José Ribamar Bessa Freire
03/06/2012 - Diário do
Amazonas
Diz que é assim: quem invento a
bola foram os índios Kamaiurá, muito antes de Cristo nascer. Diz que é assim:
três milênios antes de o Brasil sediar a Copa do Mundo de 2014, os Kamaiurá já
batiam um bolão com uma bolinha feita com leite de mangaba, que eles confeccionavam,
fervendo e moldando a resina como uma esfera até endurecer. Essa pequena bola
de borracha, branca, oca por dentro, era elástica e quicava quando batia no
chão. Com a bola, eles inventaram o jogo e suas regras, os campeonatos e
até o estádio.
Diz que é assim: muitos, mas
muitos séculos antes de ser edificado o Maracanã, essa bola já rolava ali no
Xingu, num "campo de bola" denominado mangawa rape. Esse
- chamemos assim - "Mangabão" ficava localizado em lugar nobre,
bem no centro do pátio da aldeia e estava delimitado nas laterais por duas
linhas curvas e opostas. Era lá que promoviam o mangawa apitap, um
"jogo de bola" disputado entre dois times, em competição intertribal
ou como treino e diversão.
No "jogo de bola"
Kamaiurá, inventado antes, mas muito antes de os ingleses bolarem o jogo de
futebol, cada time entra em campo com seis ou oito jogadores, que ficam em
fila, afastados um dos outro em cerca de um metro, obedecendo a várias regras.
- Pode chutar a bola ou pegá-la
com a mão, Arnaldo?
- Não! A regra é clara! No
"futebol" Kamaiurá, a bola só pode ser tocada com os joelhos e com a
cabeça, exceto no primeiro lance, quando o jogador que inicia a partida levanta
a bola com a mão. O "gol" acontece quando a bola acerta outra parte
do corpo do adversário. Aí - pimba na gorduchinha - os times trocam de lado.
- Tinha campeonato entre os
Kamaiurá, Arnaldo?
- Sim, eram disputadíssimos.
Quando o time visitante ganhava, os jogadores entravam nas casas dos vencidos e
pegavam como premio todos os pertences que ali estivessem: redes, cestas,
armas, adornos. Se os visitantes, porém, perdiam, deixavam tudo o que tinham e
voltavam para sua aldeia de mãos vazias. (Se isto funcionasse hoje em nosso
mundo, o Flamengo, coitado, estaria mendigando). Esses campeonatos aconteceram
até os anos 1960, quando omangawa apitap caiu em desuso,
substituído pelo futebol que foi introduzido na aldeia.
- Como é que nós ficamos sabendo
de tudo isso, Arnaldo?
- Graças a um grande pajé
Kamaiurá, chamado Tarakwaj, que praticou esse jogo e o descreveu em detalhes,
em setembro de 1977, na aldeia Ipawu, no Xingu. Outro índio, chamado Kanutary
(Koka), que também era pajé, assistiu muitos jogos e deu sua versão, em 2006,
em Campinas, quatro anos antes de morrer, para a doutora Lucy Seki, que a
publicou com o título "História da Onça: origem do jogo de bola e da
huka-huka".
A boca dos ancestrais
Lucy Seki, linguista brasileira, é
uma dessas raras sacerdotisas que dedica sua vida ao estudo das línguas
indígenas.Entrou no Xingu, em 1967, como assistente da antropóloga Carmen
Junqueira. Cursou doutorado na Universidade Patrice Lumumba, em Moscou,
tornando-se a maior especialista na língua Kamaiurá. Atual professora de
Linguística Antropológica da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), ouviu
da boca dos velhos as narrativas míticas e organizou uma coletânea delas no
livro belíssimo "O que habita a boca de nossos ancestrais", ilustrado
com desenhos dos próprios Kamaiurá, lançado recentemente no Museu do Índio, no
Rio de Janeiro.
O livro está escrito em
Kamaiurá, uma língua da família Tupi-Guarani, com a tradução dos textos
ao português. As narrativas, quase todas, foram coletadas na aldeia próxima às
margens do lago Ypawu, que significa "água grande", situada dentro da
Terra Indígena do Xingu, um lugar sagrado onde vive desde sempre Mawutsini, a
entidade criadora dos Kamaiurá e dos seus heróis civilizadores.
O primeiro branco que passou por
lá foi o médico e antropólogo alemão Karl von den Steinen, que desceu o rio
Xingu em 1884. Depois disso, poucas expedições percorreram a região, até 1942,
quando se iniciou a construção de estradas. Quando Lucy Seki chegou lá, em
1968, apenas dez índios sabiam algo de português. Os mestres na arte de narrar,
os moronetajat ou "senhores das histórias", eram
todos monolíngues em Kamaiurá. Três deles contaram suas histórias para a
linguista, que gravou o que eles falaram.
Um deles foi o já citado Tarakwaj
que tinha 50 anos quando narrou a historia da origem do jogo de bola, em 1977.
