no Facebook 165 amigos, dois gatos na foto de
capa - um negro e outro marronzinho - e uma série de textos deliciosos no
arquivo "A Cozinha de Notícias". Deixou também muitas saudades, além
de sua filha Cândida e do documentário O Sol - Caminhando contra o
vento, dirigido por Tetê Moraes e Martha Alencar, no qual Verinha foi
personagem.
Não fui ao sepultamento no Cemitério
São Francisco Xavier, no Caju, porque só tomei conhecimento de sua morte à
noite, voltando da universidade, quando li a notícia publicada noGlobo sob
o título: OBITUÁRIO. VERA SASTRE, JORNALISTA DO 'SOL' E DA BOEMIA DO LEBLON.
A notícia informa que Vera nasceu em
janeiro de 1945, em Laranjeiras, no Rio, e que passou grande parte de sua vida
no Leblon, onde frequentava a Cobal com outros boêmios do bairro como o
jornalista Tarso de Castro, com quem trabalhou em vários projetos editoriais.
Além doSOL, Verinha foi repórter do Última Hora e,
depois, passou por várias redações: Tribuna da Imprensa, Manchete, O
Estado de São Paulo, Jornal do Brasil, Veja, Contigo, Caras e O Globo.
Por isso, entre os seus amigos há
muitos jornalistas, vários atores, músicos, gente de teatro e cinema e
produtores culturais, entre os quais Ana Arruda Callado, Martha Alencar, Elaina
Daher,Geísa Teixeira Melo, João Rodolfo Prado, Thereza Christina Pereira Jorge,
Iná Meirelles, Celso Barata, Cláudio Jaguaribe, Léa Penteado, Sérgio Caldieri,
Joyce Pascowitch, André Mota Lima, Luis Carlos Maciel, Noilton Nunes, Ana Maria
Magalhães, Walcyr Carrasco, Tânia Malheiros e tantos outros.
Verinha, atacada por um câncer,
trabalhou como free-lancer até quando pôde. Há menos de um ano, em novembro do
ano passado, me procurou porque queria contatos em Manaus para fazer uma
matéria. Ela soube, não sei por quais canais, que havia um conhecido empresário
no Amazonas que traficava com armas e estava metido com contrabando e outros
negócios escusos. Creio que a doença não deixou que a entrevista fosse feita.
- Riba, só quero fazer uma perguntinha
pra ele. Basta fazer a pergunta, lembra?
Faz a pergunta
Lembro sim. Já contei essa história em
outro lugar. Resumo aqui. A Vera se referiu a uma entrevista coletiva de Nelson
Rockefeller, que veio ao Rio de Janeiro para falar sobre economia e sobre as
relações do Brasil com os Estados Unidos. O editor de "Problemas
Brasileiros", Otto Maria Carpeaux, sugeriu que eu tentasse alguma
declaração exclusiva para O SOL. Manifestei à Verinha
preocupação por causa da precariedade do meu inglês. Ela me aconselhou:
- Faz a pergunta e o Rockfeller que se
vire.
Dito e feito. Depois da coletiva,
encarei o banqueiro americano e mandei ver no meu inglês macarrônico:
- What do you
think about Vietnam War?
Se ele articulasse uma resposta densa,
eu estaria perdido. Felizmente, o gringo abanou os braços dizendo algo que eu
podia entender muito bem:
- No! No! No!
No dia seguinte, a manchete do SOL foi
algo assim como: ROCKFELLER SE RECUSA A FALAR SOBRE A GUERRA DO VIETNAME.
Verinha insistia que, numa entrevista,
o fundamental é fazer a pergunta. Uma vez formulada, a coisa anda sozinha. Ela
não teve tempo de formular a sua pergunta para o mercador de armas do Amazonas.
Estivemos juntos, pelo menos duas
vezes, no cemitério. Uma delas foi para dar adeus ao poeta Félix de Athayde,
que morreu em1995, aos 63 anos. Havíamos trabalhado com ele nos jornais O
Paiz e Correio da Manhã, com ele fizemos amizade,
admirávamos sua poesia, ele que havia cantado a luz de Olinda, sua cidade
natal, e "a Pátria que me pariu".
Na nossa geração, quando tínhamos vinte
anos, todos nós éramos imortais, ninguém morria. Agora, semana sim, outra
também, um amigo se despede. Se o facebook permitisse, eu faria uma pergunta
para a Verinha Porra Louca, ela que se vire para responder:
- Tem certeza de que já era hora de
partir, levando com você pedacinhos de todos nós? Ou será que nós, que aqui
ficamos, é que estamos retardando nossa partida?
P.S. - Link para O DIA EM QUE
ENTREVISTEI ROCKFELLER - http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=214
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