Escrito por Rodolfo Salm
Um dos Canteiros da Obra de
Belo Monte
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Faz mais de dez anos, desde a
edição 261 de setembro de 2001 do Correio da Cidadania (Hidroelétricas
do Xingu), que escrevo sobre “o potencial destrutivo das hidrelétricas do
Xingu”. É engraçado ver que na época escrevi que “não é preciso ser muito
pessimista para concluir que são pequenas as chances de se evitar o início das
obras, que estão previstas já para o primeiro trimestre do ano que vem” (2002)!
E que a barragem de Belo Monte seria “o maior golpe dado pelo governo FHC nos
povos indígenas da Amazônia e, consequentemente, na floresta que eles
protegem”, fazendo com que “o padrão de degradação ambiental generalizada, que
se observa mais a leste na região, seguindo o curso do rio Tocantins, se
alastre definitivamente pela bacia do Xingu”. Mas concluí que ainda havia
esperança, pois ambientalistas aliados aos índios, organizados em ONGs,
ganhavam “importante participação na política nacional” e seu trabalho seria
testado “pela sua capacidade de discutir com a sociedade a preservação da
floresta Amazônica” e se opor ao projeto de Belo Monte.
Relendo esse texto é engraçado
ver que Belo Monte não foi exatamente um “golpe do governo de FHC”. Ao
contrário, essa trágica barragem no rio Xingu aparentemente vai ficar para a
história como uma obra de Lula (e Dilma), supostamente seu antagonista.
Evidentemente, hoje está claro que o tucano e o petista não são tão diferentes e
um é mais a continuação do outro do que seu opositor. Mas, na época, eu nutria
grande esperança quanto à primeira eleição vitoriosa do operário do PT, que
tinha o apoio dos ambientalistas.
Felizmente, as obras da barragem demoraram bem mais para começar do que eu imaginava na época. E isso ilustra um ponto importante. Por mais “inevitáveis” que essas obras possam parecer, atrasá-las já é uma vitória. Porque não se iludam, a “meta” dos barrageiros do mundo todo é barrar todos os rios do planeta e não vão descansar enquanto houver algum pedaço de água correndo livremente. Então, qualquer atraso nesse programa já pode ser comemorado. Quanto mais demorar a conclusão de Belo Monte, mais demorará a construção da próxima barragem rio-acima no Xingu. Que seria seguida por outra e mais outra, e mais outra, até que não sobre mais nem um pedaço de Xingu livre. Infelizmente, as previsões da instalação de um “padrão de degradação ambiental generalizada” se alastrando “definitivamente pela bacia do Xingu”, a que me referi no tal artigo, foram mais acertadas.
Felizmente, as obras da barragem demoraram bem mais para começar do que eu imaginava na época. E isso ilustra um ponto importante. Por mais “inevitáveis” que essas obras possam parecer, atrasá-las já é uma vitória. Porque não se iludam, a “meta” dos barrageiros do mundo todo é barrar todos os rios do planeta e não vão descansar enquanto houver algum pedaço de água correndo livremente. Então, qualquer atraso nesse programa já pode ser comemorado. Quanto mais demorar a conclusão de Belo Monte, mais demorará a construção da próxima barragem rio-acima no Xingu. Que seria seguida por outra e mais outra, e mais outra, até que não sobre mais nem um pedaço de Xingu livre. Infelizmente, as previsões da instalação de um “padrão de degradação ambiental generalizada” se alastrando “definitivamente pela bacia do Xingu”, a que me referi no tal artigo, foram mais acertadas.
De lá para cá, Altamira se
tornou o município que mais desmata em toda a Amazônia brasileira. E essa
devastação está apenas começando. As previsões são de que nos próximos vinte
anos praticamente toda a floresta fora de unidades de conservação em um raio de
100 km da usina será devastada. E quase não há unidades de conservação por
aqui. A tal “aliança das ONGs com os índios na luta contra a barragem” se
revelou um fiasco. As ONGs dependem demais de financiamentos públicos e de
grandes grupos empresariais interessados na construção de Belo Monte para ter
qualquer ação efetiva. E também morrem de medo de serem processadas. Já os
índios da região foram escancaradamente comprados pelos barrageiros com os
novos “espelhinhos” modernos, na forma de milhares de litros de gasolina e
refrigerante “grátis”, cestas básicas e outros presentinhos do gênero. Depois,
quando acalmar os índios não for mais necessário, eles serão abandonados à
própria sorte, como é tradição em nosso país há quinhentos anos.
