José Ribamar Bessa Freire
24/06/2012 - Diário do Amazonas
Ninguém jamais saberá por que o velho Edmundo
Busby colecionava jornais, nem exatamente quando essa mania começou. O certo é
que, em vez de descartá-los depois de lidos, como todo mundo faz, ele os
guardava, empilhados, nos cômodos de sua casa no Beco da Indústria, 135, bairro
de Aparecida. Fez isso diariamente, religiosamente, durante algumas décadas.
Quando morreu, no final dos anos 50, na casa entulhada não havia espaço nem
para o caixão. Uma vizinha caridosa, dona Fanchete, que morava em frente,
organizou o velório e sugeriu que o defunto fosse deitado sobre pilhas de
jornais. Um deles lhe serviu de mortalha: era um exemplar raro do The
Porto Velho Times, de 1909, distribuído no acampamento dos gringos que deu
origem à cidade de Porto Velho (Rondônia).
Este exemplar chegou às mãos de Edmundo Busby em
Santo Antônio, no rio Madeira, onde ele vivia naquele 4 de julho de 1909,
depois de deixar Barbados, sua terra natal, numa corrente migratória que envolveu
milhares de operários. Todos eles foram recrutados, no início do século XX,
para a construção da ferrovia Madeira-Mamoré. Eram os barbadianos - termo
genérico que na Amazônia identificava os negros de qualquer uma das colônias
inglesas do Caribe. Era entre eles que circulava o Times de
Porto Velho, impresso no meio da floresta, totalmente escrito em inglês, com
notícias sobre mortes, acidentes e a ação deletéria dos piuns e mosquitos.
O exemplar do Times caboco
trazia um erro tipográfico: a data impressa é 1609, com o primeiro 9 invertido
transformado em 6. Talvez, por essa curiosidade, Edmundo o trouxe em sua
bagagem quando, levado pela crise da borracha, migrou para Manaus acompanhado
de seu irmão Henry. O coração de colecionador já pulsava, então, no peito do
velho Ed, que não teve coragem ou vontade de descartá-lo. Foi aí que os irmãos
Busby se instalaram com mala e cuia naquela casa humilde de madeira, coberta de
zinco, com chão de terra batida, que lhes teria sido cedida, em 1917, pelo
então governador Jônatas Pedrosa. Ela abrigou o primeiro exemplar da coleção de
jornais.
Era uma casa escura, permanentemente fechada,
tinha a cara e a cor da pele dos seus donos. Com o tempo, o uso diário do
fogareiro de carvão deixou o teto enegrecido e a parede tisnada pela fuligem, o
que não incomodava ninguém, porque a casa não acolhia visitas de amigos ou
parentes. Os ferrolhos das duas janelas nunca se abriram para deixar entrar um
raio de sol ou para arejar seus cômodos, nenhuma saia jamais cruzou a soleira
da porta, nenhuma fêmea despiu seu sutiã no quarto daqueles dois celibatários.
O único gemido de prazer que soou naquele ambiente foi um estalo onomatopeico
produzido pelo contra-regra da Rádio Baré, simulando um beijo apaixonado entre
os atores Jerusa Mustafa e Jaime Rebelo, transmitido por uma radionovela local
criada por Alfredo Fernandes. A vida só entrava ali através dos jornais e do
rádio.
O Coffee e o Milk
Discretos e misteriosos, os dois irmãos viviam
isolados do mundo, sem a alegria de uma mulher, de uma criança ou de um amigo,
mergulhados em extrema solidão, com raros contatos até mesmo com os vizinhos
com quem compartilhavam a mesma parede no Beco da Bosta. De um lado, na casa
133, residia seu Arlindo e dona Luzia com suas duas filhas, Cleide e Cléa. De
outro, no n° 137, morava minha família. As brechas das tábuas de madeira
tinham sido cobertas por jornais, mas às vezes podíamos ver através delas, com
certa dificuldade, as sombras dos dois irmãos arrastando os pés, de manhã cedo,
até o quintal para ir dar milho às galinhas.
O que víamos era pouco, mas ouvíamos tudo: os
pigarros, as tosses, os flatos, os banhos de cuia com água do camburão, as
sonoras mijadas na madrugada, a dispneia ofegante e até o silêncio.
Acompanhávamos a Rádio Baré, sintonizada o dia inteiro pelos irmãos Busby, com
música, informação, avisos para os cabocos do interior, pedidos e encomendas.
Lembro de um jingle com a musiquinha: "Martini,
Martini, Martiiiiini! Vermute sensá-cional! Rá, rá! Martini, Martini,
Martiiiiini, a marca mundial!". Toda vez que tocava, o velho
Edmundo rompia o silêncio e gritava, ele também, o "rá-rá" ,
acompanhando o riso depois da paradinha do "sensá-cional".
