José Ribamar Bessa Freire
13/05/2012 - Diário do Amazonas
Éramos
três amazonenses solitários exilados no Peru nos anos 1970: o
titiriteiro Euclides Souza, o antropólogo Felipe Lindoso e este locutor
que vos fala. A gente juntava as panelas aos domingos para comer
"paiche" (pirarucu) ou "palometa" (pacu), comprados na Casa Charapa, uma biboca que vendia produtos amazônicos no bairro popular de La Victoria,
em Lima. Ouvíamos, então, Chico Buarque, Gil, Caetano, Vandré e
Martinho da Vila, falávamos mal da ditadura, fazíamos planos de regresso
à pátria e - enquanto isso não acontecia - matávamos as saudades
culinárias com farinha do Uarini e pimenta murupi que dona Amine mandava
de Manaus.
Num desses
domingos amazônicos em que sonhávamos com o socialismo, chegou um
quarto integrante: o poeta Thiago de Mello, que morava na Alemanha e
passou por Lima como um meteoro. Tudo bem: os três mosqueteiros também
eram quatro.
Thiago trouxe
para o almoço dominical um amigo, exilado, em cuja casa se hospedara: o
maranhense Neiva Moreira, recém-chegado do Uruguai, de onde viera para
residir em Lima. Foi assim que conhecemos um dos mais divertidos
contadores de história.
Neiva, o
nova-iorquino, cativou a todos nós, narrando a própria vida. Filho do
quitandeiro Tonico e da professora Luzia, ele contou que nascera na
data certa: 10 de outubro de 1917, dia da tomada do Palácio do Inverno,
na Rússia. Não havia data melhor para um defensor do socialismo moreno.
"Fui parido na mesma hora em que a revolução russa" - dizia - "durante
os dez dias que abalaram o mundo". Mas o lugar é que foi errado: Nova
Iorque, uma cidadezinha com cheiro de imperialismo, no interior do
Maranhão, divisa com o Piauí, às margens do rio Parnaíba. Tinha até,
como sua homônima ianque, a ponte do Brooklyn - uma precária pinguela
de madeira ligando Manhatan - a prainha do lago à praia do Caju.
Brinde de lavanda
Entre um pacu e outro, regado a goles de pisco acholado -
que ninguém é de ferro - Neiva, que era um bom garfo, nos ofereceu um
brinde de lavanda e uma crepe Suzette, que agora compartilho com vocês.
Foi assim. De família pobre, depois de atuar como repórter em alguns
jornais do Maranhão - O Pacotilha e o Diário do Povo - ele
migrou para o Rio de Janeiro com uma carta para Assis Chateaubriand,
dono dos Diários Associados, que o contratou imediatamente com o
salário mínimo, com o qual mal sobrevivia.
A revista O Cruzeiro,
naquele momento, encerrava uma grande campanha para ajudar as vítimas
das chuvas e das enchentes que castigavam a região sudeste.
Chateaubriand promoveu, então, um senhor banquete no Hotel Glória,
homenageando os principais doadores, entre os quais o Seu Manoel, um
fazendeiro português do interior de Minas Gerais, que presenteara O Cruzeiro com
nada mais nada menos que um helicóptero usado para transportar vítimas
e donativos. Por isso, no banquete, ele aterrissou em lugar nobre,
sentado ao lado do próprio Chatô.
Os discursos
se prolongaram antes da comida. Seu Manoel, homem simples, do campo,
não tirava os olhos da tigela de prata que estava à sua frente, na
mesa, em um prato sobre uma toalhinha. Dentro dela, água, cheirando a
hortelã, com uma rodela de limão e duas pétalas de rosa. Era para lavar
as pontas dos dedos, antes de encarar o hors d'oeuvre. O
portuga, que desconhecia aquela presepada, não esperou terminarem os
discursos para saciar sua sede. Pegou a tigela e gute, gute, bebeu toda a
água. Os risinhos dissimulados dos presentes foram cortados por
Chateaubriand:
- Está geladinha, Seu Manoel?
Chateaubriand
não esperou resposta. Propôs um brinde ao fazendeiro, levantando a sua
tigela e bebendo, ele também, a água de lavar os dedos, sendo
acompanhado por todos os puxa-sacos presentes, incluindo o Neiva, que
não era puxa-saco, mas estava com muita sede e pensou que aquilo era
mesmo água de beber, camará.
Quando o
garçom passou com o menu, Neiva, na maior pindaíba, com uma fome
nordestina, de retirante, leu e não entendeu bulhufas. Só tinha pratos
franceses. Ficou na moita. O cidadão, sentando à sua direita, com um ar
de entendido, pediu uma "bouillabaisse" de Marselha. Sem saber que
diabo era aquilo, Neiva confiou:
- Pra mim, o mesmo.
Logo depois,
serviram-lhe uma sopa de peixe, que não era tão deliciosa como a
caldeirada de camarão com pirão da Base do Germano, nem tinha o
refinamento do arroz-de-cuxá, mas "deu pra quebrar o galho " - admitiu
Neiva, reconhecendo que seu vizinho à mesa tinha gosto apurado.