É irônico que passado todo este
tempo escrevendo mais ou menos regularmente sobre o assunto para o Correio,
quando as obras de fato começaram, eu esteja há tantos meses sem escrever sobre
o assunto. Em 2001, ano em que escrevi aquele primeiro artigo sobre as
barragens, eu morava na Inglaterra, onde fazia meu doutorado sobre a ecologia
da floresta amazônica. Convidado a escrever novamente sobre o tema para o
Correio, lembro-me que tive dificuldades para isso, pois de tão longe que estava
do Xingu faltavam idéias para me inspirar. Passada uma década, meu bloqueio
atual vem justamente do motivo contrário. Hoje moro em Altamira, na beira do
Rio Xingu, e Belo Monte afeta (negativamente) inúmeros aspectos da minha vida.
E nem sempre é fácil escrever sobre isso.
Hoje, para mim, falar mal de
Belo Monte é criticar meus vizinhos de um lado e de outro que vivem da
indústria do desmatamento e da construção da barragem. E de biólogos, colegas
de profissão que, querendo ou não, legitimam os programas de “resgate” da vida
selvagem, e de compensações ambientais, que são essencialmente ilusórios.
Coisas “para inglês ver”. A construção de Belo Monte afetou a vida de todos por
aqui, primeiramente ao aumentar a níveis astronômicos os preços dos aluguéis (eu
mesmo, no momento, vivo sob a ameaça de despejo). Claro que milhares de casas
deveriam ter sido feitas com antecedência na cidade pelo consórcio construtor
da barragem para os trabalhadores que estão chegando.
Mas para que se preocupar com
isso se é mais fácil desalojar os moradores da cidade? Para as empresas que
estão chegando não custa nada pagar cinco ou seis vezes mais pelo aluguel de
casas na cidade do que os seus antigos moradores. Também aumentaram os preços
dos alimentos, das corridas dos táxis etc.
Enquanto escrevo, faz quatro
dias que não cai água da rua na caixa, porque o sistema de distribuição da
cidade, que já era precário, entrou em colapso quando a população da cidade
praticamente dobrou ao longo do último ano. Entre os mais ricos, todos têm água
de poço. Então, isso não é problema dele, o resto da cidade que se vire. Hoje
mesmo, se quiser tomar banho, provavelmente vou ter que ir nadar no rio. Ainda
bem que ainda temos o rio! Mas já estão tratando de acabar com ele. Energia
elétrica, agora, com o aumento repentino da demanda, também falta com cada vez
mais frequência. E isso significa noites intermináveis de mosquitos e calor. É
irônico que, por causa justamente deste projeto de produção de eletricidade, a
nossa cidade termine tantas vezes sem ela. Se a eletricidade é tão importante
como não cansam de dizer os barrageiros (mais do que a água ou até do que o
clima do planeta), bem que podiam ter reformado a rede de fornecimento da
cidade para que ela não faltasse tanto em Altamira. Aliás, apesar de bem mais
grave por aqui, esse é um problema nacional, pois estamos mais ameaçados pela
falta de energia elétrica por falhas na distribuição do que na geração. Mas
nada disso tem importância, desde que não afete o bom andamento das obras e
seus grandes negócios associados.
A construção de Belo Monte
também transformou completamente o outrora pacato trânsito da cidade. É difícil
acreditar, mas caminhões e ônibus a serviço das empresas construtoras trafegam
em alta velocidade nas estreitas ruas da cidade, ameaçando e freqüentemente
matando seus moradores. O povo aqui é tão acostumado com a antiga tranquilidade
das ruas que frequentemente vemos famílias inteiras, pai, mãe e bebê
recém-nascido andando numa mesma bicicleta. São esses que mais estão morrendo
no trânsito. É o sangue derramado de Belo Monte, que não sai em rede nacional.
Além disso, as filas nos bancos tornaram-se impraticáveis, e os assaltos a
residências se multiplicaram (também sofri vários nos últimos tempos).
Assim como se multiplicaram as
zonas de prostituição que são a contrapartida da vinda de milhares de homens
sem família para a cidade. A cada dia há notícias da inauguração de uma nova
“boate” na cidade. Também aumentaram os casos de violência contra crianças.
Isso tudo vem em um único grande pacote de mega-construções como Belo Monte. As
medidas mitigatórias e compensatórias são ilusórias, insignificantes ou existem
somente no papel para justificar politicamente a violência contra essa região.
