José Ribamar
Bessa Freire
27/05/2012 -
Diário do Amazonas
"Índio quer tecnologia" -
berra O Globo, em chamada de primeira página (25/05). Lá está
a foto de um guerreiro Kamayurá, que usa um iPhone para fotografar o terreno da
Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, onde será
construída a aldeia Kari-Oca que vai sediar eventos paralelos da Conferência
Rio + 20. Ele viajou de barco e de ônibus, durante três dias, com mais vinte
índios do Alto Xingu, de quatro nações diferentes. Chegaram na última
quinta-feira, para construir a aldeia Kari-Oca que vai sediar eventos paralelos
da Conferência Rio + 20.
Na aldeia que eles vão construir
formada por cinco ocas - uma delas será uma oca eletrônicahight tech - mais
de 400 índios que vivem no Brasil, discutirão com índios dos Estados Unidos,
Bolívia, Peru, Canadá, Nicarágua e representantes de outros países temas como
código florestal, demarcação de terras, reservas minerais, crédito de carbono,
clima, usinas hidrelétricas, saberes tradicionais, direitos culturais e
linguísticos. No final, produzirão um documento que será entregue à ONU no dia
17 de junho.
Embora a notícia contenha informações
jornalísticas, O Globo insiste em folclorizar a
figura do índio. Em pleno século XXI, o jornal estranha que índios usem iPhone,
como se isso fosse algo inusitado. Desta forma, congela as culturas indígenas e
reforça o preconceito que enfiaram na cabeça da maioria dos brasileiros de que
essas culturas não podem mudar e se mudam deixam de ser "autênticas".
A imagem do índio "autêntico"
reforçada pela escola e pela mídia é a do índio nu ou de tanga, no meio da
floresta, de arco e flecha, tal como foi visto por Pedro Alvares Cabral e
descrito por Pero Vaz de Caminha, em 1.500. Essa imagem ficou congelada por mais
de cinco séculos. Qualquer mudança nela provoca estranhamento.
Quando o índio não se enquadra nesta
representação que dele se faz, surge logo reação como a esboçada pela
pecuarista Katia Abreu, senadora pelo Tocantins (PSD, ex-DEM): "Não
são mais índios". Ela, que batizou seus três filhos com os nomes de Irajá,
Iratã e Iana, acha que o "índio de verdade" é o "índio de
papel", da carta do Caminha, que viveu no passado, e não o "índio de
carne e osso" que convive conosco, que está hoje no meio de nós.
Na realidade, trata-se de uma manobra
interesseira. Destitui-se o índio de sua identidade com o objetivo de liberar
as terras indígenas para o agronegócio. Já que a Constituição de 1988 garante
aos índios o usufruto de suas terras - que são consideradas juridicamente
propriedades da União - a forma de se apoderar delas é justamente negando-se a
identidade indígena aos que hoje as ocupam. Se são ex-índios, então não têm
direito à terra.
Criou-se, através dessa manobra, uma
nova categoria até então desconhecida pela etnologia: a dos
"ex-índios". Uma categoria tão absurda como se os índios tivessem
congelado a imagem do português do século XVI, e considerassem o escritor José
Saramago ou o jogador Cristiano Ronaldo como "ex-portugueses", porque
eles não se vestem da mesma forma que Cabral, não falam e nem escrevem como
Caminha.
O cotidiano de qualquer cidadão no
planeta está marcado por elementos tecnológicos emprestados de outras culturas.
A calça jeans ou o paletó e gravata que vestimos não foram inventados por
brasileiro. A mesa e a cadeira na qual sentamos são móveis projetados na
Mesopotâmia, no século VII a. C., daí passaram pelo Mediterrâneo onde sofreram
modificações antes de chegarem a Portugal, que os trouxe para o Brasil.
A máquina fotográfica, a impressora, o
computador, o telefone, a televisão, a energia elétrica, a água encanada, a
construção de prédios com cimento e tijolo, toda a parafernália que faz parte
do cotidiano de um jornal brasileiro como O Globo - nada disso
tem suas raízes em solo brasileiro. No entanto, a identidade brasileira não é
negada por causa disso. Assim, não se concede às culturas indígenas aquilo que
se reivindica para si próprio: o direito de transitar por outras culturas e
trocar com elas.
Foi o escritor mexicano Octávio Paz que
escreveu com muita propriedade que "as civilizações não são fortalezas,
mas encruzilhadas". Ninguém vive isolado, fechado entre muros.
Historicamente, os povos em contato se influenciam mutuamente no campo da arte,
da técnica, da ciência, da língua. Tudo aquilo que alguém produz de belo e de
inteligente em uma cultura merece ser usufruído em qualquer parte do planeta.
Setores da mídia ainda acham que
"índio quer apito". Daí o assombro do Globo, com o uso do
iPhone pelos Kamayurá, equivalente ao dos americanos e japoneses se anunciassem
como algo inusitado o uso que fazemos do computador ou da televisão:
"Brasileiro quer tecnologia".
O jornal carioca, de circulação
nacional, perdeu uma oportunidade singular de entrevistar integrantes do grupo
do Alto Xingu, como Araku Aweti, 52 anos, ou Paulo Alrria Kamayurá, 42 anos,
sobre as técnicas de construção das ocas. Eles são verdadeiros arquitetos e
poderiam demonstrar que "índio tem tecnologia". O antropólogo Darell
Posey, que trabalhou com os Kayapó, escreveu:
“Se
o conhecimento do índio for levado a sério pela ciência moderna e incorporado
aos programas de pesquisa e desenvolvimento, os índios serão valorizados pelo
que são: povos engenhosos, inteligentes e práticos, que sobreviveram com
sucesso por milhares de anos na Amazônia. Essa posição cria uma “ponte
ideológica” entre culturas, que poderia permitir a participação dos povos
indígenas, com o respeito e a estima que merecem, na construção de um Brasil
moderno”.
Esses são os índios do século XXI. A
mídia olha para eles, mas parece que não os vê.
Brilhante!
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