Entendia algo de português, mas não falava a língua. "Ao narrar,
usava com maestria a dramatização dos diálogos e as modulações da voz",
conta Lucy Seki. O outro narrador era Awmari - grande especialista na pesca com
flecha e com jequiá. Tinha o apelido de Ariranha e fez 70 anos em 1988, quando
contou suas historias gravadas na aldeia Ypawu, em 1988. O terceiro narrador é
Kanutary (Koka), cantor e instrumentista, artesão especialista na
confecção de cestas e raladores de mandioca, gravou suas histórias na Aldeia do
Morená, em 1999 e em Campinas, em 2004 e 2005. Auxiliou também na interpretação
das narrativas.
Hoje, embora todos os 500 Kamaiurá
falem a língua nativa, houve um considerável aumento de bilíngues. Lucy Seki
contou com ajuda de vários deles para fazer a transcrição e a tradução:
Janumakakumã, Tatap, Wari e Páltu, este último, filho de Kanutary, faz mestrado
em Linguística na UnB e é excelente desenhista. A autora teve o cuidado de dar
os créditos a todos eles, publicando suas fotos e uma pequena biografia.
A historia da origem do jogo de
bola é uma das oito histórias que integram a obra, repleta de notas com
observações etnográficas e contextualização histórica de cada narrativa. A
linguista Bruna Franchetto, do Museu Nacional, que faz a apresentação, diz que
os ricos comentários etnográficos que acompanham cada narrativa fazem do livro
"um empreendimento verdadeiramente enciclopédico". Editado pela
Funai, o livro possui uma versão impressa – que pode ser encontrada no Museu do
Índio, no Rio de Janeiro– e também uma versão digital, que pode ser lida na
web.
As histórias antigas
O próprio Kanutary (Koka), antes
de apresentar sua versão sobre o jogo de bola, comenta com muita propriedade:
"As historias que estou contando agora são historias muito antigas,
historias de nossas origens. Elas vem sendo passadas de geração em geração,
contadas pelos avós para seus netos. Quando os avós morrem, outros contam as
historias para seus filhos. Nos tempos antigos, nós narrávamos somente em nossa
língua, oralmente, Hoje em dia a moçada sabe lidar com a escrita e a leitura, e
nossas historias podem ser registradas no papel".
Lucy Seki se refere à relação entre
o narrador e a audiência, que tem implicações na produção textual. Nas aldeias
do Ipawu e Morená, os adultos ouvintes faziam intervenções e as crianças
acorriam e se acomodavam para ouvir as historias, apoiando-se nos ombros do
narrador, sentando-se em seus joelhos ou no chão. Ela fala de dois grandes
desafios. Um deles foi a dificuldade de colocar no papel os recursos da
oralidade, tais como altura, duração, entonação e modulação da voz.
"Os recursos sonoros, as
pausas, a duração, as mudanças de velocidade, o ritmo, o timbre e as modulações
de voz - ora alta, ora suave, ora entrecortada, ora em falsete - tem um papel
que não se limita a ilustrar ou colorir o que é dito, mas participam da
tessitura da narrativa"- escreve a autora, lembrando os gritos e murmúrios
que conferem dramaticidade a algumas cenas, além do movimento do corpo, das
expressões faciais, da variação do olhar dos narradores.
Somam-se a essas dificuldades de
transpor para o registro escrito as narrativas orais o outro desafio: a
tradução entre línguas tão distantes como o Kaimaiurá e o português. Diz a
autora: "No trabalho de tradução foi feito um grande esforço para manter
no máximo a fidelidade ao original e expressar, ao mesmo tempo, o seu sentido
em outra língua. Procurei dosar a literalidade que, se usada em excesso resulta
em versões caricaturizadas das narrativas e da cultura, aumentando o
preconceito em relação aos povos indígenas. Por outro lado, o excesso de
liberdade na tradução resulta na criação de novos textos por parte do tradutor,
diluindo assim as vozes dos falantes reais".
Kanutary (Koka) considera que se
eles tivessem recursos, poderiam mostrar em imagens, na televisão ou no cinema,
as histórias antigas, com todos os recursos da oralidade. Lamenta em tom
profético: "Acabaram-se os velhos narradores. Somos poucos os que
restaram, como o meu primo e o Takumã. Nós, velhos, vamos morrer e os Kamaiurá
não vão mais ouvir como antes e conhecer as histórias". Ele morreu em
2010, antes que o livro fosse publicado.
Se os dirigentes da Fifa e da
Adidas, responsáveis por batizar a bola da Copa do Mundo de 2010 de Jabulani,
tomassem conhecimento das histórias apresentadas nesse livro, certamente dariam
bola na Copa de 2014 aos Kamaiurá, cujas narrativas começam sempre com a
expressão "diz que é assim" e terminam com o verbo
"acabou". Então, acabou.
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