Veio a hora
da sobremesa. Outro menu complicado. Neiva procura um doce de bacuri ou
de buriti, uma compota de jaca, um não-me-toques, uma mãe benta, um
quindim de iaiá, um papo-de-anjo, uma baba de moça ou uma reles cocada.
Necas de pitibiribas! A lista era ameaçadora, cheia de nomes
intraduzíveis, que não davam sequer para suspeitar do que se tratava: mille-feuilles, clafoutis, petit gâteau, madeleine, bûche de Noel, creme brûlée, profiteroles.
Ele esperou que o vizinho sentado à sua direita escolhesse, para
imitá-lo. Mas o cara era diabético e declinou, da mesma forma que o
vizinho da esquerda.
Crepe Suzette
Desamparado,
não querendo perder a boca livre, Neiva percorreu outra vez a lista e
se deteve sobre algo que lhe pareceu familiar e pronunciável. Audacioso,
pediu:
- Crepe Suzette!
E justificou para nós, que ouvíamos sua história:
- Nunca havia
visto aquele nome. De qualquer forma, crepe é crepe em qualquer lugar
do mundo, tem crepe até de tapioca. E Suzete era o nome de uma tia
minha que morava em Tirirical.
Serviram a
sobremesa para todo mundo, e nada de chegar o pedido do Neiva. No
final, mais discursos. Finalmente, aos 45 minutos do segundo tempo, sai
da cozinha o chef, todo de branco, avental, dólmã de manga longa
branca, chapelão viscoso, luvas, ladeado por dois acólitos - um
copeiro e um ajudante de cozinha, igualmente paramentados. Os três
empurram um enorme carrinho, lentamente, como se fosse um andor, numa
procissão, em direção a Neiva, que ficou gelado. O orador calou, o
salão todo parou para acompanhar o ritual.
- Foi o senhor que pediu Crepe Suzette? - perguntou o chef,
num tom intimidante, de policial fazendo interrogatório, que soava
quase como uma acusação. Neiva, já arrependido, não tinha como negar.
Confessou a culpa, gemendo:
- Foi.
O final foi apoteótico. O chef,
ajudado pelos acólitos, dobrou a massa em quatro, misturou licores
diversos com perfume de sumo de tangerina e de raspa de laranja amarga,
regou tudo com um cálice de cointreau, acendeu um fósforo e
incendiou o prato fazendo um pequeno estrondo: bum! A massa murchou,
encolheu, ficou uma titicazinha de nada. Serviram aquilo em chamas. Era
fogo de palha. Tinha mais pompa no nome do que no prato.
- Qual era o gosto, Neiva?
- Rapaz, a quantidade era tão insignificante que nem deu para sentir.
As histórias
contadas por Neiva Moreira faziam a gente se dobrar de rir. Quem teve o
privilégio de ouvi-lo, sabe disso. Ele narrava sua entrevista com o
então presidente do Peru, Juan Velasco Alvarado, um general diferente,
simpático, nacionalista, que adorava falar palavrões. Neiva o imitava
com perfeição, contrapondo-o ao general de De Gaulle, na Franca, cujas
entrevistas coletivas eram exatamente o oposto.
Quando foi lançado em Lima o livro de Neiva Moreira sobre o modelo peruano, o Diretório Acadêmico da centenária Universidad Nacional Mayor de San Marcos
o convidou para uma noite de autógrafos e palestra. Os estudantes
estavam divididos em dezenas de facções e tendências. As duas mais
importantes eram dissidências maoistas que viviam se digladiando, numa
disputa acirrada pelo controle da associação estudantil: Bandera Roja, de um lado, e Pátria Roja, de outro.
Na véspera, os autores do convite, que eram bandeiristas, procuraram Neiva para combinarem como seria feito sua segurança. - Segurança pra quê? - ele perguntou. "Nosostros, cuando invitamos, garantizamos la integridad física del invitado. No somos como la gente de Pátria Roja"-
lhe disseram. Contaram que o ex-guerrilheiro Héctor Bejar no mês
anterior havia levado uma surra, porque o público discordou do conteúdo
de sua palestra.
Neiva nos
contou que se escafedeu e declinou do convite, seguindo seu instinto de
sobrevivência. Suas histórias sobre Heber Maranhão, um engenheiro,
também exilado, que foi dirigente da Rede Ferroviária Federal no
governo Jango, são deliciosas, especialmente a transformação de Heber
em um dos maiores especialistas em PERT, uma técnica de gestão e
controle de projetos. Mas meu espaço terminou. Fica para outra vez.
Na madrugada
do dia 10 de maio de 2012, aos 94 anos, morreu em São Luis o jornalista
e ex-deputado Neiva Moreira, que assessorou o ex-governador Jackson
Lago na luta contra a podridão dos Sarney. A presidenta Dilma Rousseff,
em nota oficial, falando em nome de todos os brasileiros, lembrou que
ele foi um dos fundadores do PDT e que a política brasileira perdeu "um
de seus mais expressivos líderes".
Com ele,
perdemos, um certo modo decente de fazer política e, sobretudo, um jeito
de contar histórias, que nos divertia com seus 'causos', com absoluto
domínio de palco, muito fair play e manejo das técnicas narrativas. Que
descanse em paz!
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