Sensacionais eram os apelidos. A dupla de irmãos
ficou conhecida como Cófi e Milque por causa da
cor da pele de cada um. Ambos eram negros, mas a pele do Coffee permanecera
negra, de um negro tão retinto que azulava. Já o seu irmão passou a ser chamado
de Milk depois que, em contato com a hidroquinona da borracha,
no rio Abunã, contraiu o vitiligo, que embranqueceu sua pele, despigmentando-a
por falta de melanina, deixando-a coberta de manchas brancas, de diferentes
tamanhos que se espalharam por todo o corpo: braços, pernas, cotovelos,
joelhos. Era um Michael Jackson avant la lettre. Os moleques do
bairro, que acompanharam o processo de desbotamento, preferiam chamá-lo de
"Descascado".
Edmundo, o Cófi e Henry, o
Milque ou "Descascado" andavam sempre vestidos com a
mesma roupa: uma jaqueta de brim azul, com golinha arredondada tipo
Mao-Tse-Tung. Parecia até farda. A forma como eles sobreviviam continuava a ser
um mistério, ora diziam que tinham uma minguada aposentadoria, ora que recebiam
pequena pensão enviada mensalmente de Barbados. Eram, efetivamente,
sobreviventes de uma guerra na selva que matou mais de 7 mil barbadianos,
vítimas de doenças tropicais, malária, febre amarela e hepatite e se mais não
matou foi graças ao sanitarista Oswaldo Cruz, que saneou os canteiros de obras.
Diariamente, Edmundo Busby, o Cófi, passava
pela Santa Casa de Misericórdia, e recolhia exemplares dos jornais do dia
anterior: O Jornal e o vespertino Diário da
Tarde da família Archer Pinto, o Jornal do Commércio fundado
por Rocha dos Santos e A Crítica de Umberto Calderaro. Foi
assim que ele montou sua coleção. Sem dinheiro para comprá-los, lia os jornais
sempre com um dia de atraso e depois empilhava-os sobre estrados improvisados
de madeira, de forma organizada e metódica, sem misturar os títulos,
classificando-os por ordem cronológica. Assim, parecia querer aprisionar entre
as quatro paredes de sua casa acontecimentos de Manaus, do Amazonas, do Brasil,
do mundo.
Meu brotinho
A única vez que entrei naquele castelo de papel
foi quando o Coffee ficou sem o Milk, que morreu
deixando o irmão mais velho afogado num poço de tristeza. Eu era um moleque de
7 ou 8 anos, talvez 9, por aí, estava jogando bola na rua. Fazia uma
semana da morte do "Descascado". O velho Edmundo, tristonho, me
chamou da porta de sua casa, se queixou que estava muito doente, não podia
sair, e me pediu o favor de ir até a taberna do Seu Thomaz buscar - assim mesmo
- o "remedinho" dele. Deixaria a porta aberta, para que eu entrasse
com o remédio.
Fiz o que pediu. Levei uma caneca de alumínio e
dei o recado à dona Maria do Seu Thomaz. Ela já sabia do que se tratava.
Derramou dentro da caneca o líquido de uma garrafa - a memória é traiçoeira -
não sei se eraMartini, vermute sensá-cional, rá-rá, ou o concorrente
Cinzano, cujo jingle tocado pela Rádio Baré recomendava: "Sim,
sim, Cinzano, Cinzano sempre faz bem, muito bem, Cinzano agrada ao paladar, em
se tratando de vermute eu não me engano, em quero Cinzano, eu bebo
Cinzano".
Entrei na casa sombria, com um certo medo. O
velho Edmundo, que morreria meses depois, estava prostrado em uma rede de
tucum. Era lá que ele passava o dia, ouvindo a Rádio Baré e folheando os
jornais. Bebeu o martini - ou foi cinzano? - de uma talagada só. Deu uma
cusparada com pontaria certeira, que caiu dentro do penico debaixo da rede. Foi
aí que meus olhos, estupefatos, contemplaram a maior hemeroteca que o Amazonas
já teve. O velho colecionador estava literalmente sitiado por uma muralha de
papel, eram pilhas e pilhas de jornais, que subiam do chão até o teto, tomando
conta da casa, da sala, do quarto, da cozinha e até do pequeno banheiro.