A recente diminuição na
frequência dos meus artigos para o Correio também coincide com o esfriamento do
movimento de oposição à barragem em Altamira. Com tantas transformações para
pior que aconteceram por aqui, era de se esperar que, com o início das obras,
as manifestações contrárias a ela aumentassem. Não. Ao contrário, elas cessaram
quase que completamente. Quase todo mundo na cidade trabalha de uma forma ou de
outra para a barragem (o que é claro que seria bom, se não fossem atividades
profissionais tão efêmeras e destrutivas). Há um desânimo generalizado dos que
são contra, como se finalmente agora a barragem fosse realmente inevitável.
Porém, gente contra não falta. Inclusive muita gente que defendia a obra já
percebeu que não vai enriquecer e que a coisa toda foi uma grande furada. Mas cidade
está totalmente dominada.
Mais do que nunca, existe hoje
um bloqueio na mídia local e nacional contra qualquer notícia que afete Belo
Monte. Há pouco mais de um ano nós, os opositores, tínhamos alguma atenção da
mídia local e até nacional, que nos procurava na universidade para falar sobre
as perspectivas das obras e de seus problemas ambientais. Isso acabou
completamente. Recentemente, até fui procurado por uma repórter do SBT local
para falar sobre assuntos ambientais supostamente não relacionados à barragem
(a seca que cada ano é mais forte na região e sua relação com os
desmatamentos), mas ela já me adiantou de início: “não adianta falar mal de
Belo Monte porque não sai nada”.
Viver na orla do cais de
Altamira, ao longo dos últimos quatro anos, tem sido uma experiência
interessante para entender as contradições do Brasil de hoje. Se por um lado as
manifestações contra a barragem que me acostumei a ver da porta de casa
acabaram, por outro lado agora vejo com frequência manifestações dos operários
da obra, sempre envoltos com ameaças de greve, exigindo aumento no
auxílio-alimentação e a redução de seis para três meses no intervalo entre as
visitas dos trabalhadores a seus estados de origem. Quando as primeiras greves
estouraram, achei lindo ver todos aqueles ônibus parados e os operários de
braços cruzados, porque, quanto mais demorar essa obra, por mais tempo terei o
Xingu vivo na frente de casa. Os mesmos policiais e a mesma Força Nacional que
antes se voltavam contra nós, opositores da barragem, agora se voltam contra os
seus trabalhadores.
Apesar de certo desânimo para
escrever, tenho que admitir que me sobram “ganchos” excelentes para começar um
artigo para o Correio. Em janeiro, por exemplo, foi amplamente anunciada a
construção de uma ensecadeira no rio Xingu (Construção
de ensecadeira marca início das obras de Belo Monte no leito do Xingu). A
ensecadeira é um barramento rústico, de pedras e terra, que cria um desvio no
rio necessário para a construção da barragem. Fazê-lo em janeiro, no auge da
época de elevação do nível do rio, e não na seca, quando isso seria obviamente
mais fácil, foi uma operação ousada. O que não foi publicado em lugar nenhum é
que o rio superou essa barreira e desapareceu para todo o sempre com uma série
de caminhões e outras máquinas, levados pela corrente para o fundo do seu leito
profundo. Ainda que pequena e momentânea, foi uma gloriosa vitória do rio
Xingu. Que merecia ser divulgada e comemorada!
Rodolfo Salm, PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, é professor da UFPA (Universidade Federal do Pará) em Altamira, e faz parte do Painel de Especialistas para a Avaliação Independente dos Estudos de Impacto Ambiental de Belo Monte.
Rodolfo Salm, PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, é professor da UFPA (Universidade Federal do Pará) em Altamira, e faz parte do Painel de Especialistas para a Avaliação Independente dos Estudos de Impacto Ambiental de Belo Monte.
Rodolfo, nasci na cidade de Uberlândia-MG e cheguei em Marabá aos 11 anos em 1981. Conheci as águas do Tocantins tão limpidas que dava para ver os cardumes de todas as espécies de peixes nadando. Nadei de um lado para o outro em águas que na minha inocência nunca mudaria, alguns anos depois veio a realidade a Usina de Tucuruí e hoje meu caro, deparo-me com mais uma outra realidade que em seu texto refleti; já se falam em mais uma Barragem aqui em Marabá a apenas 250 km da primeira rio acima. Daqui a mais ou menos 20 anos deverão estar se discutindo a construção de mais uma lá pelas bandas do Rio Araguaia pelas bandas da cidade de são Geraldo do Araguaia. Não consigo ver uma saída para conseguirmos convencer o nosso povo, isso mesmo o nosso povo, pois depois de tantos anos me considero um membro desta família PARAENSE e filho desta terra que recepcinou-me muito bem juntamente com seus moradores.
ResponderExcluirAbraços e compartilhamos juntos de que existem outros métodos de produzirmos eletricidade sem atacarmos nosso ecosistema.