Há quem considere que acumular e guardar objetos
descartáveis é uma doença, uma incapacidade de se desfazer das coisas velhas e
inúteis. Tem gente que guarda escova de dente usada, prego e parafuso velho,
lâmpada queimada, guarda-chuva quebrado, caneta sem tinta, garrafa vazia, rolha
de garrafa. Confesso que eu mesmo não consigo jogar fora aquele aramezinho de
pão de forma. Meu professor Ruggiero Romano não conseguia se desfazer de papéis
usados, mania adquirida durante a Segunda Guerra, na Itália, que ocasionou a
escassez de papel. Dizem os entendidos que qualquer coleção tem o poder de
representar o indivíduo, ligando-o ao mundo que o cerca. Desta forma, no ato de
colecionar coisas, colecionamos a nós mesmos.
No caso da hemeroteca do velho Edmundo, o
que ela queria dizer sobre ele? Qual a sua funcionalidade? Com que
regularidade ele a consultava? O que é que ele buscava nos jornais antigos? As
perguntas são pertinentes porque parece até que ele queria guardar o infinito
entre as quatro paredes da casa escura, aprisionando o tempo escondido naqueles
velhos papéis que testemunharam parte da História do século XX.
De qualquer forma, colecionando jornais, ele
preenchia uma lacuna que devia ser obrigação do Estado, através da Biblioteca
Pública. Aqueles velhos jornais teriam desaparecido sem deixar vestígios, se
tivessem embrulhado peixe na feira. Seu destino final seria a lata de lixo. Mas
estavam ali, lutando contra o mofo, o bolor e outros fungos, resistindo à
morte, como o velho Edmundo Busby que deixou uma enorme responsabilidade sobre
meus ombros: se eu não escrever sobre ele e sua coleção, ninguém jamais saberá
que ele passou pelo planeta terra.
A memória às vezes nos engana, mas acho que a
minha visita à hemeroteca do velho Edmundo aconteceu num carnaval, no final da
década de 1950. Lembro que na hora em que eu saía do castelo de papel, a Rádio
Baré tocava uma marchinha do Luiz Gonzaga que fez sucesso na época. Mais de
meio século depois, continuo ainda ouvindo a voz do cantor Francisco Carlos:
-"Ai, ai, Brotinho / Não cresça meu
brotinho / E nem murche como a flor / ai, ai brotinho / Eu sou um galho velho /
mas eu quero o teu amor / Meu brotinho / por favor, não cresça (bis) / já
é grande o cipoal / Veja só que galharia seca / tá pegando fogo no meu
carnaval".
A coleção do velho Edmundo murchou como uma
flor. Quando ele morreu, tocaram fogo em parte dos jornais; outra parte teria
sido incorporada à hemeroteca do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas
(IGHA). Lá se foi ele, embrulhado em sua mortalha, lá se foi o Times amazônico
brigando contra o tempo, retrocedendo três séculos com sua data invertida. O
resto é silêncio.
P.S. - Agradecimentos: 1) À Regina Nakamura, que
me ajudou a lembrar o velho Edmundo; 2) À minha colega, doutora Leila Beatriz
Ribeiro, do Programa de Pós-Graduação em Memória Social, da UNIRIO, que me fez
refletir sobre o ato de colecionar, a partir de seu trabalho sobre os objetos
de coleção na trajetória de Urbano, o Aposentado; 3) Aos historiadores Geraldo
Sá Peixoto Pinheiro, Vânia Tadros, Luiz Bitton, Francisco Jorge dos Santos e
Patrícia Sampaio, com quem organizei o livro "Cem Anos de Imprensa no
Amazonas (1851-1950) - Catálogo de Jornais" publicado em Manaus, em 1987
(1a. Edição - Editora Ana Cassia) e em 1990 (2a. edição Editora Umberto
Calderaro); 4) Aos historiadores Luís Balkar Pinheiro e Maria Luiza Ugarte
Pinheiro do Laboratório de História da Imprensa no Amazonas (LHIA - UFAM), que
seguraram a peteca; 5) Aos meus alunos de
Jornalismo Comparado da UFAM, que em 1978 fizeram o primeiro levantamento na
hemeroteca do IGHA e a quem faço questão de aqui nominar: Izane Torres,
Wandler Cunha, Inácio Oliveira, Regina Helena Magnoni, Eliana, Maria do
Socorro Oliveira, Maria de Fátima Sampaio, Conceição Derzi, Otoni Mesquita,
Ângela Abreu, Maísa Vilhena, Antonio Braga, Roberta Silva, Adeice Torre,
Eduardo Monteiro de Paula, Orlene Marques, Jorge Marques, Maria de Jesus
Martins, Circe Alves, Ana Maria Pina, Izabel Melo, Etra Lúcia Batista, Roselane
Galvão, Alice Valle da Costa, Josely Moreira Ribeiro, Idalina Lasmar, Maria
José Azevedo.
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